Texto original: Ricardo D. Coplán – Tradução: Fernando Fernandse
Introdução
É difícil dizer se é lícito interpretar uma obra artística através de seu autor, ainda mais num caso como O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, cuja repercussão foi tão grande a ponto de converter-se em pouco tempo num clássico da literatura.
Segundo a psicologia Junguiana todo artista é como o leito de uma correnteza da alma coletiva. Mas o próprio artista, em sua consciência, é marcado por esta inundação. Como diz Jung, “dificilmente haverá um homem criativo que não tenha que pagar caro pela divina centelha do poder” (1).
Partindo desta premissa, podemos dizer que O Pequeno Príncipe é certamente um personagem que, apesar de possuir elementos da psicologia pessoal do autor, ultrapassa-o e configura uma mensagem à humanidade. (2).
Vamos agora tentar desvendar alguns aspectos da relação individual/coletiva entre Saint-Exupéry e O Pequeno Príncipe através da astrologia.
O emergir
O romance O Pequeno Príncipe coloca em evidência, logo de início, a disparidade entre o pensamento infantil e o pensamento adulto, cada um com a esfera de interesses que lhe é própria, como dois mundos de difícil conciliação. Tanto que o narrador é tomado por um profundo sentimento de solidão, como ele mesmo declara: “Vivi assim, sozinho, sem ninguém com quem verdadeiramente falar …”(3). De fato, parece que não encontrava com quem compartilhar sua vivência pessoal. Isto posto, era de se esperar que algo acontecesse. E logo o autor acrescenta: “…até que tive uma avaria no deserto do Saara, faz 6 anos” (4).”Era uma questão de vida ou morte” (5).
Desta maneira inicia-se O Pequeno Príncipe, que Saint-Exupéry começou a escrever no verão de 1942 (6) e que está baseado em um fato que lhe ocorrera seis anos antes, no Ano Novo de 1936. Naquela ocasião seu avião caiu no deserto, e “tanto o tanque de água quanto o tanque de combustível foram perfurados. Tínhamos por toda provisão uma laranja, algumas uvas passas, um quarto de litro de vinho branco num recipiente térmico, um pouco de café em outro”. (7) “Estávamos privados de água por destruição de nossas reservas e incapazes de nos localizarmos no deserto com uma margem de precisão de 300 quilômetros”, de acordo com o que o próprio Saint-Exupéry descreve em relatório (8).
Esteve quase quatro dias perdido até que foi encontrado por um beduíno (9). “Tinham visto miragens magníficas: oásis, camelos, cidades. Prévot, seu companheiro de aventura, tinha ouvido um galo cantar. Saint-Exupéry tinha visto em sua alucinação três cães que se perseguiam mutuamente” (10).
Vejamos a configuração astrológica daquele momento: Saint-Exupéry tem Marte em 1°25′ de Gêmeos na casa X a pouco mais de 3° da cúspide da IX, o que significa uma tremenda energia posta a serviço de atividades muito dinâmicas e rápidas, que implicam em parte a ampliação de horizontes intelectuais ou vivenciais. Este homem foi um pioneiro da aviação, que trabalhou fazendo correio (Gêmeos) aéreo em diversas partes do mundo, tendo aberto, inclusive, a primeira linha aeropostal da Patagônia.
Também tem Júpiter em seu domicílio sagitariano, a dois graus da cúspide de casa IV, e em oposição aplicativa a Marte, do que costuma resultar um lar suntuoso ao estilo de Senhor do Olimpo ou muito amplo, ou com muitos integrantes. Em outro nível de análise, pode ser alguém com presunções aristocráticas ou de autoimportância, pois nosso herói procedia de família nobre e herdou o título de conde de seu pai, mas, certamente por seu ascendente Virgem, nunca fez alarde disso.
No momento do acidente, a noite de 29 para 30 de dezembro de 1935, Júpiter transitava pelos 11° de Sagitário. Em meados de novembro havia transitado em conjunção a Júpiter natal e em oposição a Marte natal. Esta oposição se caracteriza por uma excessiva audácia, por um sentimento exagerado de confiança, levando às vezes a realizar atos imprudentes. De fato, seu biógrafo (11) relata o contexto da realização da acidentada viagem.
Apesar de sua situação econômica não andar muito boa, Exupéry não resistiu à tentação de comprar um avião, se bem que esperasse tirar proveito disso: o Ministério da Aeronáutica da França oferecia um prêmio de 150.000 francos a quem batesse o recorde de tempo no trajeto Paris-Saigon. Exupéry conseguiu inclusive que um periódico aceitasse publicar uma reportagem sobre o voo. Mas sua situação econômica piorou tanto que não pôde pagar o aluguel do apartamento onde vivia com a esposa Consuelo, e ainda lhe cortaram a luz e o gás. “Nunca havia passado por uma situação semelhante. Não restava mais do que um modo de sair dela: bater o recorde Paris-Saigon” (12).
“Saint-Exupéry se encontrava visivelmente num estado nervoso pouco propício para embarcar numa experiência fisicamente exaustiva” (13)
Nestas condições empreendeu a aventura que quase o levou a morrer de sede no deserto. É óbvio que existem outros fatores astrológicos a levar em conta, como a conjunção que naquele momento Júpiter em trânsito fazia à posição natal de Urano, o imprevisível deus do céu. É um aspecto que adiciona nervosismo, impaciência e uma sensação permanente de instabilidade.
Esta conjunção afetava também o Nodo Norte, indicando possivelmente o sentido desta energia, tendo em conta que toda a configuração se encontra na casa 4 – a da queda no ventre da mãe-terra, como indicado não apenas por este acidente como também por várias outras ocorrências do mesmo gênero que colocaram em risco a curta vida deste escritor.
Mas há outra interpretação indicada pelo sentido do eixo nodal: é a introversão da energia para o mundo emocional interno (Casa IV), coisa que, como depois veremos, foi uma consequência mediata do acidente, o qual seria artisticamente elaborado quando Exupéry escreveu, seis anos depois, O Pequeno Príncipe.
Sabemos, por Jung, que quando faltam estímulos exteriores, tal como ocorre num deserto, o inconsciente começa a produzir seus próprios conteúdos, que se extrovertem na tela de projeção vazia que é o próprio deserto. Daí aparecem as alucinações – miragens. Além disso, a ciência médica diz que as extremas condições decorrentes do calor excessivo do deserto e da falta de água, combinados, dão como resultado diversos sintomas físicos: disfunção neurológica, conduta psicótica, delírios e alterações mentais.
Imagino que O Pequeno Príncipe seja um produto tardio desta experiência.
“Estava mais isolado que um náufrago sobre uma balsa no meio do oceano. Imagine, pois, minha surpresa quando, ao romper o dia, despertou uma estranha vozinha que dizia: – Por favor… me desenhe um cordeiro!” (14)
Como uma miragem, surgiu do deserto este homenzinho das estrelas. Desta maneira o inconsciente irrompeu como um fantasma.
Puer Aeternus
Voltemos para Saint-Exupéry, o aviador, escritor e aventureiro. Se observarmos sua carta natal, vemos que tem vários fatores que Chislovsky (15) considera relevantes para poder falar de uma personalidade Puer Aeternus:
1) Os quatro ângulos em signos mutáveis (Ascendente Virgo);
2) A metade dos planetas em signos mutáveis;
3) O eixo Aquário-Leão ocupado, com o regente Mercúrio no brincalhão Leão;
4) Câncer ocupado por Sol e Vênus.
E a que se refere este termo, Puer Aeternus? Trata-se do nome de um deus da antiguidade. Procede da Metamorfose de Ovídio, onde se aplica ao menino-deus dos mistérios Eleusinos (16) e, do ponto de vista da psicologia profunda de Carl Jung, representa um arquétipo relacionado com a mudança e a renovação.
Conforme Marie-Louise Von Franz, o homem que se identifica com o Puer Aeternus permanece muito tempo na psicologia adolescente “com uma dependência excessiva da mãe” (17).
Jung diz: “o Puer Aeternus só tem uma vida breve, pois sempre é uma mera antecipação de algo desejável e desejado. Isto é tão real que certo tipo de menino mimado ostenta também in concreto as propriedades do adolescente divino que floresce prematuramente, e inclusive sucumbe de morte precoce” (18). Recordemos que Saint-Exupéry morreu aos 44 anos. Sempre teve medo de ver-se colhido por uma situação da qual “poderia ser impossível escapar” (19). Além disso, tinha “uma fascinação por esportes perigosos, especialmente o voo e o alpinismo”. (20)
Seu pai morreu quando ele tinha quatro anos. Manteve pela vida inteira uma prolífica correspondência com a mãe que foi recolhida e publicada, em francês, em 1955. E Jung (21) diz, em uma nota de pé de página, que “o complexo materno deste autor foi abundantemente confirmado por informação de primeira mão”.
Um príncipe de um asteroide, e além disso, apaixonado
N’O Pequeno Príncipe, diz o narrador: “tenho sérias razões para pensar que o planeta de onde vem O Pequeno Príncipe é o asteroide B612” (22).
A grande maioria dos asteroides descobertos até agora está numa região exatamente entre as órbitas de Marte e Júpiter. E como vimos, a carta de nosso escritor apresenta estes dois planetas em oposição, entre as casas IV e X, marcando um eixo entre a terra e o céu.
Na verdade não existe um asteroide B612, mas sim o 612, cujo nome é Verônica (22) e cuja posição era, para a data de nascimento de Saint-Exupéry, aproximadamente 23° de Capricórnio (23), a apenas dois graus e alguns minutos de sua oposição à Vênus natal.
Obviamente Verônica é um nome de mulher, e, além disso, é também uma planta herbácea de flores azuis (24).
Na obra, o Pequeno Príncipe tem uma relação intensa com uma flor que “havia germinado de uma semente trazida de sabe-se lá onde” (25) – de outro planeta? Na carta de Saint-Exupéry, Vênus está na casa XI, a casa aquariana das utopias, cabendo recordar que o significado etimológico desta última palavra é “não lugar“. Podemos relacionar a flor com uma Vênus que vem de um não lugar. Isto se vê também em indivíduos com pouco enraizamento na Terra, cuja consciência está em algum não lugar fora da terra, ou seja, extraterrestre.
Assim temos, por um lado, a Vênus natal do escritor e, por outro, a Vênus-Verônica do asteroide, em oposição entre a utópica casa XI e a casa da identidade, a V. As oposições se manifestam, geralmente, como o que em psicologia se chama projeção, quer dizer, o ver em outra pessoa características que nos são próprias, sejam estas consideradas boas ou más. O importante é o jogo de espelhos que se estabelece e que, astrologicamente, está simbolizado pela relação I-VII. Neste caso vemos que a Vênus-Verônica é a imagem refletida da Vênus do Saint-Exupéry.
Além disso, Mercúrio, regente do Ascendente, está também na casa XI, em Leão, enquanto o Sol em Câncer, no final da casa X, encontra-se a apenas três graus da cúspide dessa mesma casa XI. O menino-adolescente Mercúrio, vindo de um local não determinado das estrelas (Casa XI), e em Leão – um príncipe. Recordemos que um príncipe é também o filho de um rei, com direitos de sucedê-lo no trono, e neste sentido nosso personagem é um rei em estado latente. Mas deste tema voltaremos a falar mais adiante.
Uma flor muito exigente
A flor se comportava de uma maneira muito coquete, deixando o Pequeno Príncipe fascinado por sua beleza. Mas em pouco tempo a flor já o chateava com seguidas exigências: um dia lhe pediu um biombo porque “sentia horror às correntes de ar” (26), e inclusive forçou a tosse para lhe infligir remorsos. Típica manipulação emocional do tipo materno negativo (Vênus em Câncer) que tem por finalidade obter a submissão do eu de nosso pequeno herói, impedindo sua maturação.
Uma consciência masculina com uma anima, ou seja, com um fundo anímico deste tipo ficaria sempre envolta nesses caprichos “femininos”, com duas possibilidades: ou se identifica com eles, configurando uma possível homossexualidade, ou os abandona em busca de uma nova oportunidade. Ambas as possibilidades descritas ainda mantêm a consciência masculina muito perto do complexo materno.
Se voltarmos à configuração astrológica da carta do autor, vemos, a propósito, que Vênus, que numa carta masculina representaria a anima, encontra-se no maternal signo de Câncer. A esta Vênus imersa no ventre materno celeste, já que se encontra na uraniana casa XI – sendo que o próprio Urano está na casa IV – opõe-se a pedregosa e áspera Vênus-Verônica caprina “com sua vaidade um pouco sombria” (27).
Nosso homenzinho parte, abandonando a flor e o planeta. É como se seu amor frustrado lhe tivesse servido de incentivo para afastar-se do lar e chegar finalmente à Terra.
A flor, para Novalis, é símbolo do amor e da harmonia que caracterizam a natureza primitiva. Identifica-se com o simbolismo da infância e de certo modo com o estado Edênico (28). Vênus em Câncer, este signo como a “natureza primordial”. Essa flor, como o feminino que há nele, embora ainda muito apegado à mãe.
Segundo Jung, a figura do arquétipo da Anima emerge do arquétipo Mãe, e analisando a carta do Saint-Exupéry vemos que é um reflexo de sua psicologia pessoal, já que tem o Sol, símbolo de sua identidade, no maternal signo de Câncer, e seu regente, a Lua, no solar signo de Leão. Além disso, a sedutora Vênus ainda navega nas águas maternais cancerianas.
Recordemos que, no mito, Vênus-Afrodite nasceu dos testículos de Urano, cortados e lançados ao mar, ou seja, seu pai é Urano e sua mãe é o mar. Verônica, por estar em Capricórnio, pertence mais ao mundo do pai, o superego freudiano.
Mas a flor não é apenas símbolo do feminino, é também do renascimento primaveril e da totalidade em sua manifestação plena, ou seja, o que Jung chamaria o Si mesmo, e nesta história funciona como um indicador do processo por desenvolver.
Escada descendente
Cedo a palavra à obra: “encontrava-se na região dos asteroides 325, 326, 327, 328, 329 e 330. Começou pois a visitá-los para procurar uma ocupação e para instruir-se” (Capricórnio) (29). Assim foi como começou a descer a escada cósmica.
O asteroide 325 leva o nome de Heidelberg (30) e corresponderia, quando do nascimento do autor, a 0°49′ de Aquário, na leonina casa V, e em oposição a Vênus natal. Seu nome faz referência à cidade alemã de Heidelberg, conhecida por ter a universidade mais antiga da Alemanha, imortalizada na opereta de Sigmund Romberg intitulada O príncipe estudante.
Na obra, o Pequeno Príncipe corresponde a um reino sem súditos (o excêntrico Aquário), e coincidiria com o momento em que o puer percebe que é rei de um mundo solitário que não tem contato com a realidade (Aquário) (31).
O asteroide seguinte se chama Tamara (32), é o 326, e corresponde ao vaidoso (33), em 22°40′ de Áries na casa VIII; forma uma quadratura com relação a Verônica e a Vênus natal, implicando um momento de máxima tensão e crise de transformação (casa VIII), onde o rei anterior ganharia mais materialidade humana e apareceria meramente como vaidoso, despojado dos conteúdos de dignidade real que pertencem mais ao nível arquetípico.
O seguinte é o bebedor (34), que, é óbvio, bebia para esquecer; no caso de nosso herói, para esquecer seu amor rejeitado, e também possivelmente para dissolver sua estrutura anterior. Corresponde ao asteroide Columbia, cuja localização na eclíptica é quase 24° de Câncer (35) em conjunção a Vênus natal em quase 21° do mesmo signo; justamente a conjunção que assinala confusão de princípios indicaria a posse pela alma, quer dizer, a situação em que a alma seduz o herói com uma situação prazenteira, a bebedeira, quando em realidade o faz sucumbir na inconsciência do sonho e possivelmente da morte. Por isso o bebedor declara que bebe para esquecer a vergonha de que bebe (36).
O próximo é Gudrun, e tem toda a estrutura do eixo Virgem-Peixes. De fato sua posição é 25° de Peixes (37), e é um homem de negócios (38) que passa o tempo contando suas posses, as quais são nada mais nada menos que as estrelas, coisa bem pisciana. É realmente um “homem de negócios” que acabou de sair de uma bebedeira.
Depois vem Svea (39), o asteroide que corresponde ao faroleiro (40), que acende o farol cada vez que o sol se põe e o apaga em cada amanhecer.
Svea se encontra no signo do pôr-do-sol, no zodíaco radical, 25° de Libra (41), oposto, é óbvio, ao signo das saídas do Sol, Áries. Em primeira instância, o habitante deste diminuto planeta parece que é o encarregado de iluminar a noite – a luz da consciência, o que indica uma pequena esperança para nosso Pequeno Príncipe.
É digna de nota a aceleração do processo, já que a duração do dia deste asteroide vai-se acelerando até chegar a um dia por minuto terrestre (42). Provavelmente terei que pensar na circulação da luz, e citando Jung, “psicologicamente, esse curso circular seria um dar voltas em círculo em torno de si mesmo, com o que evidentemente ficam implicados todos os aspectos da personalidade.
Os polos do luminoso e do escuro são postos em movimento circular, ou seja, surge uma alternância de dia e noite.”(43). Através deste girar acelerado, produz-se um aumento da energia, que num dado momento produzirá um brilho da consciência (44). Outra questão importante neste asteroide é que o faroleiro é o primeiro que faz algo que não é para ele, como observa o próprio Pequeno Príncipe (45).
Do ponto de vista astrológico, este asteroide está em localização oposta, com apenas 39 minutos de arco de diferença, com relação ao asteroide Tamara, onde habita o vaidoso. Isto tem importância segundo a psicologia junguiana, já que o faroleiro, como ele declara (46), unicamente segue a ordem. E perguntaríamos: de quem?
Possivelmente o faroleiro só se põe a serviço de uma finalidade superior, que para Jung seria o Si mesmo, coisa que ainda não pode fazer, por exemplo, na etapa do homem de negócios, que pretende apropriar-se do que pertence à totalidade (as estrelas). Menciono este caso porque se situa na polaridade Virgem-Peixes, onde a chave de Virgem seria ficar a serviço da polaridade maior, que é Peixes.
Por último, antes de chegar à Terra, faz uma parada no asteroide Adalberto, que se encontra a 5° de Capricórnio (47), onde encontra um Geógrafo (48), etimologicamente alguém que desenha a Terra. Adalberto está significativamente em conjunção com Saturno, no final da casa IV, e talvez mais importante, em oposição ao Sol do Saint-Exupéry, com uma órbita inferior a dois graus, e quase na cúspide da casa V.
Esta oposição entre Câncer e Capricórnio indica uma viagem do mundo materno do Puer-menino ao mundo paterno do homem, e além do mais, na casa V, a casa da identidade.
O simbolismo da escada
Agora passarei a falar do simbolismo da escada, ou da escala, como diz o Dicionário dos Símbolos de Chevalier. “Os diferentes aspectos do simbolismo da escada se reduzem ao único problema das relações entre céu e terra” (49). A escada pode ser esculpida em uma árvore, na rocha, ou também pode ser de matéria aérea, como o arco-íris; ou de ordem espiritual, como os degraus da perfeição interior.
Mas a escada pode igualmente ser utilizada pela divindade para descer do céu à terra”, e neste sentido é um instrumento das epifanias divinas, mas também veículo de encarnação das almas. “No Timor Leste, o Senhor Sol, divindade suprema, baixa uma vez ao ano a uma figueira para fecundar sua esposa, a Terra Mãe” (50).
Os xamãs siberianos sobem ao céu e voltam a descer por uma bétula com sete entalhes (ou 9 ou 12), a escada de Buddha tem sete cores, a escala dos mistérios mitraicos sete metais, a escada de Jacob, por onde sobem e baixam os anjos etc., são diferentes exemplos do sentido da escala ou escada na história religiosa mundial (51); e não esqueçamos, que nosso Pequeno Príncipe baixou sua escada de 6 asteroides e planetas, chegando à Terra, como sétimo.
Por último transcrevo uma tradução de um texto de Macróbio, um platônico latino do século IV, Comentário a um Sonho de Cipião:
A alma, ao começar seu movimento descendente desde a intercessão do zodíaco com a Via Láctea até as esferas sucessivas inferiores, ao cruzar estas esferas, não apenas adota o envoltório de cada uma das esferas, aproximando-se de um corpo luminoso, mas também adquire cada um dos atributos que exercitará mais tarde, ou seja: na esfera de Saturno adquiriria a razão e a compreensão…; na esfera de Júpiter, a capacidade de atuar…; na esfera de Marte, um espírito intrépido…; na esfera do Sol, a percepção dos sentidos e a imaginação…; na esfera de Vênus, o impulso passional; na esfera de Mercúrio, a capacidade de falar e de interpretar…; e na esfera da Lua, a capacidade de semear e de cultivar corpos… (52)
Como poderíamos interpretar, do ponto de vista psíquico, esta viagem interplanetária, ou mais exatamente, interasteroides? Para isso deveremos rever as teorias astronômicas que tratam da origem destes diminutos corpos celestes.
Há duas teorias sustentadas pelos astrônomos:
A primeira diz que seriam o resultado da fragmentação de um antigo planeta, pois segundo uma tese astronômica, deveria haver um planeta entre Marte e Júpiter. A segunda, que seriam porções de matéria cósmica que nunca teria chegado a formar um corpo celeste maior. Estas duas possibilidades enfatizam a polaridade integração-desintegração, que, se interpretada simbolicamente do ponto de vista psíquico, tem, como já veremos, sérias consequências, inclusive para nosso tema.
Assim como se considera em astrologia que o Sol é a fonte primária da energia que o restante dos planetas reflete, na psique humana existem fragmentos que são chamados complexos que formam parte do que, para Jung, é o inconsciente pessoal.
Estes complexos são conglomerados de tonalidade afetiva, quer dizer, são como centros de força que atraem certo tipo de experiências. Assim se pode falar do complexo materno, do paterno ou de um complexo de poder etc. Os planetas, segundo este ponto de vista, podem ser entendidos como complexos.
O objetivo do trabalho terapêutico seria a integração à consciência destes fatores inconscientes, que tendem a ter certa autonomia. Os asteroides, neste contexto, podem ser entendidos da mesma maneira, quer dizer, como aspectos cindidos a serem integrados na consciência.
O Pequeno Príncipe, através da viagem para a Terra, no processo encarnatório, foi encontrando seus diferentes complexos.
E Saint-Exupéry, o autor, já vimos que era conde, nascera na cidade de Lyon, pertencia a uma família nobre de província que descera na escala social, embora conservasse algumas propriedades familiares, mas seu pai trabalhava para uma companhia de seguros.
Aqui vislumbramos possivelmente o rei sem súditos do primeiro asteroide. E se antes fizemos referência ao rei aquariano, não se pode esquecer que Saint-Exupéry tinha três planetas em sua aquariana casa XI, e o Sol a apenas três graus de sua cúspide, ainda na X.
Situação coletiva
Não devemos vasculhar apenas a psicologia pessoal do escritor para compreender-lhe a obra artística: temos que compreender também que mensagem coletiva deve manifestar, e que relação tem o conteúdo da obra com a consciência de sua época (53).
Se existe algo que seja característico deste personagem, é sua ingenuidade, esse dom antigo que faz pensar no paraíso, no “pastarão juntos o leão e o cabrito” da Bíblia. O Pequeno Príncipe é um ser que nos remete ao princípio, ao paraíso terrestre original, razão pela qual, ao voltar a seu asteroide, é picado por uma serpente, que é como o ouroboros da alquimia, a serpente que morde a própria cauda, que é a roda interminável da origem sempre voltando para si mesma, e assim se fazendo eterna.
Por outro lado a serpente também pode ser a astúcia da terra que nos pica, e esta é outra vertente do mesmo símbolo.
Tais características são evidentes no livro desde o começo, e em meu entender são o motor que nos faz lê-lo uma e outra vez com esse prazer, digamos, infantil.
No nível coletivo, O Pequeno Príncipe funciona como um balde de água fresca no meio do deserto humano da Segunda Grande Guerra (recordemos que foi escrito em 1942). Aqui nos referimos ao aspecto positivo do puer aeternus, que é essa capacidade de estar perto da fonte da vida, como os meninos, o que exerce um efeito rejuvenescedor sobre as pessoas que encarnam o arquétipo oposto, o senex, modelo do esgotado e do que chegou ao fim (o deserto). Este é um exemplo possível de como expressar a polaridade Mercúrio-Saturno.
Em segunda instância, o Pequeno Príncipe é um extraterrestre, vem de outro planeta. E é sabido que em 1942, época em que esta encantadora história começou a ser escrita, começaram a proliferar as notícias de OVNI, cuja quantidade aumenta grandemente após o fim da guerra (Segunda Guerra Mundial).
Segundo Jung, que também se ocupou deste tema, embora, naturalmente, considerando-o como fenômeno psíquico, durante a Segunda Guerra Mundial foram observados na Suécia misteriosos projéteis, que se supunha terem sido inventados pelos russos; também luzes que acompanhavam os aparelhos de bombardeio aliados, em suas incursões à Alemanha; logo se seguiram as profusas observações de pós-guerra nos EUA, até chegar ao conhecido caso Adamsky, em 1952, que disse ter viajado à Lua em uma nave tripulada por venusianos.
Jung estima que os OVNIs ou “discos voadores” são objetos de estrutura mandálica, de forma circular ou esférica – embora haja também com forma de “charutos”, quer dizer, cilíndricos -; e que têm a propriedade de irradiar luz intensa de diferentes cores.
A mandala como símbolo de totalidade
Para a psicologia profunda, a mandala é um símbolo de totalidade e pode simbolizar diferentes totalidades, como, por exemplo, o todo onde se inclua o macro e o microcosmo, e também a totalidade psíquica que engloba o consciente e inconsciente.
O círculo aparece na história como mágico ou protetor. De acordo com este ponto de vista, é símbolo de integridade psíquica, tendendo a conciliar as oposições, quer dizer, os conflitos. A aparição do símbolo mandálico nos sonhos geralmente funciona como amparo ante o perigo de fragmentação da consciência. Recordemos a situação de emergência em que se encontrava o narrador na obra. Mas, além disso, e já que se trata de um símbolo coletivo, e de um fenômeno coletivo, como o dos OVNIs, deveríamos investigar que situação coletiva produziria uma premente sensação de emergência para a humanidade.
Há diversos fatores a considerar:
- Em primeiro lugar a ocorrência das duas guerras mundiais sucessivas, separadas entre si por um intervalo de não mais que 20 anos.
- Justamente durante a Segunda Guerra, desenvolveram-se as bombas V1 eV2, que foram os primeiros foguetes da história. Seu artífice foi Werner Von Braun, o mesmo que desenvolveu os foguetes espaciais para o EUA, dirigindo o projeto Apolo XI, que chegou à Lua.
- O desenvolvimento do armamento nuclear. Precisamente, uma das particularidades do fenômeno OVNI é uma certa predileção pelas visitas a usinas nucleares e instalações atômicas. É muito conhecida a paranoia provocada pelo chamado “perigo nuclear”.
- A crescente massificação do homem, que encontra expressão, por um lado, nos enormes movimentos coletivos da época representados pelo fascismo, nazismo e comunismo, e, por outro, no próprio capitalismo, todos eles com um avançado sistema de propaganda cujo objetivo é levar o indivíduo a perder-se na massa, reduzindo a consciência à mediocridade do senso comum. Embora o homem, através da história, tenha tido aqui e ali alguma noção de sua individualidade, esta consciência de individualidade, salvo exceções notáveis, é uma conquista da história moderna, fruto das ideias liberais e da Revolução Francesa.
- Justamente entre as duas guerras mundiais surge a Filosofia Existencialista com sua ideia da angústia do homem diante da massificação. E esta consciência da angústia se dá no homem com consciência de sua individualidade, sendo certo também que esta questão tende a ser colocada por aquelas classes sociais com um mínimo grau de educação.
- A consciência cada vez mais aguda da universalidade dos fenômenos políticos e econômicos, processo que começou com a famosa queda da bolsa de Wall Street em 1929.
Isto provoca crescente insegurança na população mundial medianamente informada.
De modo que esta angústia coletiva certamente produzirá um estado de emergência, com o afloramento no inconsciente dos símbolos compensadores correspondentes.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1) “Formações do inconsciente”, Carl Jung, Ed. Paidos, p. 22
2) Diz Carl Jung: “o poeta… cria partindo da vivência primitiva, cuja escura natureza precisa das figuras mitológicas e portanto atrai avidamente para si o assemelhado, a fim de expressar-se nisso” e mais adiante diz: “O que aparece na visão é uma imagem do inconsciente coletivo”… (“Formações do inconsciente”, Carl Jung, Ed. Paidos, p. 22 y 23).
3) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 9.
4) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 9.
5) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 10.
6) “Saint-Exupéry”, Curtis Cate, Ed. EMECE, p.189.
7) “Saint-Exupéry”, Curtis Cate, Ed. EMECE p.189.
8) “Saint-Exupéry”, Curtis Cate, Ed. EMECE p.190.
9) “Saint-Exupéry”, Curtis Cate, Ed. EMECE p.190.
10) “Saint-Exupéry”, Curtis Cate, Ed. EMECE p.190.
11) “Saint-Exupéry”, Curtis Cate, Ed. EMECE p.185 e ss.
12) “Saint-Exupéry”, Curtis Cate, Ed. EMECE p.185.
13) “Saint-Exupéry”, Curtis Cate, Ed. EMECE p.186.
14) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 10.
15) “O Puer Aeternus, os gêmeos e a personalidade criativa”, Cosmovisión.
16) “O puer”, Marie-Louise Von Franz “Espelhos do eu”, Ed. Kairos p. 219.
17) “O puer”, Marie-Louise Von Franz “Espelhos do eu”, Ed. Kairos p. 220.
18) “Símbolos de transformação” Carl Jung, Ed. Paidos p. 271.
19) “O puer”, Marie-Louise Von Franz “Espelhos do eu”, Ed. Kairos p. 221.
20) “O puer”, Marie-Louise Von Franz “Espelhos do eu”, Ed. Kairos p. 221.
21) “Símbolos de transformação” Carl Jung, Ed. Paidos p. 271.
22) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 17.
23) Astrodienst – www.astro.com
24) Astrodienst – www.astro.com
25) Dicionário Enciclopédico Larousse 2000 p. 1028.
26) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 31.
27) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 32.
28) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 32.
29) Dicionário de símbolos, J. Chevalier, A. Gheerbrant, Ed. Herder p.504.
30) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 38.
31) O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 38.
32) ” Astrodienst – www.astro.com
33) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 44.
34) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 46.
35) Astrodienst – www.astro.com
36) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 47.
37) Astrodienst – www.astro.com
38) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 47.
39) Astrodienst – www.astro.com
40) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 52.
41) Astrodienst – www.astro.com
42) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 53
43) “O segredo da flor de ouro”, R. Wilhelm, prefácio do C. Jung, Ed. Solar, p. 43.
44) “O segredo da flor de ouro”, R. Wilhelm, prefácio de C. Jung, Ed. Solar p. 43.
45) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 56.
46) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 53.
47) Astrodienst – www.astro.com
48) “O Pequeno Príncipe” Antoine de Saint-Exupéry, Ed P&T 1999 p. 57
49) “Dicionário de símbolos”, J. Chevalier, A. Gheerbrant, Ed. Herder p.455.
50) “Dicionário de símbolos”, J. Chevalier, A. Gheerbrant, Ed. Herder p.460.
51) “Dicionário de símbolos”, J. Chevalier, A. Gheerbrant, Ed. Herder p.459.
52) “Mas allá de este mundo”, Ioan P. Couliamo, Ed. Paidos, p. 193.
53) “Formações do inconsciente”, Carl Jung, Ed. Paidos,p.19.61
FOTOS E ILUSTRAÇÕES:
Todas as fotos de Saint-Exupéry têm como fonte o site da Fondation Antoine de Saint-Exupéry: https://www.antoinedesaintexupery.com/
As aquarelas que ilustram o artigo foram produzidas pelo próprio Saint-Exupéry e podem ser encontradas em diversos sites na Internet, assim como em todas as edições do livro, em diversas línguas. Um bom lugar para ver a série completa das aquarelas originais e ler O Pequeno Príncipe em texto integral, em versão francesa ou espanhola, é o site: https://microtop.ca/lepetitprince/