A ascensão social
de Maria do Carmo
A ascensão de Maria do Carmo está estreitamente
ligada à perda da filha. Teria a personagem a mesma tenacidade,
persistência, se estivesse com seus cinco filhos? Haveria
a necessidade de ir tão longe ou bastaria ter com que alimentá-los,
ter uma vida mediana dentro do que fosse possível para alguém
das condições sociais e financeiras dela? Teria ela
desenvolvido a dureza necessária para ser dona do próprio
nariz ou teria sido mais fácil acomodar-se em um emprego
qualquer, mal pago, mas talvez razoavelmente protegido? A personagem
desiludiu-se de cara com a solidariedade e ajuda de estranhos (lembremos
que o irmão lhe continuou fiel e que a ajudou a crescer e
ascender profissionalmente), tornando-se pouco dócil em aceitar
a ajuda de mulheres de classe média que pudessem desejar
acolhê-la como empregada, balconista ou outra profissão.
Observemos que Saturno em Câncer, da mesma forma que exalta
algumas mulheres e tira o melhor delas, também deturpa outras
e pode ocasionar dores infringidas por mulheres, ou, ainda, pela
família ou por pessoas muito próximas. Saturno - as
lições - virá através de pessoas pertencentes
ao núcleo canceriano: aquelas com quem temos intimidade ou
de quem mais precisamos. Por outro lado, tal qual ocorre com Maria
do Carmo, Saturno em Câncer também parece oferecer
apoio de outras pessoas próximas, sendo que sem este apoio
talvez fosse impossível prosseguir. Maria do Carmo tem o
irmão honesto e atencioso como apoio e o jornalista Dirceu
com quem se envolve. São compensações pelo
seu encontro com Nazaré e pelo abandono do marido que a deixou
com cinco filhos.
É digno de nota que nossa
senhora do destino da novela se estabeleça no ramo da
construção, algo extremamente condizente tanto
com Saturno quanto com o seu posicionamento em Câncer.
Sabemos que Câncer rege as casas, e Saturno, as construções.
Nossa senhora do destino também não foi tentar
a sorte, por exemplo, no Rio de Janeiro, cidade com forte viés
jupiteriano (daí sua fama de alegre, embora haja, também,
a marca de outros planetas, como, por exemplo, Plutão),
e sim, em São Paulo, que tem acentuada regência
saturnina, sendo associada a cor cinzenta da fumaça e
do progresso, mas também a prosperidade e ascensão
através do trabalho, do esforço e da tenacidade.
Uma cidade para aqueles que querem se fazer e se sacrificar
para atingirem algum objetivo. Nossa nordestina certamente esperava
elevar-se socialmente como forma de mitigar a dor, e, ainda,
ter condições financeiras de reencontrar a filha
raptada. O duro golpe que sofre de alguma forma a torna mais
forte, embora isto não alivie a dor que sente pela perda.
Mas evita que desista e se conforme: Saturno. |
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Foto de fundo: uma família do interior
do Espírito Santo, nos anos 30, destinada a passar, como
tantas outras famílias brasileiras, por momentos de partidas
e reencontros nas décadas subseqüentes.
O sofrimento de Maria do Carmo também é
Saturno em Câncer em estado puro. Embora seja alegre, tenha
um namorado fiel, esteja cercada de pessoas que gostam dela e de
quem ela gosta, Maria do Carmo tem um núcleo de dor perpétuo.
Mantém um quarto para a filha desaparecida e com freqüência
vai nele para colocar mais um objeto e chorar a ausência de
sua única menina. Jamais desiste de procurá-la, tendo
inúmeras decepções e desilusões. Quando
finalmente a encontra, percebe que a mesma é apegada à
mãe adotiva e relativamente feliz na sua vida. Há
algo profundamente chocante e indecente nisso. Eis, aqui, uma das
mais difíceis lições de Saturno em Câncer:
o de que a vida pode ser injusta. Saturno em Câncer por vezes
subverte conceitos de mocinho e bandido. Por Saturno encontrar-se
no seu signo de exílio, mocinhos podem se tornar bandidos,
e, bandidos, mocinhos. Fica tudo meio misturado. É o que
Nazaré, por exemplo, se tornou ao provar ter sido capaz de
cuidar com todo o zelo da menina que roubou, como se fosse uma filha
gerada do seu útero. Isto, porém, não parece
redimi-la e fazê-la menos má. É só a
Isabel que ela oferece proteção (por vezes sufocante).
Com as outras pessoas ela continua a ter o pior da implacabilidade
de Saturno, removendo quem quer que se torne um obstáculo
em seu caminho.
Porém, voltemos ao tema injustiça,
desigualdade, tão comum a Saturno em Câncer. E por
quê? Câncer, como signo da Água, não tem
uma base fundada na lógica, na racionalidade, no certo, no
bom. A base está fundada nos sentimentos, que nem sempre
são justos, corretos, valorosos ou outro adjetivo que os
enobreça. Saturno no signo de Câncer obriga a lidar
com esta faceta menos lisonjeira dos sentimentos, que também
se encontra dentro de nós mesmos. Saturno passando por Câncer
pode despertar ressentimentos e desejos de vingança em resposta
a situações que magoaram no passado. Saturno em Câncer
torna mais difícil sepultar o passado, pois mexe nas feridas,
cutucando-as, tornando-as vivas ou somente mostrando que certas
coisas ainda não foram resolvidas. Ele traz à baila
o tema de se ter sido irremediavelmente lesado ou espoliado emocionalmente,
ou ter feito isto a alguém. O difícil desafio da passagem
de Saturno por este signo parece ser o de se mexer com o passado,
a fim de entendê-lo, sem ser esmagado por ele. É muito
fácil ficar-se obcecado com a dor e o passado com Saturno
em Câncer.
Na novela, a mulher que cruelmente roubou a recém-nascida
de Maria do Carmo, abusando de sua ignorância e inocência,
consegue ser uma mãe relativamente boa para a menina. Maria
do Carmo esperava encontrar a filha com um pequeno gancho de infelicidade,
tal qual existe nela mesma, para finalmente serem felizes no reencontro,
mas sua filha está aparentemente bem com a mãe adotiva.
Teoricamente, não precisaria da mãe verdadeira, e
isto é difícil de ser digerido por Maria do Carmo.
A matriarca negativa da nossa história conhece todos os mecanismos
da filha que adotou, sabendo manipulá-la como ninguém.
A única forma de diminuir o domínio desta mulher é
tentando desestabilizá-la e explorando seus pontos fracos.
Como Nazaré faz e desfaz, seu comportamento deixa rastros
para quem quiser segui-los. O autor também fornece um generoso
instrumento para auxiliar no resgate de Isabel, a menina roubada:
a prova material de um diário que possa desmascarar factualmente
a ardilosa mãe adotiva.
Isabel, a tarefa de reescrever
a própria história
Em meio à briga de titãs entre as mães
verdadeira e adotiva, está Isabel, vivendo também
um drama típico de Saturno em Câncer. Descobre que
aquilo em que acreditava a seu respeito era mentira. Até
então filha exemplar, tem seu sólido vínculo
com a mãe adotiva rompido pelos novos fatos e também
pelo comportamento cada vez mais desequilibrado desta mãe,
depois que é desmascarada. Curiosamente, embora a mãe
adotiva vá a extremos do desequilíbrio, chegando a
sugerir que a filha aborte após descobri-la grávida
do namorado, Isabel continua mantendo-se fiel a ela e reluta em
absorver os novos fatos. Trata-se de mais um espelhamento de Saturno
em Câncer. É necessário compreender porque Saturno
é considerado exilado, ou seja, fora de seu elemento, no
signo de Câncer. Câncer tem a ver com o processo emocional.
Sendo um signo da Água, significa que este processo emocional
precisa ser fluido. A natureza cardinal de Câncer faz com
que os processos emocionais tenham um começo, meio e fim
próprios deles. Câncer representa, por exemplo, o não
estarmos bem um dia e no dia seguinte acordarmos ótimos.
Saturno, porém, é, de todos os planetas, o mais lento
em sua essência. Colocado em Câncer, ele retarda e cristaliza
os processos emocionais. Estaria por trás, por exemplo, da
dor que nunca passa, da ferida que nunca se fecha, da saudade que
nunca termina, da mágoa que quanto mais remexida mais se
aprofunda. Aquilo que deveria ir embora demora a passar. É
o que Maria do Carmo vive: jamais se cura da perda da filha (e quem
poderia culpá-la por isto?). Mas é, também,
o que Isabel vive, embora de outra maneira. Isabel não consegue
se convencer emocionalmente do que passa a vislumbrar do caráter
da mãe adotiva. Ela vê a mãe desequilibrada,
vê a mãe se prostituindo, mas ainda assim insiste em
seu modelo antigo de uma mãe idealizada. Da sua "mãezinha",
como ela chama. Até pouco tempo, era filha de uma família
de classe média com pai, mãe, meia-irmã, uma
vida confortável, tudo muito normalzinho. O primeiro baque
de Saturno em Câncer que sofre é a perda do pai. Logo
a seguir, vem o empobrecimento súbito da família e
a necessidade de trabalhar para custear os estudos. São vários
choques emocionais. E, para complicar, os conflitos entre a meia
irmã e a mãe se acirram, rompendo a congelada harmonia
que antes parecia haver por força da presença do pai.
Para completar a sucessão de golpes emocionais, ela descobre
que a sua mãe não é a sua mãe, e uma
mulher de origem nordestina passa a reivindicar seu afeto com urgência,
porque ficou privado dele por mais de vinte anos. De repente, ela
tem de reescrever toda a sua história, o seu presente, o
seu passado. Tem pela frente, portanto, uma das duras tarefas de
Saturno em Câncer. É com insistência que Saturno
em Câncer pergunta quem são as pessoas em quem antes
depositamos um afeto cego. Ele nos obriga à reformulação
de conceitos a respeito destas pessoas e do vínculo que tivemos
com elas. Tal qual na novela, Saturno em Câncer tem a capacidade
de desmascarar mitos. É Câncer - a vida íntima
e familiar, os vínculos emocionais - que estão sendo
impiedosamente trazidos para a realidade através de Saturno.
Outros dramas de Saturno:
Maria Claudia e Edgard
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