Grécia, o país dos oráculos
No mundo grego tudo era fenômeno, tudo era interpretado, tudo era sagrado, tudo merecia atenção, tudo era sinal. Então, acontecimentos que escapavam do real, do previsível, como eclipses, cometas, meteoros, anomalias no nascimento, imagens que transpiram ou sangram, tudo isso também fazia parte do mundo da profecia.
As sentenças eram dadas por oráculos, centros religiosos que estavam sob a égide de um deus, como Zeus ou Apolo. O termo oráculo aplica-se tanto à sentença em si quanto ao lugar em que ela é enunciada. Assim, os grandes oráculos do mundo grego — Zeus e Apolo, Delfos, Olímpia, Dodona e também Amon, no Egito — eram centros de profecias.
Temos em Dodona talvez o mais antigo centro de profecias da Grécia, onde as adivinhações eram feitas por profetisas que liam o movimento dos galhos das árvores. O carvalho era a árvore de Zeus. Na antiguidade, no tempo em que a Europa era coberta de carvalhos, era através desta árvore que a divindade falava, e havia a interpretação dos movimentos.
A palavra mântica (adivinhação) vem do verbo grego manesthae — ser tomado de grande furor. Por exemplo, as sacerdotisas do deus Dionísio chamavam-se mênades por causa desta agitação. Agitavam-se muito, e a dança delas — a coreografia dionisíaca — escapa assim do ritmo apolíneo. Apolo tem um ritmo majestoso, mas o de Dionísio é irregular, é uma coreografia alucinada que lembra sempre transe.
Os gregos admitiam diversos tipos de mântica. Havia a dinâmica, ou por inspiração divina, onde a mântica — isto é, a adivinhação, a profecia — pode vir por inspiração direta: o deus toma a pessoa e fala, como no caso das pitonisas, das sibilas. Havia também a piromancia, adivinhação pelo movimento das chamas. Outra linha era a da mântica por indução, como no caso da oomancia ou ooscopia, e havia ainda a profecia ctônica ou por incubação.
Na profecia por incubação alguém é levado a deitar e a dormir, e os sonhos poderiam libertar o inconsciente. Baixava um intermediário divino chamado daimon, que depois toma negativamente o nome de demônio, mas daimon é, originalmente, esse emissário divino que vinha durante o sonho para dar o toque que depois poderia ser interpretado.
Já a necromancia, entre os gregos, era a interrogação da alma dos mortos, muito semelhante à que temos hoje e que foi criada no século XIX. Há uma passagem na Odisseia em que Ulisses vai ao país dos Sinérios, que fica perto da região escura dos infernos, o Hades. Ulisses vai chamar os mortos para interrogá-los, e essa interrogação era muito comum no mundo grego.
Havia uma expressão popular da interrogação da alma dos mortos que os gregos naturalmente procuravam colocar no seu devido lugar: eram os psicagogos, quer dizer, aqueles que atraíam e conduziam as pessoas em desespero para conversar com os que já tinham partido.
Os psicagogos diziam conduzir e manipular as almas dos que morreram. Tinha-se um problema, chegava-se ao psicagogo e este perguntava: você quer falar com quem?… então o psicagogo promovia uma encenação, e o teatro nasce daí, dessa forma de necromancia: uma das grandes hipóteses da origem do teatro no mundo grego é que ele tenha vindo exatamente dessas cerimônias que se montavam para chamar os mortos à vida. É o que faz Ulisses na Odisseia. Ele despeja vinho, e o vinho dá essa energia. As almas tomam força momentaneamente e falam.
Temos também a quiromancia, ou leitura das mãos. Cheir é mão, daí vem cheirurgus — cirurgião, ou seja, aquele que trabalha com a mão. Outra variante muito importante no mundo grego é a daqueles que movimentavam objetos. São expressões da mântica num nível popular, evidentemente. Mais tarde, Santo Agostinho iria descer o pau nesta gente, dizendo que tais práticas são goetia, ou goeteia (magia negra).
Os escolhidos das musas
Havia várias formas de mântica ou delírio, um delírio divino de acordo com a natureza do deus que tomava posse da pessoa: a mântica profética é de Apolo, a mântica erótica é de Afrodite e de Eros, a mântica ritual ou mistérica é de Dionísio, e havia também a mântica poética, ou das Musas.
As divindades tomam posse e então o indivíduo fala, escreve, compõe, e essa é uma ideia importante. O que nos interessa é a mântica poética das musas, que são nove e são filhas da deusa Mnemosina, a deusa da memória. O nome Mnemosina significa algo como lembrar-se bem. Teve nove filhas. Musa vem de uma palavra que significa guardar bem, conservar, por isso museu é um lugar onde se guardam as coisas dignas de serem conservadas. Assim, as Musas inspiram e guardam as produções superiores que precisam ser conservadas.
A loucura, ou delírio profético produzido pelas Musas, é indispensável à criação da melhor poesia, porque a criação poética continha para o grego um elemento que não era escolhido ou obtido, mas dado pelo deus. Não basta ter técnica, não basta ser um hábil versejador, é preciso ter aquele algo mais que o deus dá para ser verdadeiramente um poeta, e isto vale até hoje para nós.
Esta é a distinção que a gente faz, por exemplo, entre eloquência e retórica: eloquente você nasce e retórico você se torna. Retórica se aprende, mas eloquente você nasce — o deus assinalou.
A este dom que o deus dá e que torna o poeta verdadeiramente um poeta, e não apenas um bom técnico, o grego dava o nome de Kidos, uma palavra que significa feito. Pode ser um feito guerreiro, excepcional. Aquele dedo de deus que baixa em alguém; você por exemplo bate aquele recorde que nunca ninguém bateu, aquele algo mais no esporte, na arte, na guerra. Por exemplo: Aquiles recebeu o kidos divino.
Os deuses têm o kidos eternamente. De vez em quando concedem-no momentaneamente a um mortal. Dão e tiram, e é terrível quando acontece, pois a pessoa se sente mais ou menos assim: “pô, recebi, fui assinalado e de repente eles tiram”, é a decadência… Os deuses dão às vezes a um humano esse poder excepcional, e é quando o humano se iguala momentaneamente ao divino. O grego dará a isso o nome de kidos, feito, glória, algo que irá fazer com que o lembremos eternamente.
As musas inspiravam o poeta. Mnemosina, a dona da memória, estava por trás disso tudo, porque o poeta tira do esquecimento. Os gregos diziam que o poeta e a lápide perpetuam o grande herói. As pedras, as inscrições, estão ali para atestar quem ele foi; mas quem assinala aquele que vai viver para sempre é o poeta.
Foi o que aconteceu com Aquiles, a quem perguntaram: “queres morrer na juventude em plena explosão do teu heroísmo, ou queres ficar por aí e ter uma morte anônima?” E Aquiles disse: “quero morrer jovem e ser lembrado para sempre como um herói, o maior de todos”.
E assim foi feito: Aquiles morre, explode no seu heroísmo e é até hoje lembrado por todos. É uma ideia com a qual podemos trabalhar. Então a poesia tem faculdades misteriosas que dependem da graça divina, do kidos. Não é qualquer um que a recebe, como o poeta. Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, diz que viu as Musas, e na Cosmogonia também existe a invocação das Musas. Em Camões encontramos a mesma ideia.
Dizia-se que as Musas viviam numa montanha perto da qual havia uma fonte, a fonte de hipocreme, que brotou quando o cavalo alado da mitologia grega, Pegasus, bateu com seus cascos nessa montanha.
Eis o cavalo como símbolo da inspiração, do psiquismo borbulhante. Por que o cavalo branco? Trata-se de um símbolo da inspiração controlada, pois só o herói monta o cavalo. Quer dizer, Pegasus simboliza aquela inspiração controlada, a grande inspiração, ao passo que o outro cavalo ameaçador é aquele que vem noturno, escuro, aquele cavalo que aparece no sonho. Aqui não se fala em inspiração controlada.
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