Nota — Este artigo faz parte de uma série de quatro, que analisa o contexto do descobrimento do planeta anão Sedna e o mais conhecido dos mitos relacionados a esta divindade do Ártico. Se você ainda não leu, siga os links:
Sedna, a mulher do cachorro
Há uma variante do mito de Sedna em que, muito antes de casar-se com o marido-pássaro, deixa seu pai enfurecido ao rejeitar o noivo que ele escolhera. Então, o velho grita: “Você me desonrou e me envergonhou! Já que não quer o noivo que escolhi, que fique com o meu cachorro, único noivo digno de uma filha que envergonha o pai!”
Acontece que o cachorro do velho ouvira tudo com muita atenção. À noite, enquanto todos dormem, ele a visita e toma como companheira. Quando o pai acorda e descobre o que aconteceu, sente-se ainda mais desonrado e decide isolar a filha numa ilha deserta. Para que mais serviria uma moça que dorme com um cão?
O cachorro, entretanto, realmente gosta de Sedna, principalmente porque ela agora carrega no ventre os frutos daquela noite de amor. Assim, todos os dias o animal nada até a ilha em que Sedna está presa, levando nas costas um embornal cheio de alimentos.
O velho pai, desconfiado e enciumado, vigia o cão e descobre o que está acontecendo. Decide então trocar a comida que ele carrega no embornal por pesadas pedras. Quando o marido-cão pula na água, o peso das pedras faz com que ele afunde e morra afogado.
Sem alimentos, Sedna decide salvar os filhos, distribuindo-os por dois caiaques: num vão todos os filhos do marido-cão que também nasceram com aparência de cachorros. Estes chegam à terra firme e se transformam nos ancestrais do homem branco. No outro barco vão os filhos de Sedna que nasceram com aparência humana. Estes também chegam a terra firme e se transformam nos ancestrais do povo Inuit.
Tempos depois, arrependido, o velho pai decide resgatar Sedna de seu exílio. Trazida de volta para a aldeia, ela vive triste até o dia em que chega um belo estranho… que nada mais é do que o marido-pássaro que já conhecemos.
Sedna, a mulher-esqueleto
Uma outra lenda de grande interesse, também pertencente ao ciclo de Sedna, é a da mulher-esqueleto. Conta-se que um jovem pescador chegou com seu caiaque em uma região de águas profundas e jogou a rede. Ao puxá-las, sentiu que elas traziam algo grande e pesado. Imaginando tratar-se de um peixe avantajado, puxou com todo o entusiasmo até trazer à tona a horrível visão de uma mulher-esqueleto. Era o corpo de Sedna, comido pelos peixes e deteriorado pela longa permanência nas águas abismais.
Apavorado, o pescador pôs-se a remar a toda velocidade. Entretanto, quanto mais rápido remava, mais rápido o esqueleto era arrastado atrás dele, pois os ossos haviam-se enroscado nas redes de pesca. Chegando em terra, o pescador se pôs a correr com quantas pernas tinha. Como levava com ele a rede, a mulher-esqueleto vinha junto, pulando e chacoalhando os ossos.
O pescador pulou para sua tenda, achando que ali estaria protegido, e levou um enorme susto ao descobrir que o esqueleto entrara com ele. Conseguindo superar a sensação de pavor, só então o rapaz tomou coragem para olhar com mais atenção a mulher-esqueleto e descobrir que ela só o seguira porque seus ossos descarnados estavam enroscados na rede.
Pela primeira vez o pescador sentiu compaixão por aquela mulher agora transformada num monte de ossos. Aproximou-se, tomou coragem e começou a desembaraçar os ossos dos fios da rede. Aos poucos, libertou todo os ossos do esqueleto e deitou-os cuidadosamente sobre uma confortável pele de urso. Encerrado o trabalho, e percebendo que nada mais podia fazer por aquele esqueleto que um dia fora uma mulher, foi dormir com uma lágrima a escorrer dos olhos.
Acontece que, depois de dormir um tempo imemorial no fundo do oceano, a mulher-esqueleto sentiu-se confortável e aquecida pela pele de urso. Então ela acordou, viu seu benfeitor a dormir e viu também a lágrima a escorrer-lhe do olho.
Como a mulher-esqueleto tinha sede, levantou-se e bebeu a lágrima do pescador. E bebeu muito e muito, porque sua sede vinha de muito longe. Depois percebeu que o pescador fizera comida, e comeu um pouco dela. E como sua fome vinha de muito longe, ela comeu e comeu e comeu, até sentir-se aquecida por dentro.
E aos poucos a carne foi de novo cobrindo seus ossos, e seus cabelos cresceram belos outra vez, e seu corpo foi tomando forma. Quando o pescador acordou, descobriu que uma linda mulher dormia a seu lado. Não é preciso dizer que os dois ficaram juntos desde então, e que jamais faltou boa pesca para ele, pois ela sempre sabia lhe dizer onde jogar a rede.
O que há de comum em todos os mitos
Para resumir, é importante ressaltar alguns pontos que são comuns a todas as lendas:
- Sedna recusa os pretendentes “normais”, o que a acaba levando a uma situação-limite: ter de aceitar como marido um pretendente que sequer pertence à espécie humana.
- O marido-pássaro de Sedna consegue levá-la para a ilha à custa de disfarces, mentiras e promessas não cumpridas.
- O pai de Sedna tenta salvá-la, mas na hora em que a moça mais necessita dele, acovarda-se e tenta livrar-se da filha para salvar a própria pele.
- Dos dedos de Sedna, cortados em algumas lendas, quebrados ou congelados em outras, nasce toda a vida marinha.
- Mesmo traída, infelicitada e abandonada no fundo do mar, Sedna continua a prover a vida do povo na superfície, permitindo que a fauna marinha do Ártico se ofereça como alimento para os homens. Contudo, Sedna sofre com os desvios humanos. Seus soluços e sua inquietação provocam desequilíbrios climáticos e fome.
- Só mediante um ato de purificação coletiva a xamã consegue fazer contato com Sedna e restabelecer as condições propícias à vida.
Isto é o básico. A questão que nos interessa é: por que uma deusa dos esquecidos esquimós da região ártica, de repente é projetada nos céus e elevada à condição de “patrona” do possível décimo planeta? Qual o simbolismo por trás do fenômeno? Este é o tema do último artigo desta série: