Em 2008 estive alguns meses em Lisboa, tentando desencavar uma tradução portuguesa do Tetrabiblos no período das Descobertas, tendo em vista que esta, além de ter sido uma fase de considerável atividade tradutória, foi também uma época de grande atividade dos astrólogos em Portugal, já que eram eles que sabiam manusear os instrumentos e as tabelas que foram fundamentais para o desenvolvimento da navegação astronômica.
Como se sabe, nesse tempo não havia a distinção que há hoje entre astronomia e astrologia, tratando-se, pois, de uma “astrolomia”, termo que encontrei no texto Esmeraldo de situ orbis, escrito pelo navegador português Duarte Pacheco Pereira, no início do século XVI, e que me parece assaz adequado para denominar essa ciência com dois aspectos que vigorou desde a antiguidade até o advento da ciência moderna. Pois bem, depois de três meses chafurdando na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e na Biblioteca Pública de Évora (os três grandes polos portugueses de textos antigos), e de só ter encontrado as edições latinas e gregas dos séculos XV e XVI (o que foi bastante emocionante), desenvolvi um plano alternativo, que era procurar a tradução espanhola do século XV, o que não é menos meritório: afinal, a expansão marítima foi uma empreitada igualmente de portugueses e espanhóis.
Fora isso, é evidente que aproveitei todo o tempo possível para levantar dados sobre a tradução astrológica nesse período, o que implica examinar uma série de catálogos de livros antigos, além dos ditos-cujos evidentemente, e estudar muita história da ciência e da tradução, para tentar operar essa interseção entre astrologia, ciência e tradução, que não é trivial. Ademais, também tomei como missão fazer a catalogação das obras astrológicas antigas que havia por lá, a fim de ter uma ideia geral desse acervo. Com isso, entre outras coisas, seria possível avaliar o que foi produzido em português e em outras línguas. É claro que essa produção textual, além de explicitar a tradução astrológica, nos conta também um pouco sobre a prática da astrologia em Portugal nos quinhentos e seiscentos.
Dito isso, passo agora à astrologia em Portugal hoje, que não era propriamente o meu objeto de estudo, mas que considerei importante para a montagem desse quadro. Vou me ater a dois empreendimentos astrológicos que encontrei em Lisboa, que me parecem bastante elucidativos sobre a realidade astrológica portuguesa, mas principalmente pela seriedade, pelo compromisso com a astrologia e pelo aporte à pesquisa que eles oferecem: a Biblioteca Sadalsuud e a Academia de Estudos Astrológicos. De ambos recebi informações preciosas não só sobre assuntos diretamente relacionados à minha tese, mas também sobre a prática astrológica lusitana atual.
Vale lembrar que percorri os muitos sebos e livrarias da cidade, o que serve de termômetro para avaliarmos a quantas anda uma área de conhecimento num determinado lugar, e o que vi é pouco mais que desolador. Assim como no Rio de Janeiro, e talvez se possa generalizar mais e considerar o Brasil como um todo, raras são as livrarias que tratam a astrologia com dignidade, reservando-lhe uma seção ou pelo menos uma prateleira. De maneira geral, encontramos os livros de astrologia misturados com outras coisas, rotuladas normalmente de autoajuda, esotéricos ou algo do gênero. Claro que há toda uma questão editorial também aí por trás, mas este é um problemão que eu não vou desenrolar por aqui.
Tanto a Academia quanto a Sadalsuud se reconhecem como propostas diferentes da maioria de seus conterrâneos, principalmente pela seriedade (o que não implica ser chato), pelo rigor acadêmico (o que não significa ser arrogante) e pelo compromisso com a astrologia tradicional. Nesse aspecto talvez se possa generalizar também, já que, no Brasil, o interesse pela astrologia antiga, pela sua história e por seus fundamentos é muito reduzido. De maneira geral, tanto no Brasil, quanto em Portugal e no resto do mundo, a astrologia psicológica e as escolas que seguem as diretrizes de Dane Rudhyar têm muito mais adeptos. É importante destacar, então, que há atualmente alguns projetos de estudo, divulgação e tradução de textos helenísticos e medievais, além dos portugueses já citados:
- Gracentro
- Escuela de Traductores de Sirventa
- Project Hindsight
- CURA
O CURA não se atém exclusivamente à astrologia tradicional. ARHAC e Ascella são duas editoras que publicaram alguns textos antigos importantes, mas que, aparentemente, interromperam sua produção.
A Biblioteca Sadalsuud
Voltando a Portugal, os livros da Biblioteca Sadalsuud são traduzidos por uma só pessoa, para que, segundo as palavras da própria tradutora-editora, “não haja qualquer possibilidade da alteração de uma só vírgula, de tal maneira é sensível o texto na sua interpretação”. Seus critérios são tão rigorosos que, para ela, qualquer tradutor que não tenha um mínimo de 20 anos de pesquisa astrológica reconhecida internacionalmente ao mais alto nível, com provas documentais apresentadas e obra publicada, não tem qualquer capacidade para traduzir estes textos. E, para começar, há que ter passado por todos os exames estabelecidos pelas escolas astrológicas internacionais.
Ademais, seus exemplares são encadernados um a um, pedidos por e-mail e depois recebidos pelo correio convencional, isto é, o trâmite é inteiramente on-line, pois a editora não conta com uma instalação física. Todos os livros têm ISBN e são “depósito legal”, ou seja, há um exemplar de cada um depositado na BNP. Essa editora se dedica exclusivamente à tradução de textos astrológicos antigos, tomando como base as traduções inglesas. O Tetrabiblos, por exemplo, foi traduzido a partir da tradução do grego para o inglês, de 1940, feita por F. Robbins, responsável pela edição crítica dessa obra. No site da Sadalsuud [1] , encontramos logo na primeira página a sua motivação:
Na esperança de que, no futuro, a Astrologia Clássica venha a ser estudada nas Universidades de língua portuguesa, é criada a Biblioteca Sadalsuud, que se ocupa da compilação e tradução dos textos clássicos, os compêndios indispensáveis para qualquer estudante desta Arte. O intuito é a expansão deste conhecimento […].
Acrescente-se a isso o seu interesse e longo tempo de estudo da obra de William Lilly, e a sua preocupação em tornar aquele inglês do século XVII mais digerível para o estudante português atual. Sobre a importância do cuidado no tratamento das obras antigas, nas suas próprias palavras:
Se não houver um domínio absoluto e rigoroso nos dois campos (o do idioma e o astrológico) basta uma vírgula fora do lugar para alterar por completo o sentido da frase, e a astrologia clássica medieval, ao contrário da contemporânea de vertente mais psicológica, depende da obediência mais absoluta às regras e aos cálculos, visto que o seu intuito é determinar acontecimentos passados e prognosticar os futuros com data e hora.
Além do Tetrabiblos, há várias outras obras já traduzidas para o português, todas devidamente apresentadas no site. No caso da obra de Ptolomeu, a apresentação se baseia na ótima introdução feita por Robbins na sua edição crítica. As outras obras disponíveis são: Astrologia cristã, de Lilly; Anima astrologiae, de Bonatus e Cardanus; Matheseos libri VIII, de Firmicus; Astrologia horária, de Simmonite; Carmen astrologicum, de Dorotheus; A enciclopédia da astrologia, de DeVore; Mikropanastron, de Partridge; Elementos da arte da astrologia, de Al Biruni; O profético Merlin, de Lilly; Astrologiae gallicae, de Morin; O julgamento astrológico das doenças, de Culpeper; Livro dos julgamentos das estrelas, de Ben Ezra; Merlini anglici ephemeris, de Lilly; e Collectio geniturarum, de Gadbury.
A Academia de Estudos Astrológicos de Lisboa
O encontro com Helena Avelar [2] e Luís Ribeiro, da Academia de Estudos Astrológicos foi muito bom. Além de ser um casal deveras simpático, eles vivem exclusivamente da astrologia tradicional, à qual se dedicam de corpo e alma há mais de 10 anos, na forma de consultas, cursos, palestras, pesquisa e livros. Ambos têm formação exemplar, espírito crítico, vocação para ensino e pesquisa, e profundo conhecimento de astrologia e matérias afins.
Senti-me bastante à vontade com eles, em sua casa, onde, na sala, funciona a Academia, local em que atendem, promovem pequenas palestras e workshops (até 20 pessoas), e oferecem o curso de formação em astrologia, com duração de três anos, para o qual contam com uma nova turma de 10 a 15 alunos a cada ano. Achei o número excelente, sobretudo se considerarmos as dimensões de Portugal e o público-alvo, que é naturalmente restrito. Afinal, trata-se de um curso que se propõe a ser investigativo, em moldes acadêmicos e com dedicação à astrologia tradicional. Aos incautos, isto já aparece em destaque na página inicial do site da Academia: “Investigação, divulgação e ensino da tradição astrológica”.
Dos três títulos publicados por eles pela Editora Pergaminho, Vamos falar de astrologia (2003), Astrologia real – a história de Portugal à luz da astrologia (2004) e Tratado das esferas (2007), este último, que, segundo o site da Academia, “é o primeiro livro inteiramente dedicado à Tradição Astrológica em língua portuguesa e escrito em função das necessidades pedagógicas dos estudantes actuais”, é o que serve de material de apoio do curso, que recentemente ganhou uma versão on-line em 12 lições.
Também conversamos bastante sobre a astrologia brasileira, sempre comparando com a portuguesa. Eles parecem ter uma boa noção da diversidade da astrologia no Brasil, sobretudo por causa das suas dimensões, e já escreveram na Constelar. De maneira geral, entretanto, eu diria que a integração luso-brasileira em astrologia é praticamente nula, ou seja, os astrólogos e o público em geral em Portugal sabem tanto da astrologia no Brasil quanto, no Brasil, se sabe da astrologia em Portugal, ou seja, quase nada.
Quanto à relação com o meio acadêmico, apesar do meu entusiasmo, tendo em vista as boas experiências que tive até agora no Brasil e em Portugal, eles se mostraram um pouco surpresos, mas relataram que, tanto aqui quando no resto da Europa (eles costumam participar de congressos internacionais), a astrologia, mesmo quando tem uma produção séria volumosa, e a Inglaterra é um exemplo disso, acaba sempre num lugar mais independente, como é o caso deles e da Sadalsuud em Portugal, do Patrice Guinard, que está à frente do Projeto CURA (França), e que se autodenomina um “independant scholar”, e também da Faculdade de Astrologia, de Londres, que é, na verdade, uma já quase setentona escola de astrologia.
Animadíssimos com o trabalho, preocupados com a formação do astrólogo de hoje e conscientes de que o tempo é curto para dar conta de tudo, pareceram satisfeitos de saber da minha existência, assim como eu também adorei saber que eles existem. É curioso como, apesar dos contextos bem diferentes que nos produziram, conseguimos encontrar tanta coisa em comum.
Encontrar nossos pares é sempre muito bom, seja ali na esquina, em outro bairro, cidade ou estado, como até então tinha sido o meu caso com a Academia Celeste, a Constelar, a Astroletiva e a Confraria dos Astrólogos Andantes. Nessa troca transatlântica, só muda mesmo o endereço, porque, da mesma forma, todos nós saímos ganhando, principalmente a astrologia.
Notas do Editor
[1] O site da Biblioteca Sadalsuud encontra-se no momento desativado. Contudo, é possível encontrar as publicações em sites portugueses de venda de obras de Astrologia.
[2] A astróloga Helena Avelar, uma das mais preparadas na área de Astrologia Tradicional, faleceu em 2021, aos 47 anos. A Academia de Estudos Astrológicos permanece em atividade, sob a direção de Luis Ribeiro.
Victor Vasconcelos diz
Admiro muito o estudo da astrologia. Acho que através da astrologia podemos encontrar algumas muitas respostas para o estudo do comportamento humano (suas características…o que define suas virtudes, defeitos e qualidade). Eu viajo muito a trabalho e a lazer dentro do Brasil e América do Sul. Pretendo viajar a Europa um dia e, claro, acabar por conhecer essa região portuguesa justamente pela astrologia.