Afirmo, portanto, que tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores ou em razão de nossas iniquidades, a peste atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fora de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miserável, para o Ocidente.
(Giovanni Boccaccio, século XIV)
De todas as “pestes” das quais conhecemos registros, uma marcou profundamente a memória coletiva. Foi o reaparecimento da peste bubônica em território europeu, durante o século XIV, quando dizimou, em quatro anos (de 1348 a 1352), de um terço a metade de toda a população do continente. Foi a mais letal, mais terrível e mais arrasadora epidemia que se abateu sobre a humanidade.
A expressão peste negra é sinônimo de peste bubônica, doença provocada pelo bacilo Yersinia pestis. Seu vetor mais frequente
é a pulga Xenopsylla cheopis, que na época parasitava tanto o pequeno rato preto dos navios, o Rattus rattus, como o rato marrom, muito comum nos esgotos. O bacilo vive alternadamente no estômago da pulga e na corrente sanguínea do rato. Até hoje não se sabe o que precipitou a mutação do bacilo da forma inócua para a virulenta. (GUSMÃO Jr., Amiraldo M. A experiência do Apocalipse.)
A peste negra, doença provocada pelo bacilo, manifesta-se de três formas:
a pneumônica, que ataca os pulmões; a septicêmica, que infecta a corrente sanguínea; e a bubônica, a mais comum, cujo nome deriva das tumefações do tamanho de um ovo, conhecidas como bubos ou bubões, que aparecem no pescoço, nas axilas ou nas virilhas do doente nos primeiros estágios da doença. (GUSMÃO Jr., Amiraldo M. A experiência do Apocalipse.)
É provável que a peste bubônica seja a mesma doença que já assolara a Europa de forma endêmica no início da Idade Média e parecia relativamente extinta desde o século VIII. O “cataclismo do século XIV” teve origem na Ásia Central, mais provavelmente em regiões sob domínio tártaro-mongólico em torno do lago Balkash (atual Casaquistão). Os primeiros registros de sua virulência datam de 1340. Nos anos seguintes, avança rapidamente para o Ocidente e desloca-se ao longo da rota de comércio mais utilizada, à época, que era a das caravanas no Norte do Cáspio. Em 1346, já está em Astracã.
Em 1347 chega ao mar Negro, na cidade de Caffa, então sitiada por um exército tártaro que sucumbe à doença. Antes, porém, do levantamento do cerco pelos sobreviventes, cadáveres de pestíferos são catapultados para dentro das muralhas da cidade, que liberta-se da guerra para acolher a enfermidade. Entretanto, Caffa libertada pode retomar seu tráfego marítimo e assim acaba por garantir a contaminação do restante da Europa.
Um navio cheio de marinheiros e comerciantes genoveses foge de Caffa e chega a Messina, na ilha italiana da Sicília, em outubro de 1347. Em janeiro de 1348 é a vez do contágio chegar a Gênova. Em fevereiro, ao porto francês de Marselha e à cidade italiana de Pisa. Em março de 1348 a peste avança sem controle para Roma e Avignon. Em maio já se espalha pela Espanha, a partir de Valência, e em junho chega a Paris. Apenas na região da Provença, no sul da França, estima-se que tenha matado entre 50% e 75% da população. Paralelamente, a peste avança em direção à Grécia, ao Egito e à região dos Bálcãs.
Estava aberto o caminho para o contágio de grandes massas populacionais na França, Flandres, Inglaterra, Alemanha e países nórdicos, numa onda crescente que atingirá seu auge em 1350 e só começará a decair a partir de 1351-1352. Em poucos anos, a população da Europa vê-se reduzida em mais de um terço, ao mesmo tempo em que milhares (ou milhões) de vidas também eram ceifadas no Norte da África, na Ásia Central e na China.
Uma doença aterrorizante
Assustava terrivelmente a população o aspecto enegrecido das manchas que acometiam a pele dos doentes (de onde deriva o apodo “peste negra”), os imensos infartamentos ganglionares (“bubões”) inguinais e axilares e, especialmente, a rapidez com que se davam as mortes.
A doença era aterrorizante. Os bubões purgavam pus e sangue, e eram acompanhados por manchas escuras, resultantes de hemorragias internas. Os doentes sentiam dores muito fortes e geralmente morriam em até cinco dias após a manifestação dos primeiros sintomas. No caso da forma pneumônica, o doente tinha febre alta e constante, tosse forte, suores abundantes e escarro sangrento, e morria em três dias ou menos. Em ambos os casos, tudo que saía do corpo – hálito, suor, sangue dos bubões e pulmões, urina sanguinolenta e excrementos enegrecidos pelo sangue – cheirava extremamente mal. A depressão e o desespero acompanhavam os sintomas físicos, o que levou alguns cronistas da época a dizer que “a morte se estampava no rosto dos condenados”. ((GUSMÃO Jr., Amiraldo M. A experiência do Apocalipse.)
É difícil estabelecer, a partir dos dados existentes, uma taxa fiel de mortalidade para esta epidemia – embora os registros da época evoquem, a todo momento, as ruas e praças atoladas pelos milhares de cadáveres que não se conseguiam sepultar, os campos e cidades completamente despovoados, a miséria e a fome crescentes dos sobreviventes. Ainda assim, esta epidemia passa para a História como a catástrofe mais brutal já experimentada pela humanidade, e também a de maior alcance social.
A peste do século XIV não varreu apenas o continente europeu. Apesar da maior escassez de documentos em relação ao Oriente, sabe-se que algumas regiões da China conheceram taxas de mortalidade tão altas quanto 50 a 70% entre seus habitantes. É possível, inclusive, que a peste tenha contribuído para o empobrecimento da população e o enfraquecimento político do império mongol, favorecendo, em alguma medida, a ascensão ao poder da dinastia Ming em 1368.
Tal cataclismo, em toda a sua extensão e pavor, jamais voltou a ocorrer na história humana e gostaríamos de acreditar que possuímos já os instrumentos e a terapêutica necessários para fazer frente a uma ameaça desse tipo. Todavia, é também possível que o recente surgimento das “viroses emergentes”, responsáveis pelas chamadas “febres hemorrágicas” atuais, sirva de alerta para a possibilidade de que os vírus venham a exercer, no mundo moderno, o mesmo papel que os bacilos e as bactérias exerceram no mundo antigo e medieval: uma ameaça concreta de disseminação descontrolada de uma doença de caráter extremamente agudo, fatal e desprovido de terapêutica conhecida.
O mapa do horror na Europa
A compreensão astrológica da peste negra representa um desafio quase insuperável, permitindo, porém, algumas aproximações bastante reveladoras. O primeiro dado a considerar é que a fase de máxima virulência do flagelo – aquela que vai de 1348 a 1352 – está totalmente contida no trânsito de Netuno pelo signo de Aquário, que se inicia em 1343 e estende-se até 1357.
É de senso comum que transformações coletivas de grande alcance devam ser significadas pelos planetas exteriores do sistema solar, aqueles que, pela sua marcada lentidão, identificam os ciclos que afetam toda a massa de seres humanos, constituindo o pano de fundo onde vão operar os planetas rápidos, mais identificados com o nível de atuação individual.
Urano, Netuno e Plutão, planetas mais lentos e mais distantes do Sol, são invisíveis a olho nu e não faziam parte do universo conhecido até serem progressivamente descobertos ao longo dos dois últimos séculos. A peste negra, cuja etiologia nossos antepassados eram incapazes de imaginar, provocada por um bacilo microscópico e invisível, tem analogia direta com estes planetas.
Há registro histórico de muitas datas que poderiam servir como ponto de partida para a análise do significado da peste negra. Na falta de um marco mais preciso, podemos considerar que configurações marcaram os céus no período de outubro de 1347 a fevereiro de 1348, caracterizando os cinco meses que foram decisivos para a disseminação da epidemia na Europa. O que vemos é bastante revelador:
Urano e Plutão estão em Áries. Netuno ocupa o signo de Aquário enquanto Saturno se encontra em Peixes (considerando regências modernas, teríamos aí um caso de recepção mútua, ou troca de domicílios, com efeito semelhante ao de uma conjunção). Saturno em Peixes parece lembrar o papel do mar na propagação da doença. São as viagens marítimas (Peixes) que trazem para a Europa o pequeno rato negro (Saturno) infectado com o bacilo da peste.
Júpiter, finalmente, está em Touro, em quadratura com Netuno. Os contatos Júpiter-Netuno parecem favorecer a expansão de pandemias, já que são dois planetas relacionados à ideia de crescimento desordenado e ausência de limites. Normalmente Júpiter é lembrado como planeta da abundância, da acumulação, da assimilação e do status quo. Entretanto, quando envolvido em configurações mais difíceis pode indicar processos de hipertrofia, inchaço, congestão.
É interessante notar que o primeiro período da peste bubônica na Europa – aquele que se encerrara no século VIII, quase seiscentos anos antes da Grande Peste – caracterizou-se por um inexplicável ciclo de agravamentos a cada doze anos, fato que se repetiu ininterruptamente ao longo de mais de um século. Ora, doze anos correspondem a uma órbita completa de Júpiter em torno do Sol, o que poderia indicar, talvez, a presença de um componente jupiteriano na peste bubônica. Este planeta rege o fígado, exatamente o órgão encarregado da filtragem do sangue contaminado pelo bacilo.
A sobrevivência ou a morte do infectado dependia, em última análise, da capacidade de seu fígado para resistir à sobrecarga. Era o colapso da função hepática que originava o sangue pútrido. Fígado e baço hipertrofiavam e a morte sobrevinha pelo choque da toxemia (que é sanguínea e causa taquicardia, prostração, a facies de intenso sofrimento e coma).
Peste e mobilidade social
A sociedade medieval vinha sendo até então uma sociedade de classes fechadas, com oportunidades de mobilidade e ascensão quase inexistentes. As diferenciações entre nobres, clérigos e camponeses, justificadas pela ideologia religiosa, constituíam barreiras intransponíveis que contribuíam para manter a imutabilidade do status quo. O renascimento do comércio e da vida urbana, por volta do século XI, assim como a crescente importância da burguesia e o surgimento de movimentos heréticos, não haviam sido ainda suficientes para provocar fissuras realmente importantes nesta estrutura.
Com a peste negra, ocorre uma desorganização da vida social numa escala sem precedentes. Nas regiões atingidas, o incontável número de mortes despovoa campos e cidades, e o terror da contaminação provoca a debandada da população remanescente. É um verdadeiro “salve-se quem puder”, que iguala no pânico sacerdotes e mercadores, camponeses e altos dignitários da nobreza. A peste é democrática: ceifa vidas em todas as classes, invade indiscriminadamente choupanas e mosteiros e destrói laços comunitários, conforme nos informa Amiraldo:
A peste era o tipo de calamidade que não inspirava solidariedade. O fato de ser asquerosa e mortal não aproximava as pessoas num sofrimento mútuo, mas apenas aumentava seu desejo de escapar da mesma sorte. Desse modo, a fuga era generalizada. Fugiam os magistrados e notários, que se recusavam a fazer o testamento dos agonizantes, fugiam os padres, em pânico diante da perspectiva de ouvir as confissões dos moribundos, e fugiam os médicos, o que só piorava o quadro geral. Para muitos, o fim do mundo era tido como certo, o que os levava a procurar o esquecimento no prazer sem freios (…). (GUSMÃO Jr., Amiraldo M. A experiência do Apocalipse.)
Bibliografia
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BARRETO, Mauricio Lima. “A Epidemiologia, sua História e Crises: Notas para se pensar o Futuro”. IN: COSTA, Dina C. Epidemiologia – Teoria e Objeto. São Paulo, Hucitec-Abrasco, 1990.
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FREMANTLE, Anne. Idade da Fé. Rio de Janeiro, José Olympio, 1974.
GUSMÃO Jr., Amiraldo M. A experiência do Apocalipse. In: http://www.galeon.com/projetochronos/concilium.htm
HALE, John R. A Idade das Explorações. Rio de Janeiro, José Olympio, 1974.
PENDLE, George. A History of Latin America. Middlesex, Penguin Books, 1971.
PRÉAUD, Maxime. Les astrologues à la fin du Moyen Age. Paris, J. C. Lattès, 1984.
SOURNIA, Jean-Charles e RUFFIE, Jacques. As epidemias na história do homem. Coleção Perspectivas do Homem, Lisboa, Edições 70, 1984.
OBSERVAÇÃO: As quatro primeiras seções deste artigo (descrição da peste negra) foram escrita a quatro mãos. Fernando redigiu as três seções finais. Ana é autora única do artigo complementar, Epidemias e Epidemiologia. A pesquisa e as conclusões apresentadas resultam de uma construção conjunta, que explora a abordagem multidisciplinar da Medicina, da História e da Astrologia. O trabalho sobre a peste negra foi apresentado pelos autores em evento promovido pelo SINARJ e pela escola Astro-Timing, do Rio de Janeiro, em 8 de novembro de 1999.