Os planetas e asteroides do sistema solar recebem, ao serem descobertos, o nome de uma divindade mitológica. Esta escolha, normalmente feita por astrônomos céticos, sem qualquer participação de astrólogos, sempre revela impressionante sincronia com relevantes questões que afetam a humanidade. Foi o que ocorreu com o planeta anão Sedna, descoberto em 2004, cuja denominação faz referência a uma deusa do povo Inuit (esquimó) do Canadá, Alaska e Groenlândia. Se você não leu o artigo que abre esta série, aproveite para visitá-lo:
Como os mitos do povo Inuit do Ártico são transmitidos por via oral, registram-se diversas variações em torno do mesmo tema, dependendo da memória ou da imaginação de cada contador de histórias. Os relatos sobre Sedna, que ocupam um lugar fundamental na cosmogonia ártica, são apresentados sob uma enorme variedade de formas, mas alguns detalhes sempre estão presentes, constituindo o cerne do mito. Vamos a ele.
Sedna, a esposa de uma ave de rapina
Filha de um grande caçador de uma comunidade litorânea, Sedna era uma jovem formosa e já em idade de casar. Diversos moços de sua aldeia já se haviam apresentado como pretendentes, mas ela recusara todos. O pai manifestava preocupação, pois estava ficando idoso e não poderia manter Sedna indefinidamente.
O melhor destino que uma jovem esquimó pode esperar é casar-se com um caçador jovem e forte, capaz de sustentá-la com os frutos da caça e da pesca. Mas Sedna não se interessava por nenhum pretendente, parecendo esperar por alguém especial.
Um dia apareceu na aldeia um visitante bem apessoado, de aparência sedutora e vestido com belas peles. Prometeu a Sedna que, se ela o aceitasse em casamento, teria sempre uma tenda limpa e confortável, peles macias para dormir e a melhor carne que o Ártico pudesse dar. Disse ainda que garantiria o sustento de seu pai, enviando-lhe periodicamente a caça que a velhice já não lhe permitia obter com a mesma fartura de outrora.
Encantada, Sedna aceitou a proposta e foi levada por seu novo marido para uma ilha distante. Lá, descobriu a dura verdade: o homem que parecia tão bonito e simpático despiu-se do disfarce de peles e mostrou ser um fulmar (ave de rapina do Ártico).
O marido-pássaro era cruel e de péssimo caráter, mantendo Sedna praticamente prisioneira. Dava-lhe para comer apenas restos de peixe cru e, como casa, uma tenda terrivelmente suja e cheia de furos por onde entrava o vento gelado. Sedna chorava todos os dias, e o vento levava seus lamentos para muito longe.
A traição paterna
Um dia, ao ouvir os gemidos de Sedna que chegavam com a ventania, seu pai resolveu visitá-la. Desconfiava que algo não andava bem, já que nunca recebera os alimentos que o marido-pássaro um dia prometera. Saiu então, em seu caiaque, remando pelo oceano gelado, em busca da ilha para onde a filha fora levada.
Ao chegar perto, ouviu nitidamente os lamentos de Sedna e apressou as remadas. Chegando lá, encontrou a filha infeliz e maltratada. Como o marido-pássaro estava longe, o pai aproveitou para fugir com de Sedna no caiaque, rumando rapidamente para a aldeia nativa. Contudo, a viagem era longa. Em dado momento, pai e filha ouviram gritos e ruflar de asas. Era o marido-pássaro que, tendo descoberto a fuga, vinha furioso, seguido por outras aves de rapina, para buscar a esposa de volta.
O pai tentou remar mais rápido, mas de nada adiantou: o marido-pássaro atacou o caiaque com violência e, tocando o mar com a ponta da asa, ordenou que ondas gigantescas se levantassem, tal como nas piores tempestades.
A situação tornou-se desesperadora. Em pânico, o pai de Sedna percebeu que a única forma de salvar a pele seria livrando-se da filha, já que era a ela que o marido-pássaro queria. Então, para surpresa de Sedna, o velho caçador empurrou-a no mar, para que o marido a pegasse.
Todavia Sedna não tinha nenhuma intenção de morrer, nem de voltar para o terrível marido: com toda a força, agarrou-se com as mãos à lateral do caiaque, num esforço para voltar para bordo. O marido-pássaro ficou furioso e invocou novas ondas, ainda maiores.
O pai, cada vez mais desesperado, sacou então seu facão de caça e começou a cortar os dedos de Sedna, num esforço para obrigá-la a soltar o barco. Os dedos decepados da jovem foram caindo ao mar, um a um, e transformando-se nas espécies que até hoje habitam as águas do Ártico. Assim surgiram os peixes, as baleias, as focas, os elefantes-marinhos e os outros animais que servem de alimento para o povo Inuit.
Depois de perder todos os dedos, Sedna não conseguiu mais manter-se agarrada ao caiaque. Lentamente afundou nas águas, enquanto as ondas se acalmavam e seu pai conseguia fugir. Mas Sedna não morreu. Desde então vive nos abismos do oceano profundo, onde se transformou na Deusa dos Mares. A fauna do Ártico é sua companhia constante.
A reconexão com Sedna nos rituais xamânicos
Quando os homens atentam contra a natureza, quando se deixam levar pelo ódio e pelos interesses mesquinhos, quando não amam seus semelhantes, o peso dos pecados do povo Inuit chega ao coração de Sedna, que se põe a soluçar.
Solidários, todos os animais do Ártico se postam em torno dela, no fundo do oceano, o que faz faltar comida para os caçadores e pescadores. As ondas se levantam, agitadas, e o vento traz tempestades. Vem então uma época de desolação e fúria dos elementos, trazendo a fome para a comunidade.
Para que as coisas voltem ao normal, faz-se necessário um ritual de purificação. É quando entra em cena a xamã da comunidade (uma mulher sábia e conhecedora dos segredos da natureza) que promove um rito em que todos confessam seus erros, penitenciando-se e fazendo promessas de não mais maltratar a terra em que vivem.
Então, a xamã entra em transe e vai em busca de Sedna no fundo do oceano. Conversa docemente com a deusa, relatando o arrependimento e as promessas de seu povo. Depois desembaraça e penteia os cabelos negros de Sedna, retirando deles com cuidado as algas e os caranguejos.
A deusa das águas vai se acalmando aos poucos e para de chorar. Compadecida com os homens, libera mais uma vez os animais marinhos para que subam à superfície e se ofereçam como alimento.
Leia mais dois mitos de Sedna e entenda o significado astrológico do novo planeta anão: