Nos idos de 1717, o Vale do Paraíba paulista era o caminho natural para Minas Gerais, cujo território começava logo depois da travessia da Serra da Mantiqueira. Do outro lado, já nas montanhas, chegava-se a Baependi (perto da atual Caxambu) e daí seguia-se até São João Del Rei e Vila Rica.
Na noite de 16 de outubro a vila de Santo Antônio de Guaratinguetá apresentava um movimento fora do normal, pois o Conde de Assumar, novo governador da Capitania de São Paulo e Minas Gerais, passaria pela localidade no dia seguinte, um domingo. Para agradar o governador, o Capitão-mor da vila deu ordem aos pescadores para que levassem suas canoas e redes para as águas do Paraíba, e delas retirassem a maior quantidade possível de peixes. Contudo, os cardumes pareciam ter adivinhado o risco. Lançavam-se as redes e nada se pescava.
Por volta da meia-noite, todos os barcos já haviam desistido, menos dois: o de Domingos e João Alves Garcia, pai e filho, e o de Felipe Pedroso, cunhado de Domingos. Com o dia prestes a raiar, os dois barcos encontravam-se num ponto conhecido como porto de Itaguaçu, bem longe do local de partida. A narrativa do que ocorreu a seguir está no Almanaque de Nossa Senhora Aparecida:
Numa última tentativa atiraram suas redes na água. Ao tentarem retirá-las do fundo do rio, uma delas deu sinal que havia pego alguma coisa. A esperança voltou e as redes saíram das águas. Entretanto, ao invés do brilho prateado das escamas dos tão desejados peixes, o que os três viram foi a negritude do corpo de uma imagem que representava a Virgem Maria. O corpo estava ali, inerte e preso às malhas da rede. E a cabeça?
Com o corpo da imagem colocado no fundo da canoa, novamente a rede foi lançada às águas. Retirada com muita calma e expectativa, trouxe em seu bojo a cabeça da imagem antes pescada. A surpresa tomou conta dos três pescadores. Depois, experimentaram e viram que a cabeça ajustava-se perfeitamente ao corpo, formando uma imagem da Imaculada Conceição.
A imagem havia aparecido nas águas do rio Paraíba. Durante quinze anos a imagem da Senhora Aparecida esteve em poder de Felipe Pedroso, que a entronizou em sua modesta casa.
Mal sabia ele que aquela imagem negra, feita de terracota queimada, iria transformar a vida de Vila de Santo Antonio de Guaratinguetá, provocando o surgimento de uma cidade. E mais: seria coroada Padroeira do Brasil, atrairia para junto de si milhões e milhões de peregrinos e teria sua atual Basílica sagrada por um Papa.
Esta é a origem do culto. O resto é história: aos poucos, a gente simples da região passou a parar aos pés da imagem para uma oração. Vieram as primeiras ocorrências inexplicáveis, a fama da santa se espalhou e, em meados do século XIX, multidões já acorriam para a região em romaria. Em 1868 a própria Princesa Isabel veio visitar pessoalmente a imagem. Aos poucos, Estado e Igreja se davam conta da dimensão do culto que se formara em torno daquela Nossa Senhora negra. Mas seria preciso esperar até 1930 para que o Papa Pio XI proclamasse Nossa Senhora Aparecida padroeira do Brasil.
Tentemos agora compreender os elementos simbólicos e astrológicos desta história. Ao fazê-lo, estaremos lançando luz sobre alguns elementos importantes da constituição da identidade do Brasil como nação – ou seria como Estado, entidade política? Deixemos que as próprias evidências nos guiem. Os dados mais significativos são:
- A emersão da imagem, que vinha do fundo das águas;
- Sua descoberta por pescadores no final da madrugada, com o sol prestes a nascer;
- A emersão do corpo da santa antes da cabeça.
Comecemos com o óbvio. Os primeiros apóstolos de Cristo foram pescadores, e o próprio Cristo se denominava um “pescador de homens”. A conexão com Peixes, signo regente do Cristianismo, é mais do que evidente. As águas são um símbolo universal do feminino, do irracional, do afetivo, do arcaico, da matriz original. Toda a vida surgiu das águas, sendo este o elemento que guarda o mistério de nossas origens. A emergência da imagem que já surge pronta do fundo das águas barrentas do rio tem o sentido de recuperação de um símbolo que vem das entranhas do passado, ou do inconsciente, ou de ambos.
No mundo masculino e patriarcal que os portugueses tentavam implantar na colônia, eis que ressurge a Grande Mãe, a dimensão mais afetiva e maternal da divindade, presente em todas as culturas. A Afrodite grega também nasce das águas, do sêmen de Urano em contato com as espumas do mar, da mesma forma como das águas surgem também os orixás femininos africanos, Iemanjá e Oxum.
O Cristianismo, que nos primórdios supervaloriza o princípio masculino consubstanciado num Deus de características patriarcais e num Cristo másculo, aos poucos se deixa contaminar pelos cultos arcaicos aos quais se superpôs. O arquétipo da Grande Mãe ganha nova forma na pele do culto à Virgem Maria. A imagem que surge das águas do rio Paraíba é, significativamente, uma Nossa Senhora da Conceição, ou seja, aquela cujo atributo mais evidente é exatamente a possibilidade de conceber e gerar a vida.
Astrologicamente, Nossa Senhora é um símbolo de limites muito vastos, que abarca de uma única vez o universo conceitual dos três planetas que expressam características femininas: Lua, a mulher que concebe, nutre e protege; Vênus, a que ama, embeleza e suaviza; e Netuno, a que traz a misericórdia e a libertação da matéria. Observe-se que a rede que “pesca” a estatueta é um utensílio regido pela Lua; os barcos, as águas barrentas, tudo remete aos três planetas mencionados e aos signos de Água.
Libra no Ascendente: a imagem surge das águas
Cabe destacar dois aspectos do mito relacionado à origem do culto de N. S. Aparecida: o corpo emerge das águas antes da cabeça, em correspondência com a súbita irrupção de um símbolo que se dá a conhecer à consciência sem que possa ser imediatamente compreendido ou decodificado. Mas como a cabeça vem logo depois e encaixa-se perfeitamente no corpo, não se trata de um poder destrutivo ou desarticulador, mas simplesmente de um princípio que esteve provisoriamente velado e que, ao irromper, pode ser reconhecido e integrado à consciência.
O outro aspecto é a similitude entre as lendas de N. S. Aparecida e da Dama do Lago, figura da mitologia céltica pertencente ao ciclo arturiano. É ela que guarda a espada mágica Excalibur para entregá-la apenas ao homem certo, aquele que, por sua pureza, estava destinado ao trono – Artur.
O local onde a imagem foi pescada também é absolutamente especial. O Vale do Paraíba tem a peculiaridade geográfica de ser caminho terrestre obrigatório na ligação entre as três maiores cidades brasileiras, Rio, São Paulo e Belo Horizonte. A atual capital mineira ainda não existia em 1717, mas Vila Rica e São João Del Rei já eram comunidades importantes, que atraíam aventureiros de toda parte em busca dos veios de ouro recém-descobertos.
A imagem de N.S. Aparecida vestida com seu manto sugere a forma geral de um triângulo, como a lembrar que o culto à santa se estabeleceu bem no centro do triângulo formado pelas províncias mais importantes da colônia no século XVIII. A cidade de Aparecida, que surgiria em torno do porto onde a imagem foi descoberta, tem, portanto, essa localização central que contribui para lhe dar mais legitimidade como capital espiritual do país.
A emersão da imagem da santa aconteceu pouco antes do sol nascer. Trata-se de um dado essencial, pois mostra que o Sol estava na casa 1, perto do Ascendente – um ponto de manifestação e corporificação. Para reforçar, o Sol estava, naquele dia, em conjunção com Saturno em Libra, o que reforça mais ainda o sentido de materialização (Saturno) de um símbolo que, a partir daí, faria parte integrante da identidade (casa 1) do Brasil. Sol-Saturno na 1 corresponde em tudo à denominação Aparecida, dada à imagem.
Ninguém registrou a hora exata em que o corpo da imagem da santa foi içado na rede, mas é possível determiná-la com base num trabalho de retificação. O horário que propomos é o de 5h09 LMT, com base em diversas evidências confirmadoras (detalhadamente analisadas no curso Progressões Secundárias e Arcos Solares, da Escola Astroletiva).
Observando este mapa, vemos um Ascendente em 17º08′ de Libra e a presença de um raro retângulo formado por Lua, Netuno, Plutão e Mercúrio, todos em signos femininos (Água e Terra) e formando entre si uma trama de oposições, trígonos e sextis. Trata-se de uma configuração impressionante para um mapa igualmente impressionante.
A Lua tem um papel de destaque nesta carta, já que rege o Meio do Céu, em Câncer, e encontra-se em Peixes, signo das águas infinitas, na casa 6. Esta é a casa significadora da gente subalterna, simples, dos trabalhadores (e desempregados), da doença e da cura. A Lua está em oposição a Plutão na casa 12, mostrando que a lenda da emersão da imagem da santa teria um forte impacto subliminar sobre o imaginário coletivo.
Por que N. S. Aparecida tornou-se padroeira do Brasil? Como explicá-lo astrologicamente? Cabe, em primeiro lugar, eleger o mapa do Brasil que pode ser comparado com o da emersão da santa, e só existe uma escolha lógica: a carta do Descobrimento, que consubstancia as tendências gerais da evolução da terra ao longo de todo o período colonial. O mapa do Descobrimento tem, segundo nossas retificações, o Ascendente no final de Libra e a Lua em Peixes, na casa 5, conjunta a Urano. Saturno e Plutão estão opostos no eixo das casas 1 e 7, mostrando a violência do processo de ocupação da terra à custa da desarticulação de culturas nativas e da exploração do trabalho escravo.
Como esta oposição ocupa um par de signos interceptados (que não tocam nenhuma cúspide de casa), não se concretizou o sentido mais desagregador desta oposição – que poderia ser significadora do esfacelamento territorial da colônia. O que prevaleceu foi a imagem de povo cordial, disposto a acomodar conflitos pela negociação, e é claro que tal imagem, mesmo não sendo absolutamente verdadeira, é compatível com o Ascendente em Libra e com Vênus, o planeta regente, em Gêmeos, signo de diálogos e espertezas.
O mapa do Descobrimento já anunciava Aparecida
O mapa da aparição da santa reitera o mapa do Descobrimento. Ambos têm o Ascendente em Libra e a mesma Lua em Peixes. O mais impressionante, porém, é verificar que Vênus, regente da carta de N. S. Aparecida, está em Escorpião (signo adequado para as águas misteriosas e impenetráveis do Paraíba), sobre Plutão na casa 1 do mapa do Descobrimento e sobre o Meio do Céu da carta da Independência!
É como se aquela região do zodíaco, nos últimos graus de Escorpião, fosse sucessivamente martelada por diversos eventos significativos, todos relacionados à constituição de uma identidade coletiva: o primeiro avistamento da terra pelos portugueses, a independência e, entre a descoberta e a autonomia, a emergência de um símbolo capaz de unificar em torno de si, no plano mítico-religioso, o sentimento nacional.
Vênus de Aparecida no Meio do Céu do Grito do Ipiranga é a expressão astrologicamente perfeita da relação do país com sua santa mais querida. Ela ocupa, no mapa do Brasil, o lugar mais alto, da rainha e da padroeira. O símbolo transcende o catolicismo e reaparece nos cultos afro-brasileiros na forma de Oxum, o orixá das águas revoltas dos rios, bela e generosa, protetora das grávidas, dos partos e das crianças de colo.
Há também alguns pontos de contato de Aparecida com Iemanjá, se bem que esta última, cultuada como rainha das águas e grande mãe, esteja mais identificada com a vastidão ilimitada dos oceanos (o nome Iemanjá, em iorubá, significa literalmente mãe de todos os peixinhos). E há, finalmente, uma componente de sincretismo entre N. S. Aparecida e a mãe-d’água, ou iara, ente fantástico que habita rios e lagos na mitologia indígena. Todas – Aparecida, Oxum e Iara – são facetas de Vênus em Escorpião.
A relação de Lula com N. S. Aparecida
Quando um especialista em marketing eleitoral consegue associar a imagem de um candidato a símbolos profundamente enraizados no imaginário nacional, já tem aí meio caminho andado para a vitória. Quando essa associação evoca conteúdos astrológicos efetivamente existentes nos mapas do candidato e do país, a identificação do eleitorado é ainda mais imediata.
Provavelmente o marqueteiro Duda Mendonça, que desenvolveu a campanha de Lula em 2002, nada conhece de Astrologia. Mesmo assim, e com base apenas no instinto apurado em múltiplas campanhas eleitorais, conseguiu tirar da cartola uma conexão genial, que, reunindo fatores complexos, atingiu em cheio o público brasileiro por canais nada racionais. Vamos à história.
O fator Libra-Escorpião, presente no mapa da aparição da padroeira, levou-nos a explorar a existência de algum possível nexo com o mapa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para explicar o que descobrimos, é preciso lembrar que Quíron, asteroide descoberto em 1977, foi, na mitologia grega, um centauro sábio que, vítima de uma dolorosa flechada, era capaz de curar o sofrimento de qualquer outro ser, menos o próprio. Por analogia, muitos astrólogos definem Quíron como o ponto do mapa onde temos uma “ferida incurável”, algo que podemos compreender e aliviar nos outros, mas jamais em nós mesmos.
Lula tem Quíron em 12º55′ de Libra, em conjunção com Vênus e Júpiter, como a indicar que sua “ferida incurável” tem relação com as experiências de amor e compartilhamento. Efetivamente, a primeira esposa de Lula, quando estava no oitavo mês de gravidez, recebeu um diagnóstico incorreto de anemia. Na verdade, era portadora de uma grave hepatite. Morreu três dias depois de ser internada num hospital público, junto com o bebê que não chegou a nascer.
Quíron de Lula está a apenas quatro graus do Ascendente da aparição da imagem da santa, em 1717. Lula tem também uma tripla conjunção em Câncer (Saturno-Marte-Lua) formando quadratura com a conjunção Sol-Saturno no mapa da aparição da padroeira. Estas conexões um tanto tensas podem sinalizar o fato de que Lula, a partir de seu sofrimento pessoal, tinha condições de estabelecer um canal de sintonia com os sofrimentos e expectativas do povo que o elegeu.
Experiências dramáticas de perda tendem a levar o indivíduo a uma atitude de endurecimento emocional, ao ressentimento e à paralisia afetiva. Quando são bem trabalhadas, todavia, podem conduzir a um patamar mais amplo de compreensão. Todos os heróis míticos precisam passar por alguma prova, uma espécie de iniciação que testa sua resistência e amadurecimento.
É significativo que Lula tenha passado exatamente pelo desafio pessoal da perda daquilo que a padroeira do Brasil significa. Lula reconstruiu sua vida, casou-se de novo e, durante a campanha eleitoral de 2002, amealhou muitos votos junto ao eleitorado feminino, pois podia dirigir-se às mulheres brasileiras com a legitimidade de quem as compreendia muito de perto. Esta identificação nada tem a ver com ética, ideologia, competência ou honestidade. Pode beneficiar figuras tão distintas quanto Lula, Jair Bolsonaro, Kim Jon-un ou Martin Luther King. É um processo que ocorre num nível não racional, e depende da conjugação de dois fatores:
- identificação real da figura pública com o conteúdo mítico, em algum aspecto de sua atuação pública ou privada;
- evidenciação desta conexão através de imagens impactantes e que façam parte do repertório do público-alvo (e aí entra a competência dos marqueteiros).
Como numa espécie de catarse, Lula aproveitou a campanha eleitoral do primeiro turno para contar sobre a dramática morte da primeira esposa. E, no último dia de aparição na TV antes das eleições, despediu-se com uma peça de propaganda que apresentava um impressionante desfile de grávidas e de mães de recém-nascidos, todas a correr num parque em Curitiba, vestidas de branco.
No plano simbólico, estava firmado o pacto entre o candidato e a padroeira. Ao corporificar o papel de defensor dos valores de Vênus, Lua e dos signos de Água, Lula venceu as últimas resistências e pavimentou o caminho para uma grande vitória eleitoral. O sisudo José Serra, com uma campanha estritamente ancorada em argumentos racionais, ficou a ver navios…