A cultura e a baba que escorre
da boca
A morte precisa ser colocada em seu devido lugar
para figurar como uma parte do cosmo e ser aceita, o que abranda
seu impacto na estrutura do universo organizado. Assim, segundo
a visão da ciência, o ser humano necessita criar um
referencial de existência para a vida após a morte.
Desde o culto aos ancestrais (que remonta ao período de formação
da civilização greco-romana) e seus rituais de deposição
de alimentos, bens e outros objetos que o morto preferia em vida,
até a cremação do cadáver, o ser humano
busca ordenar o caos que a morte representa. Ele dá ao morto
o status de vivo em condições tais que sua ausência
no mundo dos vivos seja compensada com certos rituais e haja um
lugar para ele no cosmo.
A cultura também atua na transformação
do corpo humano, nas preferências, apetites e estética.
Até mesmo as reações orgânicas do nojo
e doenças psicossomáticas são condicionadas
pela cultura. O mesmo com relação ao modo de sentir
a realidade circundante.
Como exemplo do nojo, temos em nossa cultura verdadeira
aversão às secreções do corpo. Aquilo
que sai do corpo passa a ser visto como nocivo, repulsivo, contaminante.
A quase todas as secreções se atribui um caráter
pernicioso, com exceção da lágrima e, em alguns
casos onde seja útil, a saliva (como para mostrar a direção
do vento ao molhar o dedo). A explicação para a lágrima
não ser considerada perniciosa e ser muitas vezes tocada
e degustada, está no que ela representa e também na
parte do corpo de onde provém. A idéia de sagrado
e profano associada ao corpo dá essa tonalidade. O corpo,
neste sentido, é codificado simbolicamente pela cultura e
o comportamento que aparentemente se origina de fatores biológicos
muitas vezes é oriundo de normas da consciência social.
Ao corpo impõem-se as interdições derivadas
da noção de sacralidade, pois significa, ao mesmo
tempo, Vida e Morte, normalidade e patologia, sagrado e profano,
puro e impuro.
Aquilo que está dentro do corpo ainda é
considerado puro, mas uma vez fora do corpo identifica-se como "nojento".
A saliva estando dentro da boca é normal, mas ao sair na
forma de baba provoca reações de repulsa. Só
que é a mesma saliva! Voltando à lágrima, ela
representa em nosso sistema de símbolos culturais uma secreção
que emerge sob o controle social, pois é a cultura que determina,
de um modo geral, quando e por que motivos ela deve ser vertida.
Assim, encaixada no sistema, ela é vista como cristalina,
pura ou sublime.
O sexo e o sistema excretor estão entre os
tabus mais freqüentes na maior parte das sociedades. Ambos
representam simbolicamente um estado de impureza e um certo descontrole
natural que a cultura não pode suportar, pois provocam uma
descontinuidade da ordem estabelecida. É o caso das proibições
de incesto, tão bem explicadas nas teorias de Freud. Entre
os tabus sexuais incluem-se os palavrões ou expressões
consideradas ofensivas para uma dada sociedade. Na língua
portuguesa, por exemplo, a maioria das expressões consideradas
ofensivas ou repulsivas são referentes ao sexo. No idioma
inglês, no entanto, existe referência ao ato incestuoso
com a mãe [Mother fucker - literalmente,
aquele que faz sexo com a mãe], o que não acontece
no português.
A menstruação recai mais a fundo ainda
nesta categoria, pois não pode ser controlada e, além
disso, tem a conotação de morte, isto é, representa
a perda de uma possibilidade de vida. Assim, em algumas culturas
uma mulher menstruada não pode cozinhar, de forma que não
"contamine" os alimentos com a aura de sua impureza, de
seu potencial de morte ou descontinuidade. A mesma proibição
se dá para as funções religiosas. Às
mulheres menstruadas é vedado o procedimento ritual para
algumas culturas, pois seria misturar o profano com o sagrado ou
o impuro com o puro.
Tudo aquilo que tem um caráter ambíguo
na visão de nossa cultura tem uma relação com
a sensação de perigo (descontinuidade da vida), de
descrédito, e por isso acaba sendo repudiado ou temido. Como
exemplo disso, na natureza repudiamos o sapo, animal concomitantemente
vivo e frio, vivendo ao mesmo tempo no chão e na água.
Teme-se o morcego, ao mesmo tempo mamífero e voador, de hábitos
noturnos e habitando o interior de cavernas. Nossas figuras folclóricas
representam bem a repulsa ou temor da cultura a criaturas de características
ambíguas. É o caso do lobisomem, meio lobo, meio homem;
a iara ou a sereia, meio mulher, meio peixe; o boto, ao mesmo tempo,
para o imaginário popular, mamífero e peixe, ou um
peixe que se transforma em homem. O boto costuma ser temido e amaldiçoado
em algumas regiões do Norte brasileiro não pela possibilidade
de ferir alguém, mas pela crença na transformação
e na astúcia desta criatura mitológica, supostamente
capaz de engravidar as jovens que se aventuram na beira dos rios.
Eis, portanto, um processo de descontinuidade mostrado na crença
popular, envolvendo a ambigüidade, o sexo, a mulher (que sangra
por 5 dias, mas não morre) e a possibilidade de ser alterado
descontroladamente o ciclo de nascimento, vida e morte.
O que é valorizado numa cultura pode
não o ser na outra. Na ilustração: europeus
instalam administração colonial em ilhas da atual
Indonésia. Logo conheceriam o povo das ilhas Trobriand,
de que falaremos neste artigo. |
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Eis outras criaturas ambíguas
do folclore brasileiro que se enquadram na categoria do atemorizante
ou do incontrolável: o caipora, com seus pés virados
para trás, a mula sem cabeça, que é a concubina
do padre, ou seja, uma mulher que desafia a regra, que profana,
e tem relações com um homem que deve ser casto e puro,
quer dizer, sagrado. As substâncias viscosas também
são ambíguas, pois não são nem sólidas
nem líquidas, o que faz com que a maioria delas seja relegada
à categoria de coisas "nojentas" e seu contato
faça com que tentemos "purificar" o mais rápido
possível o local atingido. A mesma ambigüidade e repulsa
é sentida por determinados grupos sociais onde a postura
masculina requer uma definição muito clara. Nesses
casos, a homossexualidade também configura uma espécie
de ameaça ao universo ordenado desses grupos.
Astrologia:
tão ambígua quanto um sapo
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