A astrologia tem no Renascimento um de seus momentos de maior prestígio, enfrentando ainda poucas contestações. Uma das exceções a esse florescimento foi Pico della Mirandola (1469-1533). Em sua obra, Disputationes, critica a mistura de religião e ciência que ocorre na astrologia. Para ele, o equívoco da astrologia decorre de dois fatores: 1) sua origem caldaica e egípcia, povos que, segundo ele, eram inaptos ao saber, e 2) não é rigorosa, mas pretende sê-lo.
O fascínio da astrologia, para Pico della Mirandola, é o seu caráter compósito, ciência e arte, que estimula a curiosidade e a cobiça humanas, além de lhe atribuir um ar de verossimilhança. Para ele, há também uma tendência à veneração de tudo que é antigo, o que confere à astrologia um ar de sapiência e autoridade.
Pico della Mirandola fez uma história da astrologia para liquidar com o que ele considerava uma pseudociência [26], pois achava que ela não tinha rigor metódico nem critérios lógicos. Para ele, o astrólogo visa apenas a glória e o lucro, pois sua atitude mental é no sentido de suscitar espanto e admiração. [27]
Os primórdios da ciência moderna e o declínio da cosmologia aristotélica
Nesse cenário, Copérnico (1473-1543) demonstra a teoria heliocêntrica, Galileu (1564-1642) aponta seu telescópio para o céu e a verifica, e Kepler (1571-1630) formula algumas de suas leis. Kepler e Galileu eram astrólogos, mas concebiam a astrologia de maneira crítica, especialmente Kepler, que, segundo Fuzeau-Braesch, “situou assim, pela primeira vez, a astrologia entre as concepções científicas novas: ela permaneceu decididamente geocêntrica como ainda o é em nossos dias, e isso baseando-se em uma experiência terrestre afirmada, anunciando já posições modernas recentes” [28].
Esse é o contexto de transição para a ciência moderna, para um mundo cuja imagem é totalmente diferente da imagem anterior, pois há uma ruptura entre o mundo dos sentidos e o mundo da ciência, até então considerados coincidentes: o universo agora é infinito, e o céu e a Terra gozam do mesmo estatuto ontológico. Segundo Koyré, “A grande inimiga da Renascença, do ponto de vista filosófico e científico, foi a síntese aristotélica, e pode dizer-se que sua grande obra foi a destruição dessa síntese.” [29]
Confirmando essa posição de Koyré sobre o destino do pensamento aristotélico com o advento da ciência moderna, Camenietzki afirma que “os satélites de Júpiter e as fases de Vênus representaram uma pá de cal nas antigas teorias das esferas celestes”. [30] Dessa maneira, costuma-se atribuir ao advento da nova teoria heliocêntrica a responsabilidade pelo declínio do sistema cosmológico aristotélico, defendido por Ptolomeu, que abarcava também a astrologia.
Paulo Rossi rejeita a ideia de que o heliocentrismo seja o único responsável pelo “fim” da astrologia. Ele considera discutível o pressuposto embutido nessa ideia de que a ciência progride contínua e linearmente sem erros. A astrologia continuou viva após Copérnico, entrelaçada à astronomia, à filosofia, etc. As discussões sobre o sistema copernicano e o universo como máquina prosseguiram depois de Copérnico, já que Kepler fazia mapas astrológicos e Newton estudava astrologia, entre outros conhecimentos considerados ocultos. [31]
A posição de Thorndike corrobora essa desconfiança. Para ele, o fim da astrologia não se deve à “descoberta” de uma lei universal, nem à matematização da natureza, mas sim à gradual eliminação, seguida de radical destruição operada por Newton, da distinção entre céu e Terra, i.e., a Terra é um planeta igual aos outros, não fazendo mais sentido a distinção entre mundo superior e mundo inferior. [32]
Stephen Hawking, por sua vez, atribui o declínio da astrologia no mundo moderno ao deslocamento do “lugar” do determinismo. Para ele, as leis de Newton e as outras teorias físicas deslocaram esse objeto de desejo do homem, o determinismo, da astrologia para a ciência. Hawking associa a ideia de determinismo científico, formulada pela primeira vez no século XIX por Laplace, à astrologia, da seguinte maneira: “(…) se o determinismo científico for válido, deveríamos, em tese, ser capazes de prever o futuro e não precisaríamos da astrologia”. [33]
A Igreja, que tinha apostado tudo na compatibilização do pensamento aristotélico com o cristianismo, gradativamente foi perdendo seu papel de portadora da verdade absoluta, e as Escrituras começaram a ser entendidas, pelo menos no meio científico-filosófico, como uma escrita simbólica. A tese da dupla verdade mencionada anteriormente [34], supostamente averroísta, foi reafirmada por Galileu, o que o levou a ser acusado pela inquisição. Mas esse foi um passo determinante para a ciência moderna, pois a ciência passou a constituir um ramo de estudo independente da religião. Segundo Camenietzki, “O cientista pode até mesmo estar estudando a obra de Deus, mas ele não mais guia suas ações por princípios das Escrituras” [35].
[26] Para não soar anacrônico, é importante lembrar que o termo “pseudociência”, usado em pleno Renascimento, não tem a mesma conotação de hoje em dia, assim como a própria noção de “ciência”.
[27] cf. ROSSI, P. A ciência e a filosofia dos modernos. Tradução de Álvaro Lorencini. SP: UNESP, 1992 — p. 40
[28] FUZEAU-BRAESCH, S. A astrologia. Tradução de Lucy Magalhães. A astrologia. RJ: Jorge Zahar Editor, 1990 — p. 59
[29] KOYRÉ, A. Estudos de história do pensamento científico. Tradução de Márcio Ramalho. RJ: Forense universitária, 1991 — p. 47
[30] CAMENIETZKI, C.Z. A cruz e a luneta. RJ: Access, 2000 — p. 67
[31] cf. ROSSI, P. A ciência e a filosofia dos modernos. Tradução de Álvaro Lorencini. SP: UNESP, 1992
[32] cf. THORNDIKE, L. “The true place of astrology in the history of science” in Isis. 1955 — p.273-278
[33] HAWKING, S. O universo numa casca de noz. Tradução de Ivo Korytowski SP: Arx, 2001 — p.104
[34] cf. seção anterior, p.15
[35] CAMENIETZKI, C.Z. A cruz e a luneta. RJ: Access, 2000 — p. 93
O período mais recente da história da astrologia
É importante citar dois astrólogos do século XVII, Morin de Villefranche (1583-1650), que publicou a obra Astrologia Gallica [36], e seu contemporâneo inglês, William Lilly (1602-1682), que publicou o livro Christian Astrology [37], ambos extremamente úteis aos astrólogos até os dias de hoje.
Pode-se dizer que a astrologia sobreviveu ao Renascimento mas, no início do período moderno, três fatos foram derradeiros:
1) a criação da Academia de Ciências por Colbert, em 1666, sem incluir a astrologia [38];
2) o decreto de Luís XIV, em 1682, condenando a difusão dos almanaques astrológicos;
3) a proibição, a partir de 1710, da impressão das Efemérides e das tábuas de casas.
Dessa maneira, a astrologia caiu no ostracismo e passou a ser vista com olhares desconfiados. Conforme Arkan Simaan, “foi o famoso ‘caso dos venenos’ que veio, entretanto, pôr fim à moda da astrologia na alta sociedade, por causa do horror que suscitou e, principalmente, porque incentivou Luís XIV e Colbert a proibirem tais atividades” [39]. O caso dos venenos envolvia alguns astrólogos na morte por envenenamento de crianças e cônjuges de seus clientes. Foucault, ao contrário, afirma que as práticas condenadas pelo decreto de 1682 não desapareceram, pois o rigor da lei foi diminuindo passo a passo. [40]
Como vimos, a astrologia tornou-se marginal, por isso, misturou-se com outros saberes, mascarou-se e fragmentou-se para poder sobreviver. As sociedades secretas conservaram a astrologia, considerando-a uma ciência fundada na natureza. Os almanaques rurais, que forneciam informações de plantio, colheita, calendário, etc., também sobreviveram.
Vale ressaltar que, na Inglaterra, a história é um pouco diferente, pois os ingleses continuaram praticando e publicando astrologia, principalmente depois do movimento teosófico (1875). Em Portugal, parece que não houve nenhum tipo de proibição, e os almanaques astrológicos continuaram sendo impressos, apesar da sua progressiva descaracterização [41].
Em 1930, circula o primeiro jornal com uma seção de astrologia, o Sunday Express e, em 1932, surgem os primeiros horóscopos na revista feminina, Journal de la Femme. Começa um novo boom da astrologia, ainda mais incentivado pelas facilidades informáticas da segunda metade do século XX. Pode-se dizer que, numa tentativa de se adequar a um certo modelo de cientificidade, a astrologia foi “psicologizada” e estudada por método estatístico, com os trabalhos de Paul Choisnard (1867-1930) e Michel Gauquelin (a partir de 1949).
Atualmente, apesar do preconceito que ainda vigora, devido às modificações que sofreu ao longo do tempo para poder sobreviver, a astrologia vem sendo admitida vagarosamente no mundo acadêmico, constituindo um objeto de estudo de rico material histórico, filosófico, pedagógico, enfim, multidisciplinar.
(Este artigo constitui parte da monografia acadêmica da autora Considerações acerca da cientificidade da astrologia à luz das ideias de Popper, Kuhn e Feyerabend.)
[36] MORIN, J.B. Astrologia Gallica. Tradução de Richard S. Baldwin (do original em latim de 1661). Washington: AFA, 1974
[37] LILLY, W. Christian Astrology. Londres: Regulus Publishing Co, 1985 (fac-símile de 1647)
[38] Essa decisão política compõe o cenário de um “projeto” de modernidade, cujo ideal de reflexão autônoma do sujeito é iniciado por Descartes. As formas de conhecimento baseadas na semelhança, como é o caso de, pelo menos, parte da astrologia, não faziam parte desse projeto. [cf. FOUCAULT, M. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Tradução de Elisa Monteiro. RJ: Forense Universitária, 2000 — p. 10 (Coleção Ditos e Escritos II)
[39] SIMAAN, A. A imagem do mundo: dos babilônios a Newton. Tradução de Dorothée de Bruchard. SP: Companhia das Letras, 2003 — p. 264
[40] FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Neto. SP: Editora Perspectiva, 2002 — p. 96
[41] cf. CAROLINO, L.M. A escrita celeste: almanaques astrológicos em Portugal nos séculos XVII e XVIII. RJ: Access, 2002 — p. 81
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