Em 1807 a Europa vivia um pandemônio. A França de Napoleão Bonaparte e a Inglaterra já em vias de industrialização lutavam pela hegemonia do continente. Para sufocar a Inglaterra e impedir que exportasse seus produtos, Napoleão decreta o Bloqueio Continental, ou seja, a proibição do desembarque de mercadorias inglesas em todos os portos europeus. Portugal, aprisionado por diversos tratados econômicos à Inglaterra, fica entre dois fogos: se desobedece à ordem francesa, corre o risco de invasão (e o exército francês já estava na Espanha, bem perto da fronteira); se fecha as portas para a Inglaterra, estaria desagradando a maior potência naval de então, que certamente pensaria em represálias.
A corte se divide: uma parte quer a adesão à França, outra sustenta a preservação da aliança com os ingleses. Predomina a segunda posição, não deixando ao Príncipe Regente D. João VI outra opção que não fosse colocar-se em segurança no Brasil, fugindo do risco de um confronto direto com o poderoso exército francês.
Uma fuga planejada, mas com os franceses nos calcanhares
A fuga não foi tão súbita e atabalhoada quanto se costuma pensar. Um único fato é suficiente para demonstrá-lo: ao chegar ao Brasil, a corte portuguesa desembarca com todo o acervo da Biblioteca Real – origem da atual Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro – devidamente embalado e catalogado, o mesmo acontecendo com obras de arte e documentos do arquivo real. Numa fuga decidida às pressas, ninguém pensaria em cuidar do acervo cultural e artístico com tanto esmero e tantas atenções técnicas. Não foi, portanto, um “salve-se quem puder”, mas uma alternativa longamente planificada e preparada.
Mesmo assim, os fatos parecem ter-se precipitado, criando, nos últimos dias da permanência da corte em Lisboa, um clima de forte agitação e correria. O embarque da família real é ordenado por D. João VI para o dia 27 de novembro de 1807, pela manhã. Naquele dia, sob os olhares apreensivos da gente comum, nobres desembarcam de suas carruagens o dia inteiro no cais de Lisboa e embarcam nos escaleres que os levariam aos navios. A frota deveria partir na manhã do dia 28, mas o mau tempo retém os navios no porto por mais 24 horas, enquanto as tropas francesas se aproximam perigosamente da cidade. Na manhã do dia 29, enfim, “ao nascer do dia”, põem-se em movimento as oito naus de linha, as quatro fragatas e quatro embarcações menores, que levavam a corte, e mais uns quarenta navios mercantes, onde viajava a elite econômica e social de Portugal. No total, mais de 15 mil pessoas, numa das maiores fugas oceânicas de que se tem notícia. Com a corte, vão todos os tesouros do reino, deixando-se nos cofres públicos apenas os títulos de dívidas que nunca seriam pagas.
A fuga muda a história do Brasil. A colônia, promovida de um momento para outro na capital de um império ultramarino, jamais seria a mesma.
Naquele dia 29 de novembro, um final de outono frio e chuvoso, o sol raiou logo depois das 7h da manhã, hora local de Lisboa. O Ascendente estaria em Sagitário, assim como Sol, Lua, Mercúrio e Netuno. Se a partida da frota ocorreu realmente logo ao nascer do sol, é esse o mapa do evento que tantas consequências traria para a história brasileira. Mas há outras versões que dão a partida ocorrendo apenas no final do dia e, qualquer que seja a verdade, sempre será difícil precisar uma hora exata. Talvez o mais sábio seja tomar o grande acontecimento astrológico daquele dia – a Lua Nova – e traçar o mapa para seu momento exato, em Lisboa e no Rio de Janeiro. Luas Novas têm uma conotação de início de ciclo. São um símbolo de algo que nasce.
A Lua Nova aconteceu no final da manhã, quando a frota, provavelmente, começava a deixar o Tejo e ganhar o oceano. Levantando um mapa para às 11h10, hora local, temos Sol, Lua e Netuno conjuntos em Sagitário, na casa 10, enquanto o regente deste signo, Júpiter, apresenta-se colado ao Ascendente Aquário. É um mapa significativo. Para Portugal, representa a possibilidade de uma expansão (Júpiter) e de um recomeço (Ascendente) mediante a abertura de vastos horizontes e a busca de terras distantes. O regente de Escorpião no Meio do Céu é o transformador Plutão na casa 1 e em Peixes, signo do oceano infinito. Mais uma vez, a única saída para Portugal estava no mar aberto, ideia que se reforça pela presença de Netuno junto à conjunção Sol-Lua. Urano, regente do Ascendente, na cúspide da casa 9 – das grandes viagens, em analogia com Sagitário – confirma o significado impressionante deste mapa, que parece um eco distante do mapa da partida de Cabral, em 9 de março de 1500. Considerem-se as analogias:
PARTIDA DE CABRAL | FUGA DA FAMÍLIA REAL (LUNAÇÃO) |
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Netuno em conjunção com Sol e Lua. | Netuno angular em oposição à Lua. |
Sol em Peixes, signo regido por Júpiter e Netuno. | Sol em Sagitário, regido por Júpiter, e em conjunção com Netuno. |
Saturno em Touro. | Saturno em Escorpião, em oposição a sua posição na partida de Cabral. |
Mercúrio, regente da casa 12 (exílio e transcendência) na casa 9 (viagem intercontinental). | Saturno, regente da casa 12, na casa 9, reiterando a mesma conexão. |
Urano sobre o Ascendente e Plutão sobre o Meio do Céu do mapa da Independência do Brasil, em 1822. | Meio-Céu da fuga da família real em conjunção com o Meio do Céu da Independência do Brasil. |
Urano na cúspide da 9. | Urano na cúspide da 9. |
Rio de Janeiro, capital do império português
O mapa da lunação de 29 de novembro de 1807 apresenta-se, pois, bastante revelador, estando em ressonância com o mapa da partida de Cabral, 307 anos antes, e com o do Grito do Ipiranga, 15 anos depois. Há uma lógica unindo todos esses acontecimentos e reiterando a conexão entre os dois países. É como se fosse a expressão astrológica dos versos da canção de Chico Buarque de Hollanda:
Ah, essa terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um grande Portugal.
Naturalmente, todas estas possibilidades não estavam na mente dos que partiam. O que se via nas ruas de Lisboa era a correria de fidalgos e burgueses ricos, em busca de um lugar nos navios abarrotados. Chovera tanto que o cais se transformara num lamaçal sobre o qual soldados lançavam tábuas para que a família real passasse. O povo, apreensivo, lamentava o afastamento dos membros queridos da corte, como o jovem Pedro I, e hostilizava de longe nobres e políticos que não contavam com a simpatia popular. Ao longe, as tropas de Junot, general do exército napoleônico, chegavam…
Enquanto isso, no Rio de Janeiro ninguém poderia fazer ideia da grande mudança que estava por acontecer. O aglomerado de 60 mil habitantes, de vielas sujas e casas de taipa sem janelas de vidro, ainda vivia no modorrento atraso de sua condição de sede de uma colônia distante. A chegada da corte viria trazer transformações radicais, uma onda de renovação urbanística e um choque cultural de efeitos permanentes.
No momento exato da Lua Nova, enquanto a corte se lançava ao oceano, Capricórnio ascendia no horizonte leste do Rio e Vênus em Libra marcava presença no Meio do Céu. Saturno, regente do Ascendente, ocupava a casa 10, simbolizando a iminência da chegada do rei. O stellium em Sagitário ocupava a casa 11, mostrando como a mudança de status da colônia iria despertar nos nativos projetos novos e audaciosos. A casa 11 é aquela dos projetos e esperanças, mas também das ideologias de cunho político e da insatisfação social. Tudo isso iria agudizar-se após o desembarque da família real. A angularidade de Vênus em domicílio no Meio do Céu sinaliza, ao mesmo tempo, a chegada de novos tempos de sofisticação cultural e o alívio temporário das pressões que atormentavam o governo de D. João VI. Aqui, o Príncipe Regente seria rei de uma império espalhado por quatro continentes e faria do Rio de Janeiro a única cidade das Américas a ser capital de um Estado Nacional europeu.
Rio: o retorno de Plutão traz a família real
Quando a família real desembarca no Rio, depois de alguns dias em Salvador, já será o dia 7 de março de 1808. Tal como no próprio mapa da fundação do Rio de Janeiro, o Sol está em Peixes, em conjunção com Plutão. Para sermos mais exatos, a corte desembarca na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro no momento em que Plutão está fechando um ciclo inteiro, após sua demorada viagem pelo zodíaco. É como se a cidade fundada por Estácio de Sá em 1565 tivesse de esperar esses 243 anos da órbita de Plutão para enfim começar a florescer. Nascida sob a conjunção Sol-Plutão no Meio do Céu, desabrochará sob um novo encontro dos dois poderes, o da luz (Sol) e o das sombras (Plutão).
É um momento importante na vida desta cidade destinada a um grande papel e, ao mesmo tempo, palco de contradições insolúveis, onde os extremos se tocam e se confundem. Do confronto entre os veludos e tafetás da corte e os panos rústicos dos escravos surge um modelo de convivência onde a dualidade (Peixes), apesar de real, será sempre de contornos difusos e enganosos. Nada mais Plutão-Sol em Peixes no Meio do Céu do que autoridades no camarote do Sambódromo aplaudindo a escola de samba mantida com o dinheiro da contravenção – ou a reveladora cena do presidente Itamar Franco a trocar beijos com uma modelo sem calcinha. Esta é a cidade que a corte de D. João contribuiu para revelar. Para Dona Carlota Joaquina, era o quinto dos infernos. Para o olhar astrológico, é o lugar onde os símbolos se concretizam de uma forma que nenhum ficcionista ousaria imaginar…
Leia a série completa sobre as personalidades que levaram o Brasil da Colônia à Independência:
- Do Quinto dos Infernos ao Novo Mundo
- Carlota Joaquina, quase rainha da… Argentina
- D. João VI, apenas um comedor de coxinhas?
- Marquesa de Santos, a Titila do Imperador
- O dia em que a família real fugiu para o Brasil
- Chalaça, a sombra danada do Imperador
- Afinal, quem era o Chalaça?
- Chalaça, o homem do Chupa-Chupa
- Chalaça e PC Farias, estranhas semelhanças
- Dom Pedro I e Fernando Collor: a história se repetiu?