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Os pontos (cantigas litúrgicas) dedicados a Ogum revelam, para além da simplicidade e trivialidade de seus versos, um sentido alegórico mais amplo, que tanto remete aos fundamentos da cosmovisão afro-brasileira quanto a inesperadas conexões astrológicas, como veremos a seguir. Analisemos alguns pontos:
Ô Jorge, Ô Jorge,
vem de Aruanda
pra salvar os vossos filhos
no terreiro de Umbanda.
Ogum, Ogum,
Ogum meu pai,
o senhor mesmo é quem diz:
filho de Umbanda não cai.
Aqui, como em muitos outros pontos, Ogum aparece identificado com São Jorge, o santo guerreiro do catolicismo. O simbolismo, aliás, não poderia ser mais adequado: São Jorge veste uma armadura de guerra (a proteção necessária para atuar em ambientes inferiores) e monta um cavalo branco (as forças da matéria e o lado animal da personalidade, já purificados – por isso a cor branca – e colocados a serviço de desígnios elevados). Utiliza a lança e a espada (um símbolo do direcionamento da energia) e consegue vencer o dragão (as forças das trevas).
Jorge, ou melhor, Ogum, vem de Aruanda – termo banto que significa céu ou plano espiritual – para ajudar seus filhos.
Ogum Yara, ou a união do Fogo e da Água
Se meu pai é Ogum
vencedor de demanda
ele vem de Aruanda
pra salvar filhos de Umbanda.
Ogum, Ogum Yara,
salve os campos de batalha,
salve as sereias do mar,
Ogum, Ogum Yara.
Os quatro primeiros versos confirmam as mesmas ideias já expressas no ponto anterior, acrescentando mais uma: a de Ogum como vencedor de demandas.
Demanda é termo muito utilizado em terreiros, significando luta entre orixás (que, no plano mítico, representavam as lutas tribais entre nações africanas) e, num sentido mais amplo, desentendimentos, conflitos, obstáculos colocados intencionalmente no caminho do indivíduo e agressões de toda espécie (inclusive as de natureza psicológica ou energética).
A expressão salve os campos de batalha pode causar uma certa estranheza, por sugerir, à primeira vista, um elogio à violência. Refere-se, entretanto, à própria vida, um campo de batalha onde os homens lutam permanentemente para vencer suas tendências inferiores. Como disso depende o crescimento espiritual, a luta é considerada bem-vinda e necessária.
A cultura afro-brasileira, à semelhança da Astrologia, faz referência constante aos quatro elementos da natureza, que seriam assentamentos da energia dos orixás. Por assentamento entenda-se um suporte material, que pode ser orgânico ou inorgânico, de estrutura simples ou complexa, que guarda uma relação de analogia, contiguidade ou semelhança de atributos com princípios de ordem não material, e que, por este motivo, servem de veículo à manifestação destes.
Assim, por exemplo, a água dos rios, lagos e oceanos limpa, refresca, acalma, nutre e protege, guardando analogia direta com o modo de atuar de alguns orixás femininos também relacionados à nutrição, a proteção e ao apaziguamento, como as maternais Iemanjá, Oxum e Nanã.
Há orixás profundamente ligados ao elemento Terra e a seus valores, como a estabilidade e a prudência. É o caso de Obaluaiê e de Oxalufã, a manifestação “velha” de Oxalá. Outros identificam-se, no todo ou em parte, com o elemento Ar, como os que regem as florestas e o processo de fotossíntese (Oxóssi é um bom exemplo) ou associam-se com o movimento e a imaterialidade, como os ibejis (as crianças gêmeas), sincretizados no Brasil com os santos católicos Cosme e Damião. Já Ogum é o mais típico e mais puro representante do elemento Fogo. Entretanto, da mesma forma como, na carta astrológica, o regente de um signo de Fogo pode situar-se em signo de outro elemento (um Sol em Capricórnio ou um Júpiter em Libra), o orixá assume, nos mitos que o apresentam, nuances de todos os elementos e atributos de todos os princípios da natureza.
Yara é palavra tupi-guarani que significa senhor, proprietário. Ogum Yara é o Ogum que trabalha em associação com o orixá feminino Oxum, combinando a vibração purificadora do fogo com a das águas de rios e cachoeiras. O ponto faz ainda uma referência a Iemanjá quando fala das sereias do mar, tradução sincrética de entidades da mitologia africana que manipulam energias benéficas existentes no fundo dos oceanos.
O ponto pode ser entendido, então, como uma invocação ou pedido de ajuda a uma certa legião de Oguns, cujos integrantes são capazes de mobilizar, simultaneamente, energias pertencentes aos elementos Fogo e Água.
O sete e a varinha mágica de Ogum
Eu tenho sete espadas
pra me defender,
eu tenho Ogum
em minha companhia.
Ogum é meu pai,
Ogum é meu guia,
Ogum é meu pai,
venha com Deus
e a Virgem Maria.
Ogum tem estreita relação com o número sete, o que é explicado por duas lendas iorubanas. Na primeira, ele aparece como o guerreiro – filho de Odudua, rei de Ifé – que conquista a cidade de Irê e assume o título de Oni (senhor ou rei). Em torno de Irê havia sete aldeias, hoje desaparecidas. Por essa razão, acreditava-se que Ogum fosse composto por sete partes, uma para cada aldeia conquistada. Em iorubano, sete é mejê, de onde resultou a expressão Ogum Mejê (O Ogum que são sete, ou o Ogum composto de sete partes). É a ele, portanto, que o ponto é dedicado.
A outra lenda fala do casamento entre Ogum e Oiá. Ogum tinha uma vara mágica, feita de ferro (metal que lhe está associado), que tinha a propriedade de dividir em sete partes os homens e em nove partes as mulheres que tocasse. Em sua oficina de ferreiro, Ogum confeccionou uma vara igual e deu-a de presente a Oiá. Algum tempo depois, porém, Oiá fugiu com Xangô e foi perseguida pelo furioso marido traído. Quando se encontraram, entraram em combate com suas varas mágicas, dividindo-se Ogum em sete parte e Oiá em nove. Por isso ela é chamada de Iansã, termo composto de duas palavras iorubanas: Iá ou Inhá (mãe) e messan (nove).
Se voltarmos aos mitos do Ares grego, vamos encontrar um de grande interesse. Ares estava sempre em combate com a deusa Atena (assim como Ogum e Oiá). Conta uma lenda que certa vez, ao rebater um golpe de Ares, Atenas tomou uma pedra negra e bateu com tanta força nas costas de Ares que este cambaleou e caiu de forma tal que seu corpo, na queda, cobriu uma área de oitenta e quatro pés quadrados. Ora, 84 é igual a 12 vezes 7. Trata-se de um simbolismo que retrata o percurso turbulento de Marte por todos os signos do zodíaco!
A espada está ligada ao orixá de três formas: por ser guerreiro e caçador, Ogum rege as armas em geral; por ser ferreiro, é fabricante de objetos de metal; e, finalmente, é o orixá regente do ferro, matéria-prima para a maioria das armas.
Como símbolo, a espada representa a energia mobilizada e direcionada para cortar o avanço do mal. Basta lembrar uma outra lenda, criada num ambiente bem diferente do que estamos tratando: a história céltica do Rei Artur que, munido da espada mágica Excalibur e sob a orientação de um iniciado, o Mago Merlin, combate as forças malignas acionadas por temíveis feiticeiros. Excalibur é o instrumento do combate da magia branca contra a magia negra. A espada de Ogum tem o mesmo significado.
Cabe observar também que o ferro é o elemento químico essencial para a formação dos glóbulos vermelhos. Da mesma forma como sua carência torna o indivíduo anêmico, a carência da raiz energética de Ogum cria uma espécie de anemia espiritual, ou seja, uma falta de coragem e de disposição para lutar pelo próprio desenvolvimento.
É por causa dessa função revitalizadora que Ogum é apresentado nos mitos africanos como o orixá que vem na frente, o pioneiro na tarefa de descer à Terra e acordar os homens. Trata-se, evidentemente, de uma função típica de Áries e Marte.
O orixá mostrado neste ponto não é, certamente, o guerreiro selvagem e violento de alguns mitos iorubanos: é um campo de energias poderosas, mas a serviço de desígnios superiores (ele vem com Deus) e movida pela compaixão com os que sofrem (ele vem com a Virgem Maria).
Ogum ressurge como São Jorge
Ogum, erga a sua espada,
levante a sua lança
para nos defender.
Nos dê proteção com seu escudo
toda vez que o inimigo nos aborrecer.
Nos cubra com o seu sagrado manto,
sua bandeira tão gloriosa
(…)
Atire as patas do seu cavalo
contra o dragão e a serpente venenosa
(…)
Típico produto da Umbanda Popular, já distante de qualquer influência africana, o ponto apresenta Ogum na forma sincretizada de santo guerreiro (a bandeira e o manto não são atributos de Ogum, mas de São Jorge). A letra, de cativante ingenuidade, mostra os sentimentos do povo brasileiro em relação ao seu orixá: ele é o herói mítico, o paladino que vem em defesa daqueles que enfrentam as forças do mal.
Nas práticas mais primitivas do sincretismo afro-brasileiro, Ogum muitas vezes é invocado como se fosse uma espécie de guarda-costas celeste, um orixá que, se devidamente agradado, tomará partido em favor do filho de fé e voltará sua fúria contra os inimigos. Essa visão simplista está presente, por exemplo, no comportamento do personagem principal do filme O Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos, um marginal que recorre à ajuda de um terreiro para que Ogum lhe feche o corpo contra as balas dos inimigos.
As concepções mais elaboradas, entretanto, não veem o orixá como um ser a serviço dos interesses do homem, nem disposto a tomar partido em seus conflitos. Em essência, as lutas de Ogum processam-se dentro da própria alma, que traz simultaneamente o dragão e a serpente das tendências inferiores assim como o germe da Divindade. Invocar Ogum significa ativar as energias vitais que estão adormecidas na alma, despertar a parcela divina presente em cada ser humano e mobilizar a força necessária para avançar.
O santo-guerreiro nos quatro elementos
Em plena mata virgem
eu vi um cavaleiro
com seu cavalo branco
vindo da macaia.
É nas ondas do mar,
é no clarão da Lua.
Auê, vamos saravar Ogum Mejê,
Saravá Rompe-Mato,
Olha Ogum Beira Mar,
Ogum de Lei.
Macaia é palavra banta, originária do dialeto kikongo (do antigo Congo), significando folhas sagradas. Pode ser traduzida também por mata sagrada (o lugar da mata reservado à realização de rituais) ou, dependendo do contexto, por fumo. No ponto ora em análise, o sentido dos quatro primeiros versos é, então:
Eu estava na mata virgem (território de Oxóssi) quando vi surgir, vindo de seu local mais sagrado (um plano superior), São Jorge em seu cavalo branco (uma entidade de Ogum de grande elevação).
O sentido dos dois versos seguintes já foi explicado no ponto anterior: são as energias de Ogum que surgem mescladas às de Iemanjá.
No sétimo verso, surge a expressão auê, que vem do iorubano àwé, ou seja, meu amigo. É uma saudação amistosa dirigida a desconhecidos e utilizada para todos os orixás. Aparece também o verbo saravar, que é simplesmente o mesmo que salvar, ou saudar, no português estropiado falado pelos primeiros escravos bantos (A palavra é puramente brasileira e não tem nada de africana. Dizer Saravá! é dizer salve!).
Em seguida, relacionam-se quatro diferentes manifestações do orixá: Mejê, ou o Ogum que são sete, ligado a Iansã; Rompe-Mato, ou aquele que trabalha ligado a Oxóssi e Ossãe; Beira-Mar, que atua em conexão com Iemanjá; e Ogum de Lei, cujo nome vem do iorubano Delé, o que toca o solo. É o Ogum ligado à terra, ao chão. No mesmo ponto, aparecem, pois, todas as forças da natureza, ou todos os elementos astrológicos:
Ogum Beira-Mar – Marte em signos de Água (Câncer e Peixes).
Ogum Mejê – Marte em signos de Fogo, especialmente Áries – é o Ogum do ferro e das armas, que troca energias com a também guerreira Iansã.
Ogum Rompe-Mato – Marte em signos de Ar, especialmente Libra (a ligação com Oxóssi, um princípio agregador e civilizador, com muitos atributos venusianos) ou Aquário (a conexão com Ossãe, orixá do conhecimento fitoterápico, com muitos atributos do espírito inventivo e científico associado a este signo).
Ogum Delé – Marte em signos de Terra e relacionados com sua natureza estabilizadora, como Touro.
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