O fim do cativeiro no Brasil era questão de tempo. Com a proibição do tráfico negreiro em 1850 e com a Lei do Ventre Livre de 1871, o sistema escravista tendia ao desaparecimento natural, pela absoluta falta de braços. Em 25 de outubro de 1887 o Exército manifestara sua terminante recusa de perseguir escravos fugidos, solicitando à Princesa Isabel que não lhe atribuísse tal missão. Quem melhor expressou essa atitude foi o marechal Deodoro da Fonseca, ao escrever:
Diante de homens que fogem calmos, sem ruído, tranquilamente, evitando tanto a escravidão como a luta e dando, ao atravessar cidades, enormes exemplos de moralidade, (…) o Exército brasileiro espera que o governo imperial conceder-lhe-á o que respeitosamente pede em nome da humanidade e da honra da própria bandeira que defende.
A mesma bandeira imperial, aliás, que Castro Alves retratara maculada pela barbárie da escravidão no inflamado poema O Navio Negreiro:
Auriverde pendão da minha terra
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança,
Tu, que da liberdade após a guerra
Foste hasteada dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha
Que servires a um povo de mortalha!
Assim, em parte pressionado pela Inglaterra, em parte obrigado à modernização para adequar-se ao novo contexto do capitalismo internacional, em parte ainda acuado pela emergência de uma classe média urbana e de uma intelectualidade a quem repugnavam as ideias escravocratas, o Império do Brasil não tinha mesmo muita saída. A Lei Áurea não caiu de sopetão sobre a opinião pública, mas foi o ato final de um longo processo iniciado décadas antes. Basta observar que o trâmite da lei foi tranquilo, quase consensual. Na fala do trono de 3 de maio de 1888, a princesa já a prenunciara claramente ao dizer que “a extinção do elemento servil (…) é hoje aspiração aclamada por todas as classes”. Quatro dias depois, em 7 de maio, o ministro João Alfredo apresenta o projeto ao parlamento e sequer se dá ao trabalho de justificá-lo. Desnecessário, aliás, pois em 8 de maio a lei é aprovada por maioria esmagadora: 89 votos a 9. A princesa estava em Petrópolis e de lá desce ao Rio especialmente para sancioná-la. No domingo, 13 de maio, às 15h15, a Princesa Isabel assina a Lei Áurea em meio a manifestações de júbilo e festas populares.
O fato é que, numa análise fria, o 28 de setembro de 1871, data da Lei do Ventre Livre, tem uma importância estratégica para o fim da escravidão maior do que a própria Lei Áurea, sendo esta, antes de tudo, um ato simbólico.
Ato simbólico… É exatamente aí que a abordagem astrológica encontra seu lugar. Mais do que explicar fatos, mapas de eventos históricos servem para explicar como esses fatos são percebidos, que representações se constroem em torno deles, de que significados se investem aos olhos de seus contemporâneos e das gerações futuras. Mapas astrológicos são teias de símbolos. Compreender por que o 13 de maio de 1888 assumiu uma dimensão tão grande na história do país é compreender um pouco mais o que a sociedade brasileira pensa de si mesma e como deseja ser vista.
Urano no Ascendente da Abolição
A forma como nos vemos, a imagem com a qual nos identificamos e que gostamos de projetar para o mundo tem muito a ver com o Ascendente. E o mapa da Lei Áurea, calculado para 13 de maio de 1888, às 15h15 (hora local do Rio de Janeiro), mostra o Ascendente em Libra em fechada conjunção com Urano e Marte no mesmo signo, ambos retrógrados.
Este conjunto de fatores resume a natureza do acontecimento: Libra no Ascendente define a assinatura da Lei Áurea como um marco na busca por uma sociedade brasileira mais justa e equitativa; Urano fala de liberdade e de ruptura com o status quo, enquanto Marte define a forma como a campanha abolicionista foi conduzida. Marte é um símbolo de luta. Em Libra, signo do mental elemento Ar, tal luta tende a ser travada na esfera intelectual ou político-social. Não foi outra coisa o que aconteceu na campanha abolicionista, que ganhou o coração da opinião pública em função do trabalho incansável de jornalistas como José do Patrocínio, poetas como Castro Alves, diplomatas e parlamentares como Joaquim Nabuco, compositores como Chiquinha Gonzaga, empresários como o Barão de Drummond e tantos mais. Marte é também um significador essencial dos militares, e tiveram estes um papel destacado na formação de uma consciência antiescravagista, especialmente em função da Guerra do Paraguai.
É fato sabido que boa parte das tropas enviadas aos combates no Paraguai era constituída por escravos. De cada três soldados brasileiros, dois eram negros. Soldados à força, muitas vezes sem uma ideia clara de por que estavam lutando, os batalhões de negros acabaram protagonizando alguns dos episódios mais heroicos da guerra, enfrentando missões de enorme dificuldade. A maioria morreu em combate, o que fez com que, pela primeira vez, a população branca se tornasse majoritária no Brasil. Muitos historiadores chegam a ver no envio de tropas negras à Guerra do Paraguai uma estratégia intencional de “branqueamento” do Império. Premeditado ou não, o uso de negros como “bucha de canhão” nas frentes de combate reduziu drasticamente o contingente de escravos. E vinham estes exatamente das regiões do país onde já não eram tão necessários, dada a introdução do trabalho dos imigrantes europeus. O fato é que os negros sobreviventes ganhavam a alforria e também o respeito dos antigos colegas de farda. Daí em diante seria difícil convencer um oficial branco a exercer o papel de capitão do mato, caçando negros fugitivos. Muitos oficiais a isso se recusariam com veemência, considerando tal tarefa indigna do Exército. A presença de Marte junto a Urano e ao Ascendente da Lei Áurea carrega essa história.
Não custa lembrar que a Abolição foi também uma das gotas-d’água para a queda do Império, e que a República veio exatamente pelas mãos dos militares. Neste sentido, a conjunção do guerreiro Marte com o revolucionário Urano mostra que o 13 de maio de 1888 foi também o prenúncio do 15 de novembro do ano seguinte…
Vênus, regente do Ascendente, está duplamente forte, seja por estar em Touro, um de seus domicílios, seja por ocupar a casa 7, que tem analogia natural com Libra, seu outro domicílio. Vênus é não apenas regente do mapa da Lei da Áurea como do próprio mapa do Descobrimento do Brasil, cujo Ascendente – segundo o mapa retificado que utilizamos – estaria em 28º’48’ de Libra. É, portanto, o planeta-símbolo da experiência civilizatória que se desenvolveu desde o período colonial, da qual o modelo de produção escravista era um elemento essencial. Quando superpomos as duas cartas, a do Descobrimento e a da Lei Áurea, vemos o mesmo Ascendente Libra (o mito do brasileiro cordial, que resolve suas pendências pelo “jeitinho”) e a mesma ênfase em Touro na casa 7 (a importância da Terra, daquilo que ela produz e dos homens que a detêm – a aristocracia rural).
No mapa do Descobrimento, Mercúrio é o regente da casa 12 (escravos) e está em conjunção com o Sol (a identidade). O Brasil colonial fora mesmo a terra dos degredados, dos escravos, dos índios reduzidos à servidão e ao aniquilamento. Vênus, regente do mapa da Lei Áurea, faz conjunção com este Mercúrio do Descobrimento, anunciando uma suavização de condições e a busca de um novo modus vivendi interracial.
Naturalmente, entre o projeto e sua realização vai uma bela distância. A Abolição não trouxe a transformação imediata dos ex-cativos que, excluídos do sistema educacional e abandonados à própria sorte, logo irão engrossar a periferia das áreas urbanas nos primórdios da República, dando origem às primeiras favelas.
Desocupados, marginalizados, obrigados à vagabundagem ou a viverem do trabalho ocasional, os negros foram estigmatizados como incorrigíveis malandros, viciados sub-homens que eram um perigo para a opinião pública. Depois da Abolição, vagando sem rumo, procurando fixar-se e repudiados sempre, os criadores do Brasil foram escorraçados e perseguidos, vítimas da violência impune dos brancos; e não faltou o revanchismo dos velhos proprietários, espancando, aleijando, prendendo e até matando muitos negros. (CHIAVENATO, Julio José. O negro no Brasil.)
Rui Barbosa faz uma queima de arquivo
O eixo mais ocupado do mapa é o das casas 2 (onde está Júpiter) e 8 (onde estão Sol, Mercúrio, Netuno e Plutão). Este eixo é significador de questões financeiras, envolvendo os bens móveis (casa 2) e os recursos compartilhados e tributos (casa 8). Efetivamente, toda a longa campanha abolicionista tivera de enfrentar por décadas a resistência dos grandes proprietários rurais, para quem a libertação dos escravos era sinônimo da desorganização do sistema produtivo. Produtores mais modernos, especialmente cafeicultores do interior de São Paulo, anteciparam-se à abolição substituindo a mão de obra escrava pelo trabalho assalariado de imigrantes, com resultados animadores. Mesmo assim, ainda havia entre os segmentos mais conservadores da aristocracia rural a percepção de que a alforria dos escravos constituía uma ameaça que cumpria ao Império evitar.
As inevitáveis mudanças na estrutura da produção econômica são indicadas no mapa da Lei Áurea pela oposição do dissolvente Netuno e do desestabilizador Plutão, ambos na casa 8, a Júpiter – um símbolo da aristocracia e da ordem jurídica – na casa 2. A abolição, naturalmente, desagrada aos grandes fazendeiros, e o apoio da princesa-regente ao ideal abolicionista foi visto como uma traição.
Este Netuno na 8 tem ainda um significado curioso: pouco depois da Proclamação da República, Rui Barbosa, vice-chefe do governo provisório e, mais tarde, ministro da Fazenda, resolveu dar sumiço na nódoa vergonhosa da escravidão e fê-lo da forma mais simples – incendiando os arquivos. No fundo, o motivo não tinha nada de nobre. O que Rui Barbosa pretendia era evitar que houvesse registros que permitissem aos grandes proprietários prejudicados pela perda dos escravos solicitar alguma forma de indenização. Foi – literalmente – um caso de queima de arquivo! Netuno, planeta da dissimulação, e Plutão, um símbolo de manipulação, respondem por este atentado à memória do país.