Em Os Trabalhos e os Dias, o poeta grego Hesíodo (século VII a.C.) coloca para nós todo o seu problema existencial, a luta com o irmão, conselhos. A literatura de Hesíodo têm o nome de literatura sapiencial. É literatura de conselho, que aparece através de admoestações. Todas essas obras que procuram encaminhar o leitor podem ser classificadas como um gênero literário, a literatura sapiencial.
Na Bíblia, por exemplo, encontramos dois casos de literatura sapiencial: o Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos. Em Os Trabalhos e os Dias, encontramos uma profecia escatológica: Hesíodo vai falar do fim dos tempos.
Isso aparece quando o livro trata das cinco idades pelas quais passa ou passará a humanidade. Cinco idades e cinco raças que se sucedem sempre segundo uma ordem de decadência definida. Há um metal e há uma raça associados a cada nível, e Hesíodo começa a falar profeticamente.
O primeiro nível é a Idade do Ouro, pela qual a humanidade já teria passado. Nessa idade não havia trabalho, não havia luta, não havia guerra, não havia distinção de sexos, ou entre deuses e humanos (humanos são os nascidos da terra — do humus). Na Idade do Ouro vivia-se em comensalidade absoluta, os deuses e os humanos comiam juntos, viviam bem, não havia sofrimento, a morte era um sono, não havia moléstias, não havia nada. Havia virtude — adict.
Idade do Ouro, um mito universal
Os hindus têm os mesmos conceitos e afirmam que, nessa primeira idade, tínhamos quatro quartos de virtude. A Idade do Ouro era a da virtude total: as pessoas, quando morriam, transformavam-se em daimones (gênios), isto é, intermediários entre os humanos e os divinos.
É o culto dos ancestrais que aparece em todas as religiões, o culto dos mortos, da família, de toda essa ancestralidade que fica ali intermediando, eram os daímones.
Os gregos teriam copiado os mitos hindus, que são mais antigos? Não, isso não existe, tais mitos aparecem em períodos históricos diferentes, ou mesmo simultaneamente, mas fazendo parte de um único inconsciente coletivo.
Será que Xangô, que usa o relâmpago e o raio, vem do mito de Zeus? Será que o pessoal do candomblé teve contato com a mitologia grega? Não, são arquétipos, são modelos que aparecem aqui, além, agora, no Egito, e, quando estudamos todos esses mitos, notamos que tudo está relacionado.
Segundo Hesíodo, a era das grandes realizações tecnológicas, do brilho e das luzes não é a Idade do Ouro, mas a do Ferro — a decadência, portanto.
O caminho da decadência
A partir da Idade do Ouro, há a passagem para uma outra era, sempre no sentido de uma degradação progressiva: a Idade da Prata. Hesíodo diz que a prata é um metal inferior ao ouro, e aqui surge o que Hesíodo chama de hybris — palavra que aparece muito na mitologia grega, significando descomedimento, falta de medida, não física, mas a violência moral, o orgulho, a prepotência, a vaidade.
Toda a mitologia grega está impregnada deste conceito, da luta que temos de travar para segurar a falta de limites. Diferente da violência física, que, em grego, é bya — força bruta, coação (o “prendo e arrebento”) — hybris é o prepotente, o inflado, o ego poderoso que não vê limites.
Na Idade da Prata, perde-se um quarto da virtude. Esta, que era de quatro quartos, desce para três quartos. Perde-se um quarto, a virtude diminui, há menos justiça, a hybris aqui é religiosa. Na Idade da Prata, o humus deixou de reverenciar a divindade, isto é, deixou de ver algo maior do que ele mesmo.
A perda da espiritualidade sempre se revela no mito pela perda do todo, isto é, o homem se afasta da visão do todo. O ser espiritual é um ser que está ligado à totalidade. Quando, na Idade da Prata, perdemos um quarto da virtude, perdemos exatamente essa integração com o todo.
Assim, o homem começa a perder o sentido do seu próximo, do outro, do que está ao seu lado. É uma violência religiosa, que Hesíodo chama de adkia, falta de justiça, ou asebeia, impiedade. Há uma perda progressiva do sentido do outro, não mais reverenciamos algo além de nós mesmos, e isto é a perda do religioso.
Não estou falando de religião institucionalizada: tal perda, antes de ser um fato religioso, é talvez um fato social. Então, Hesíodo diz: — Não sacrificamos mais, não reconhecemos mais a soberania dos deuses; isto é, não reconhecemos que há algo além de nós, e esta consciência é perdida. Os que morrem continuam sendo daimones, porém inferiores.
Passamos então para uma terceira idade, a do Bronze, onde a matriz é a guerra, a violência. Os homens já se inspiram no deus Ares, que tem o apelido de calcheu, isto é, aquele que é do bronze. Então, é o predomínio do metal, das lanças, da guerra, da força bruta. Perdemos mais um quarto da virtude, dizem os hindus, agora estamos só com dois quartos da totalidade inicial.
Estranhamente Hesíodo cria a Idade dos Heróis, que seriam de dois tipos: há os que só procuram a violência, a guerra, cheios de hybris, e para esses há o inferno, vão povoar o Hades. E há os heróis da justiça, o que leva Hesíodo a fazer a separação: os heróis da justiça são aqueles que vão fazer a guerra certa e, quando morrem, vão para a ilha dos bem-aventurados .
E, finalmente a última idade, a do Ferro, que estamos vivendo. Hesíodo diz que, quando Prometeu rouba o fogo dos céus e o entrega aos humanos, rebelando-se contra Zeus, este manda que Hefesto crie uma mulher maravilhosa chamada Pandora, e que ela desça até os humanos para provocar a divisão entre o masculino e o feminino.
A partir daí, na Idade do Ferro o humano se divide, e tal divisão trouxe a nossa perdição. E diz Hesíodo que, nesses tempos que virão, com o fogo que Prometeu nos trouxe, vieram as grandes conquistas da tecnologia, do poder, da racionalidade, e toda esta história começa com o conflito entre Prometeu e Zeus.
Querem o fogo? Aguentem o tranco…
Fizeram o fogo, isto é bíblico, e no mito grego Prometeu traz o fogo do céu dentro de um galho de figueira. A figueira bíblica é a mesma figueira de Prometeu. É a mesma coisa, é a ficus religiosa, que também vai aparecer no budismo. Buda tem sua iluminação embaixo de uma ficus religiosa (ou seja, dá à luz uma nova religião). Na Índia, a figueira é a árvore sob a qual os cavalos se aquietam. E qual é a proposta de Buda? Segurar os cavalos internos.
É a mesma figueira, a figueira do budismo, a figueira de Prometeu, a figueira da Bíblia, a mesma coisa, ficus, fogo, sobrecarregar o fígado… e por isso Prometeu vai ter o fígado destruído, ou seja, exatamente esse orgulho que nos tomou quando recebemos o fogo e que nos levou a dizer: agora podemos tudo.
Podemos ler o mito de Prometeu em várias direções, mas uma delas é esta que Hesíodo coloca. E ele acrescenta profecias de caráter escatológico: “Oxalá não tivesse eu que viver entre os homens na quinta idade, melhor teria sido morrer mais cedo, ou ter nascido mais tarde, porque agora é a Idade do Ferro, inaugurado pelo conflito entre Zeus e Prometeu, e que traz miséria, doença, velhice, morte, incertezas.”
Pandora é a mulher fatal. Então, teremos agora o trabalho, o sofrimento, teremos que pagar, e nada mais virá da graça dos deuses. Isto é, na quinta idade, na Idade do Ferro, perdemos a graça.
A quinta idade instaura para o humano uma lei universal: temos de pagar para obter alguma coisa, e isso, trazido para dentro das nossas vidas, é impressionante. Se você quer melhorar o corpo, vai ter de investir disciplina, trabalho; se quer ter um país socialmente organizado, tem de pagar por isso, não é apenas acordar um dia e dizer que o real vale uma coisa e o dólar outra…
Sempre há um pagamento, tempo, sacrifício, disciplina, e isto foi instaurado na quinta idade, quando nos afastamos e perdemos a graça. Agora os deuses não serão mais doadores, mas protetores, na medida do que você der a eles. Zeus disse muito claramente: daremos a vocês o que vocês derem a nós, na mesma proporção. A profecia de Hesíodo é de que não haveria mais justiça. Ele deixou muito claro o que viria em consequência da conquista nossa, a conquista do fogo. “Querem o fogo? Te-lo-ão, mas agora aguentem o tranco…”
O fogo trouxe tecnologia, racionalidade, ciência, na Bíblia está claro que comemos da árvore do conhecimento e largamos a árvore da vida, perdemos o todo, nos separamos, e o fogo trouxe essa separação.
Conclusão: você luta para ser alguém, para ter consciência, para não ser massa de manobra, e um dia percebe que só pode melhorar se você arrebentar o ego, destruir a hipertrofia em que você se encontra. Esta é uma das grandes sacadas proféticas da Bíblia e da mitologia grega. Mas resta ainda falar de Hefesto…
Ao trazer o fogo para os humanos, Prometeu inaugura uma era de crescente separatividade.
Notas complementares (por Nadia Greco)
Sobre Ares, “aquele que é feito de bronze” — Os historiadores dizem que, para construir o Colosso de Rodes, Alexandre, o Grande, mandou fundir todo o bronze existente no mundo antigo…
Sobre o simbolismo do figo — O figo é símbolo de útero. Também era símbolo da Deusa na antiguidade e, consequentemente, consagrado a Vênus e utilizado em encantamentos e poções. A primeira roupa de Adão e Eva foi uma folha de figo logo após eles terem adquirido conhecimento (referindo-se à encarnação da alma no útero, a roupa da alma.) O figo sempre foi um símbolo feminino e representante da yoni. Veja-se a propósito a p. 308 de The woman’s encyclopedia of myths and secrets, de Barbara G. Walker.
Pandora — A tradução do mito de Pandora em outras línguas mostra-a com um vaso, e não com uma caixa, como em português. O vaso tem a forma de um jarro com duas alças, lembrando o útero e suas trompas. Por isso é extremamente importante manter certos conceitos e símbolos intactos, para que seja entendido como os antigos viam e pensavam a humanidade. Pandora é vista como uma figura negativa, mas o que ela na verdade carrega na sua “caixa” somos nós, a geração humana. De forma alguma este mito implica a ideia de que a mulher introduziu o mal na humanidade!
Ilha dos bem-aventurados — Na Idade dos Heróis, aqueles que lutam a “guerra certa” vão para essa ilha, que lembra o Walhala dos Vikings.
Árvore da vida — Tem uma conotação de imortalidade.
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