-Etelvina, minha filha!
-Que há, Morangueira?
-Acertei no milhar,
Ganhei 500 contos,
Não vou mais trabalhar.(samba de Wilson Batista e Geraldo Pereira,
gravado por Moreira da Silva)
Uma crônica publicado no jornal O Tempo de 23 de julho de 1892 dá bem a ideia da polêmica que naqueles dias já se instalava em relação ao modismo surgido semanas antes no Jardim Zoológico. Ironizando a esperteza brasileira sempre voltado para o lucro com pouco esforço, o articulista escreveu:
É vir à rua do Ouvidor às 5 horas da tarde, quando a caixa sobe para os que tem de ir ao cofre, para se reconhecer que o inventor da víspora é homem de gênio. Na primeira revolução em que eu tenha influência fá-lo-ei ministro da Fazenda. (…) Por aqueles papéis de bichos pintados, avalia-se o gênio de um povo e a moralidade de um regime político. Ganhar pelo trabalho é uma velharia e custa uma vida inteira. Hoje reza-se por outra cartilha; o jogo, a sorte, o ágio e a advocacia administrativa parlamentar que em um abrir e fechar de mãos levam um homem a habitar palácios principescos em Lisboa ou pelintrar nos boulevards de Paris. O gênio que criou tudo isso bem sabe o que fez. (Maximo Job, em O Tempo, 23 de julho de 1892)
Na verdade, a apuração do jogo do bicho acontecia diariamente no bairro de Vila Isabel, às cinco da tarde. Mas o jogo atraía tamanha atenção que uma pequena multidão já se reunia todos os dias na rua do Ouvidor, centro dos passeios elegantes, para tomar conhecimento do resultado. Diga-se de passagem que ainda não se tratava de uma diversão clandestina, mas de uma típica distração da classe média.
Barão de Drummond, o empreendedor
O inventor do jogo do bicho foi o empresário mineiro João Baptista Vianna Drummond, nascido em Itabira do Mato Dentro em 1° de maio de 1825 (hora desconhecida). Drummond veio cedo para o Rio de Janeiro, trazendo na mala os três contos de réis que seu pai, um coronel mineiro, deixara como dote para cada um dos catorze filhos. Espírito empreendedor, o futuro barão estabeleceu-se no comércio de importação, mas seu primeiro grande sucesso no mundo das finanças deveu-se a especulações bem sucedidas na bolsa de valores.
Já estabelecido como homem de negócios, casa-se com a filha de um banqueiro e é admitido na aristocracia carioca, na época girando em torno da corte imperial. Mais adiante, estará atuando nos negócios públicos e estabelecendo amizade com o Barão de Mauá, de quem se torna sócio em alguns empreendimentos. Em 1872, Drummond compra uma vasta área na zona norte do Rio, então pertencente à Duquesa de Bragança, e inicia o empreendimento que o tornaria indissoluvelmente ligado à história da cidade.
O Barão de Drummond era uma das poucas personalidades que podia orgulhar-se de ter fundado um bairro inteiro a partir do nada. Foi o que aconteceu com Vila Isabel (homenagem à princesa), bairro planejado, cujos lotes de terra foram vendidos já com todos os melhoramentos urbanos devidamente implantados. Ao contrário do modelo urbanístico então dominante na cidade, cujas ruas estreitas atestavam a herança portuguesa, a Vila Isabel foi concebida a partir do modelo parisiense que Drummond conhecera numa recente viagem à França, com avenidas largas e uma estrutura de lazer e de serviços até então inexistente na terra carioca. [1] O Boulevard 28 de Setembro (homenagem à Lei do Ventre Livre) foi aberto em 1871, sendo, durante muito tempo, a mais larga e moderna avenida do Rio de Janeiro, posição que só veio a perder quando da abertura da Av. Central, na primeira década do século XX. O Barão de Drummond foi também um ferrenho abolicionista: alforriou todos os seus escravos muito antes da Abolição e deu às ruas de Vila Isabel o nome dos principais líderes abolicionistas da segunda metade do século XIX.
A carta solar do Barão de Drummond revela alguns aspectos compatíveis com sua biografia de homem empreendedor e de visão aberta, capaz de compatibilizar a generosidade dos ideais abolicionistas com uma boa dose de senso prático. Metade dos planetas está em signos de Terra (Touro e Capricórnio), destacando-se dois belos trígonos: Sol-Netuno (a imaginação a serviço dos projetos pessoais) e Marte-Urano (ousadia e pioneirismo no campo dos negócios). Júpiter em Leão, em quadratura com o Sol, completa o quadro do empresário entusiasmado, capaz de pensar grande, às vezes pecando pelo exagero. Entre outras aventuras, o Barão quase explodiu com dinamite o Morro do Castelo procurando o lendário tesouro perdido dos jesuítas.
A criação do jogo do bicho
Drummond também criou o primeiro jardim zoológico da cidade, na fazenda dos Macacos (hoje Rua Visconde de Santa Isabel) e nele implantou uma série de atrações e divertimentos com vistas a atrair o público. Um deles foi o jogo do bicho, cuja primeira extração ocorreu em 3 de julho de 1892, às 17h, como conta a reportagem do Diário do Commércio do dia seguinte:
Realizou-se ontem, como tinhamos anunciado, a inauguração da nova empresa do Jardim Zoológico.
Às 3 horas das tarde partiram do largo do Rocio em direção a Vila Isabel, dois bonds especiais dessa companhia, levando os convidados daquele empresa, sendo precedidos de uma banda de música. Chegados ali foram os convidados recebidos pela administração do Jardim, que gentilmente acompanhou-os na visita geral.
Às 5 horas desceu a caixa que continha a figura do animal que dominava o dia, de acordo com o programa. O avestruz foi o animal vencedor e que deu aos donos dos bilhetes respectivos os 20$ de prêmio.
Após a vitória do avestruz a vitória do estômago. Deu-se começo pois a um lauto e profuso banquete de 100 talheres, havendo por esta ocasião brindes de saudações recíprocas.
À festa compareceram muitas distintas senhoras, representantes da imprensa e outros muitos convidados.” (Diário do Commércio, 4 de julho de 1892)
Vejamos os mapas: a primeira extração do jogo do bicho tem o Ascendente em 7°08′ de Capricórnio. O regente do Ascendente é Saturno colado no Meio do Céu, indicando que o novo jogo teria um destino ligado ao poder e à criação de alguma forma de organização hierarquizada (É fato sabido que o jogo do bicho tem em sua retaguarda uma organização exemplar. Há quem diga que é uma das poucas instituições que funcionam bem no Brasil – Saturno em Virgem!).
A Lua está em conjunção com Urano em Escorpião na casa 10, o que combina com a futura imagem do jogo do bicho como uma prática ao mesmo tempo transgressiva e tremendamente popular.
O regente da casa 5 (jogos) do mapa da primeira extração é Vênus na 7 (sociedade), em quadratura com Júpiter na casa 4 (aquilo que faz parte dos costumes populares, a despeito das autoridades), regente da 12 (das atividades escusas). Tal aspecto já simboliza a extração do bicho como jogo de azar e indica sua futura caracterização como contravenção.
Num primeiro momento, o jogo do bicho era uma loteria inocente, que distribuía prêmios apenas aos frequentadores do jardim zoológico. Cada entrada, no valor de 1000 réis, dava direito a um bilhete. Menos de um mês depois, já era a coqueluche da cidade, e os resultados do sorteio mereciam destaque na imprensa e despertavam a curiosidade de autoridades, como atesta o Diário do Commércio de 11 de julho de 1892:
Venceu ontem o gato. A empresa pagou prêmios na importância de 1:420$000. O Jardim foi visitado por 1350 pessoas.
O Sr. ministro da Guerra visitou ontem o Jardim Zoológico em companhia do barão de Drummond. S. Ex. foi testemunha da forma dos prêmios estabelecidos pela empresa, a fim de animar a concorrência daquele estabelecimento. Muito agradou a S. Ex. a ordem e asseio daquela vivenda de animaes.
O movimento não parava de crescer, e sempre com boa cobertura na imprensa. A Gazeta da Tarde noticiava, em 8 de julho de 1892, uma breve visita do marechal Floriano Peixoto ao estabelecimento. E O Tempo informava diariamente aos seus leitores os resultados do sorteio da véspera, o que nos permite saber que deu o avestruz em 10 de julho, o gato no dia 13 e o cavalo no dia 15. Tanto estardalhaço despertou reações contrárias que desembocaram numa campanha moralista da parte de alguns jornais e em pedidos de interdição ao chefe da polícia. Este não se fez de rogado e, em 22 de julho de 1892, assim se dirigia em ofício ao Dr. 2° Delegado:
No empenho de procurar atrair concorrência de visitantes ao Jardim Zoológico, solicitou o seu diretor para certo recreio público licença, que lhe foi concedida pela polícia, em vista da feição disfarçadamente inocente que da simples primeira descrição do divertimento parecia se deduzir. Entretanto, posta em prática essa diversão, se verifica que tem ela o alcance de verdadeiro jogo, manifestamente proibido. (…)
Esta diversão, prejudicial aos interesses dos incautos, que com a esperança enganadora de um incerto lucro se deixam ingenuamente seduzir, é precisamente um verdadeiro jogo de azar, porque a perda e o ganho dependem exclusivamente do acaso e da sorte.
Como semelhante divertimento não pode por mais tempo ser tolerado, e (…) muitas queixas me têm sido dirigidas pelas pessoas lesadas, assim intimarei ao diretor do Jardim Zoológico para que suspenda imediatamente a continuação do aludido jogo, sob pena de ser processado na conformidade dos arts. 369 e 370 do código penal.”[2]
Até onde se tem notícia, foi a primeira manifestação de uma autoridade policial no sentido de reprimir o jogo do bicho. E isso, apenas 19 dias após sua criação! Todavia, as ordens do chefe da polícia parecem ter caído no vazio, já que o sorteio continuou a ser realizado da mesma forma de sempre, e ainda por muitos anos.
Mas o bicho só passou para a mão dos contraventores após a morte do barão, em 1897. Aos poucos, tornou-se o eixo organizador da riqueza do submundo e sustentáculo financeiro das escolas de samba.
O jogo do bicho e o mapa do Rio de Janeiro
Antes de tornar-se uma instituição nacional, o jogo do bicho precisou firmar-se no Rio de Janeiro, onde tem até os dias de hoje seu maior reduto. O mapa seguinte mostra a sinastria entre a carta da cidade (planetas no círculo interno) e o jogo do bicho (círculo externo):
A conjunção Netuno-Plutão em Gêmeos na cúspide da casa 6 do mapa do jogo do bicho cai exatamente sobre a conjunção Netuno-Ascendente do mapa da fundação do Rio de Janeiro. Em outras palavras: o jogo do bicho nasceu quando Netuno fazia seu primeiro retorno sobre o Ascendente da cidade – já netuniana desde o nascimento. Netuno simboliza ilusões, esquemas mirabolantes, sonhos, assim como tudo aquilo que nos escapa entre os dedos – aquilo que não parece ser o que realmente é. O jogo do bicho expressa um pouco disso tudo. É uma via de escape social, uma porta aberta para a fantasia de ascensão, e também uma indústria escorregadia, sem face definida, presente em toda parte mas sempre fora do controle institucional. Com Netuno e Plutão transitando naquele momento no Ascendente do Rio, o jogo do bicho surgiu com um tremendo potencial para infiltrar-se invisivelmente em todo o tecido social, construindo na surdina um poder paralelo.
Os planetas Lua e Urano, que no mapa do jogo do bicho estão na em conjunção na 10, ativam a casa 5 do mapa do Rio de Janeiro – exatamente a dos jogos de azar e das diversões. Durante muito tempo, o dinheiro do jogo sustentou algumas das grandes escolas de samba. Cabe observar que Lua e Urano repetem um contato também presente no mapa da fundação da cidade, onde estão formando uma quadratura T com Netuno.
O jogo do bicho e sua dimensão onírica
O jogo do bicho, como muitas outras instituições populares brasileiras, goza de uma dualidade de raiz. De um lado, ele tem uma origem claramente datada – um ponto de origem formal ou “oficial” – e um inventor reconhecido. De outro lado, porém, é um jogo baseado em um sistema de palpites que se perde no tempo, já que fundado em sonhos e outros elementos populares, relacionais e totêmicos que invocam uma simbologia onipresente, mas muito pouco discutida nas apreciações sociológicas da sociedade brasileira.
O jogo do bicho é uma verdadeira mania nacional, especialmente no Rio de Janeiro. Em torno dele criou-se todo um folclore onde os sonhos desempenham um papel importante como indicadores do “bicho que vai dar”. Os critérios de interpretação desses sonhos relacionam-se, como ressalta o antropólogo Roberto da Matta, a uma simbologia muito anterior, profundamente enraizada no imaginário popular. Em parte, tal simbologia conecta-se à tradição maior da civilização mosaico-cristã e permeia todo o mundo ocidental, como a conotação negativa e demoníaca associada à cobra (a serpente do Jardim do Éden). Em parte, expressa construções nativas, decorrentes da interação do homem brasileiro com o ambiente e da sua forma particular de representá-la. [3]
Alguns animais carregam um simbolismo em clara conexão com os signos zodiacais, como a águia (Escorpião), a vaca (Touro, o princípio do feminino), o leão (Leo), a cabra (Capricórnio), o carneiro (Áries) e o cavalo (Sagitário). Outros apontam mais para conteúdos planetários, como o macaco (Mercúrio), o elefante (Júpiter), o gato (Vênus) e o cachorro (Marte).
Comparando cartas
Se compararmos o mapa do Barão de Drummond ao da primeira extração, veremos que o Netuno do Barão ativa o Ascendente em Capricórnio do jogo do bicho. O mapa do barão apresenta também um stellium de cinco planetas ativando a casa doze do mapa da cidade. Unindo os três mapas, os fios condutores são a ênfase nas ativações da casa 12, Netuno e Plutão. Por esta razão, todos os trânsitos de Netuno e Plutão sobre os ângulos do mapa do Rio de Janeiro são de extrema importância para a compreensão dos momentos de expansão e de crise do mundo da contravenção, tanto na cidade quanto no país inteiro.
Com a entrada de Netuno em Peixes, em 2011, temos uma sequência de ativações de todos os planetas em Peixes no mapa de fundação do Rio de Janeiro, a começar pela Lua. Ao longo da segunda década do século XXI saberemos se o velho fascínio do jogo do bicho conseguirá sobreviver ao apelo mais imediato das loterias instantâneas e da jogatina online.
Notas
[1] Na década de 60 do século XIX, Paris, então capital do império de Napoleão III, passou por uma completa remodelação urbanística que lhe deu a feição atual.
[2] A íntegra do ofício foi publicada no dia seguinte em O Tempo (23.7.1892).
[3] MATTA, Roberto da. Águias, burros e borboletas. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.