Introdução
A astrologia é praticada há milênios, nas suas mais diversas formas, por todas as sociedades do planeta. Desde os mais remotos grupamentos humanos que se tem notícia, até a civilização planetária atual, passando por todas as culturas orientais e ocidentais, não houve sequer uma época em que o homem não olhasse para o céu, buscando uma compreensão maior do mundo ao seu redor ou, pelo menos, uma orientação para o seu dia a dia. Para isso, com base nos ciclos regulares que observou na natureza, o homem estabeleceu relógios, calendários e sistemas astrológicos.
É claro que não se pretende aqui dar conta de todas essas variedades de sistemas astrológicos, p.ex., as astrologias orientais, devido à extensão e à complexidade desse tema, tendo em vista o enraizamento da prática astrológica até os dias de hoje nas culturas do oriente, totalmente diversas das culturas que se estabeleceram a princípio na Europa e, depois, em suas áreas de influência cultural, como as Américas. Não se trata aqui também das astrologias pré-colombianas, nem de qualquer outra que não seja a chamada “astrologia ocidental”, assunto que já é suficientemente amplo.
Apesar da diversidade de técnicas e práticas, é possível afirmar que o postulado fundamental de qualquer astrologia é que há uma relação entre um determinado conjunto de eventos celestes, concebidos do ponto de vista geocêntrico, e certos eventos terrestres.
No mundo ocidental, segundo Lynn Thorndike [1], o sistema astrológico foi considerado lei universal da natureza até Newton. Trata-se, portanto, de um saber coeso, cuja finalidade seria entender os acontecimentos na Terra por meio da suposta relação com certos fenômenos regulares e previsíveis que ocorrem no céu. Se essa é uma relação simbólica apenas ou física de fato, teremos a oportunidade de pensar aqui.
Tendo isso em vista, a capacidade preditiva da astrologia não só é algo plausível, considerando-se a previsibilidade do movimento celeste, como foi uma das suas principais aplicações durante milhares de anos. O que não significa que o nosso destino esteja escrito nas estrelas. Segundo Plotino, “O movimento dos astros indica os eventos futuros, e não os produz, como se crê frequentemente” [2]. Logo, essa indicação dos astros não teria um caráter determinístico, e sim denotativo, expressando uma predisposição para que certos eventos ocorram.
Notas:
[1] cf. THORNDIKE, L. “The true place of astrology in the history of science” in Isis. 1955 — p. 273-278
[2] PLOTINUS. Ennead II-3-1. Tradução de A.H. Armstrong. Cambridge: Harvard University Press, 1966 — minha tradução e meu grifo
Primeiros registros: Mesopotâmia, Grécia e Egito
A astrologia ocidental é parte integrante da herança cultural recebida do Oriente Médio. Sua origem ainda é discutida [3], mas os primeiros registros documentados de que se tem notícia atualmente foram feitos em escrita cuneiforme sumeriana sobre tabuinhas de argila [4], e são originários da região de Lagash, governada por Gudea (aproximadamente 2122-2102 a.C.). Entretanto, o principal documento da astrologia mesopotâmica que nos restou é o Enuma Anu Enlil, uma compilação de cerca de setenta tabuinhas encontradas na biblioteca real de Nínive, escritas no século VII a.C., que incorporam material mais antigo. [5]
Costuma-se atribuir a Berose, sacerdote babilônico enviado à Grécia após a conquista da Mesopotâmia por Alexandre (331 a.C.), a responsabilidade por levar a astrologia mesopotâmica para a Grécia. Contudo, Tamsym Barton refere-se a Sudines, um adivinho babilônico, que viveu cerca de uma geração após Berose, como “primeiro indivíduo datável citado como fonte por pelo menos um astrólogo” [6]. Esse astrólogo, que cita Sudines, é Vettius Valens (século II d.C.).
Barton conta também que há quem atribua ao astrônomo grego, Hiparco (século II a.C.), a responsabilidade pela popularização da astrologia. “Entretanto, a maioria dos historiadores modernos tem menos inclinação que os antigos a identificar indivíduos como responsáveis por desenvolvimentos intelectuais, e olham preferencialmente para as circunstâncias do período a fim de explicar o intercâmbio de ideias.” [7]
Dessa maneira, não faz sentido atribuir a um ou mais indivíduos a responsabilidade pela difusão do sistema astrológico. Berose e Sudines seriam, portanto, exemplos das migrações de indivíduos da Mesopotâmia para a Grécia, que ocorreram após as conquistas de Alexandre, responsáveis pela transmissão das tradições mesopotâmicas.
Independentemente de não ser possível datar com precisão se a astrologia grega começou realmente no século III a.C, tudo indica que, conforme as evidências mencionadas anteriormente, ela partiu da Mesopotâmia e foi levada para a Grécia, onde ganhou a aparência de ciência [8]. É no mundo helênico, portanto, especialmente na Alexandria de Ptolomeu (século II d.C.), que se dá a grande sistematização da astrologia, provavelmente também com influências indianas.
Em seu artigo, A influência de Aristóteles na obra astrológica de Ptolomeu (O Tetrabiblos), Roberto Martins faz uma análise do Tetrabiblos, comparando-o com outras obras da época, e demonstra que a grande influência de Ptolomeu, ao contrário do que afirma a interpretação tradicional, é de Aristóteles e não dos estoicos [9], considerando-se que a filosofia aristotélica admite que eventos terrestres, como os fenômenos meteorológicos, as marés, as formações rochosas e a geração de vida na Terra, sejam afetados pelos movimentos dos corpos celestes, conforme postula a astrologia [10].
Além disso, a concepção de mundo na qual Aristóteles se insere, que é apresentada no Timeu [11], de Platão, é absolutamente compatível com o sistema astrológico. Segundo Marcus Reis, em texto ainda não publicado, há pelo menos quatro pontos importantes no Timeu que corroboram isso: 1) visão teleológica da realidade, que nos possibilita dar sentido aos fenômenos celestes e traçar uma relação com os terrestres; 2) isonomia entre o cosmos, a cidade e o homem, i.e., essas três instâncias da realidade possuem estruturas semelhantes e correlatas; 3) estudo das características e funções dos quatro elementos (fogo, terra, água e ar); 4) o homem deve buscar pautar sua vida e sua alma de acordo com as revoluções dos orbes celestes.
Há que se mencionar também a contribuição egípcia, que influenciou mais a astrologia hermética, fundada em textos herméticos [12] e gnósticos, nos quais o contexto religioso é preponderante. Entretanto, segundo Barton, os textos atribuídos a Nechepso e Petosiris, ou aos “antigos egípcios”, que são considerados textos herméticos pela tradição, parecem uma versão egípcia da literatura astrológica mesopotâmica [13].
O fato é que não é possível ter certeza de que a chamada astrologia helenista tenha sido desenvolvida no Egito, embora, ao longo do século I da era cristã, essa tenha sido a crença vigente, até porque Alexandria tornou-se o centro, não só astrológico, mas intelectual do mundo ocidental. Dessa maneira, muitos astrólogos cultivavam ou faziam referência aos textos herméticos.
Notas:
[3] Suméria/Babilônia para alguns, Egito para outros, ou alguma outra civilização que nos teria deixado seus fragmentos, considerando-se a referência documentada a uma prática ainda mais antiga. Essa discussão existe há muito tempo, constando, p.ex., em obras como o De divinatione, de Cícero, na qual ele duvida dos 470 mil anos de idade atribuídos à astrologia.
[4] Cabe lembrar que a Suméria ficava na região sul da Mesopotâmia, e a Acádia, na região norte. A escrita cuneiforme foi inventada pelos sumérios e tornou-se, já no reino da Babilônia (segundo milênio a.C.), sinônimo de poder e prestígio para uma elite aristocrática que, além de registrar detalhadamente as observações celestes, para fins de calendário, agricultura e astrologia, redigiu leis, como o famoso “Código de Hammurabi” [cf. Hammurabi, Rei da Babilônia. O código de Hammurabi. Tradução de E. Bouzon (do original cuneiforme). Petrópolis: Ed. Vozes, 1976]
[5] cf. BARTON, T. Ancient astrology. London & NY: Routledge, 1994 — p. 10
[6] ibid — p. 23 — minha tradução
[7] idem
[8] Pode soar anacrônico o uso do termo “ciência” no contexto grego, dado que no mundo antigo nunca houve uma distinção clara entre ciência e religião, como há atualmente. Entretanto, como esse assunto será discutido mais detalhadamente no próximo capítulo, reservemo-nos o direito de usar esse termo num sentido lato, abarcando inclusive o impulso científico de pensamento abstrato, análise, dedução e pesquisa dos povos mesopotâmicos [cf. BARTON, T. Ancient astrology. London & NY: Routledge, 1994 — p. 31]
[9] cf. mais informações sobre o estoicismo e a astrologia na próxima seção.
[10] cf. MARTINS, R. A. “A influência de Aristóteles na obra astrológica de Ptolomeu (O Tetrabiblos)” in Trans/Form/Ação. SP: 1995 — p. 51-78
[11] PLATÃO. Timeu — Crítias — O segundo Alcibíades — Hípias Menor. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2001
[12] A origem do hermetismo remonta a Hermes Trismegisto, personagem semidivino do Antigo Egito. Platão e Pitágoras são considerados “iniciados” na filosofia hermética, Bruno e Campanella defenderam o hermetismo, e Copérnico cita Hermes na introdução do De Revolutionibus.
[13] cf. BARTON, T. Ancient astrology. London & NY: Routledge, 1994 — p. 31
O boom em Roma e Alexandria
Em Roma, a astrologia aporta como parte da cultura da Grécia, conquistada no período de 229-146 a.C., tendo sido absorvida e popularizada por essa cultura. Por volta do século I a.C., já se tem notícia de astrólogos romanos: Tarutius de Firmum e Publius Nigidius Figulus, que também era senador e aliado político de Cícero.
O estoicismo, escola filosófica que influenciou consideravelmente a elite romana, foi um dos principais elementos responsáveis pela respeitabilidade atribuída à astrologia em Roma. Desde o século III a.C. os estoicos defendiam todo tipo de prognóstico. Posidonius (135-50 a.C.), p.ex., foi uma figura de relevo na popularização da visão estoica acerca do destino. Contudo, não se deve exagerar tal influência, dado que filósofos e astrólogos eram ocasionalmente expulsos de Roma.
Segundo Barton, conforme a república oligárquica foi declinando e a monarquia se impondo, a astrologia foi ganhando status. Os senadores precisavam ter os astrólogos sob controle do estado, pois as decisões eram tomadas pelo Senado e não por um indivíduo. Por outro lado, os imperadores usavam os astrólogos para legitimar suas posições, o que fortaleceu a ideia da infalibilidade da astrologia. Entretanto, essa era uma faca de dois gumes, dado que ela também seria infalível para os rivais do trono, daí as tentativas de regulamentar a astrologia.
Não é novidade para ninguém que Augusto, governante de 30 a 14 a.C., mandou cunhar o símbolo do Capricórnio nas moedas romanas. A obra em versos de Manilius, o Astronomicon, estava sendo escrita nessa época. Segundo consta, Tiberius, o governante tirânico posterior a Augusto, foi o primeiro a contar com um astrólogo em sua corte. Ele chamava-se Thrasyllus, provavelmente o responsável por levar a astrologia hermética para Roma, e primeiro de uma linhagem de astrólogos com o mesmo nome.
Dorotheus de Sidon escreveu em versos, como Manilius, provavelmente entre 25 e 75 da nossa era, também fazendo referência à tradição hermética. Sua obra foi utilizada e conservada por outros astrólogos, como Firmicus Maternus (século IV), Hephaestion de Tebas (século IV) e Retorius (século VI).
Ao contrário de Ptolomeu, cuja obra dedica-se exclusivamente a sistematizar a teoria astrológica, o astrólogo Vettius Valens é uma fonte fundamental sobre como era a prática astrológica no século II d.C. Em sua obra, Anthologiae [14], compilou cerca de 130 mapas. Natural da Síria, Valens escreveu com dificuldade em grego — esse era o pré-requisito para um escritor ser levado a sério —, provavelmente, entre 154 e 174.
Cícero (século I a.C.) fez muitas críticas à astrologia, que são tratadas por Ptolomeu bem no início do Tetrabiblos [15]. A maioria delas diz respeito ao determinismo astrológico, mas, como mencionado antes, a maior influência de Ptolomeu foi provavelmente aristotélica e não estoica, e o tipo de astrologia que preconizava era não fatalista, conseguindo dar conta dessas críticas sem grandes problemas, associando a ideia de tendência, igualmente usada na meteorologia. Sextus Empiricus (século III) também fez críticas em relação ao determinismo astral.
À esquerda: Posidonius (135-50 a.C.), pensador importante na divulgação da filosofia estoica; à direita, Plotino, filósofo neoplatônico do século III da era cristã. No topo da página, uma versão renascentista da obra de Firmicus Maternus.
O filósofo neoplatônico, Plotino (século III da era cristã), ataca a astrologia fatalista, ressaltando, assim como Ptolomeu já o fizera no Tetrabiblos, os diversos outros fatores que determinam o destino. Em suas Enéadas [16], ele admite que as estrelas indicam o futuro, numa escrita que pode ser lida por quem é capaz de usar a analogia sistematicamente.
Plotino fazia críticas aos astrólogos e suas práticas, e não à astrologia. Assim como Plotino, é possível afirmar que, até a conversão de Constantino (312 d.C) — o primeiro imperador romano a se converter ao cristianismo —, ninguém negava que as estrelas “influenciavam” os eventos na Terra. Duvidava-se frequentemente, entretanto, da capacidade de os astrólogos preverem tais eventos.
Notas:
[14] VALENS, V. Anthologies. Tradução de Joëlle-Frédérique Bara. Leiden: E.J. Brill, 1989
[15] PTOLÉMÉE. Tetrabiblos. Tradução de Nicolas Bourdin / Revisão de André Barbault. Paris: Philippe Lebaud Éditeur, 1986
[16] cf. PLOTINUS. Ennead II-3-1. Tradução de A.H. Armstrong. Cambridge: Harvard University Press, 1966
Eliane Caldas diz
Muito obrigada, Cristina por compartilhar seus valiosos conhecimentos.