Império Romano, século III: os irmãos Cosimo e Damiano, médicos (ou físicos, como se usava chamar naquela época) perambulam de uma vila para outra, viajando sem parar. Em cada lugarejo, utilizam seus conhecimentos em benefício da população pobre, curando ou aliviando os males de que sofriam nossos antepassados: a varíola, a lepra, a gota, a peste. Atendem gratuitamente e seguem adiante, deixando atrás de si um rastro de alívio e gratidão. Sua fama se espalha, relatam-se curas milagrosas. Os métodos terapêuticos dos irmãos médicos parecem ter algo de especial.
Passam-se os anos. Os irmãos médicos despertam a ira de alguns poderosos. Presos e submetidos a inúmeras torturas, morrem em Egeia, cidade da Cilícia (atual Turquia) em 27 de setembro de 287. Continuam, porém, a viver na memória e nas lendas do povo.
No século seguinte, o Imperador Constantino converte-se ao Cristianismo e transforma-o em religião oficial do Império Romano. Organiza-se a Igreja Católica. Estudam-se as lendas sobre os antigos mártires e procede-se a sua canonização. Nascem dois novos santos — Cosme e Damião — cujo culto se espalhará para muito além das fronteiras do Império Romano do Oriente, chegando até o Brasil de nossos dias.
Os meninos gêmeos da África Ocidental
Nigéria, século XVI: os portugueses e, mais tarde, os ingleses, holandeses e franceses, constroem os primeiros entrepostos no litoral africano e lançam-se ao triste negócio do tráfico negreiro. Incentivando conflitos tribais entre grupos étnicos vizinhos, entregam armas, açúcar e tabaco aos nativos em troca dos inimigos capturados em combate.
Os iorubás vendem seus prisioneiros jejes, os jejes vendem seus prisioneiros baribas, os baribas entregam seus prisioneiros hauçás, os hauçás se livram de seus prisioneiros iorubás, e cativos de todas as etnias enfrentam o mesmo destino comum: o porão dos navios, rumo ao Brasil e a outras colônias europeias nas Américas.
Ao penetrar nas aldeias africanas, os mercadores europeus encontram, a todo momento, estranhas imagens esculpidas em madeira ou outros materiais. São duas crianças, aparentemente gêmeas, às vezes colocadas no portal das cabanas, às vezes em altares improvisados em plena rua. Preocupados demais com os lucros que sonham auferir, os mercadores passam sem demonstrar maior interesse. Afinal, quem tem tempo de prestar atenção em deuses pagãos?
Contudo, os escravizados não irão esquecer de suas divindades. Arrastados para o Brasil à força, trazem na memória todos os detalhes do culto. E assim, anos depois, as imagens em madeira dos dois menininhos reaparecem nas senzalas, nas matas e nos quilombos.
Brasil, século XVII: proibidos de cultuar abertamente os deuses africanos e obrigados a aderir ao Catolicismo dominante, os escravos logo descobrem uma forma de burlar a vigilância de seus senhores. Através de São Jorge, o santo guerreiro, louvam, na verdade, o orixá Ogum; em Sant’Anna, reencontram a velha Nanã Buruquê; em Santa Bárbara, que protege contra os ventos e tempestades, descobrem traços de Iansã, a corajosa mulher de Xangô.
E quem são aqueles santos gêmeos, cuja imagem aparece em todas as igrejas dos senhores brancos? Bem, não importa. Representam um ótimo disfarce para cultuar os meninos gêmeos da África. E assim, ressurge com toda a força no Brasil a tradição iorubá dos Ibeji, sob a forma de Cosme e Damião.
Ibeji é palavra iorubá que significa parto de dois. Literalmente, gêmeos. Simboliza o princípio da dualidade, já que o um é o princípio criador, a unidade. O dois é a soma de um mais um: a divindade que se projeta no espaço e cria a multiplicidade das formas. Astrologicamente, já podemos enxergar aí diversas correlações: o aspecto da oposição, relacionado ao senso da alteridade, o planeta Mercúrio e todos os signos que sugerem duplicação ou confronto, como Gêmeos e Libra.
Além do associações míticas praticamente universais, os gêmeos são também objeto de um forte culto popular. Entre os iorubás, a casa que recebe filhos gêmeos é considerada abençoada. As crianças recebem atenções especiais, pois representam a manifestação concreta da presença da divindade. As estatuetas dos gêmeos aparecem por toda parte e acredita-se que atraiam fecundidade e alegrias.
Experiência pessoal: um presente dos orixás
Pude constatar isso de perto em uma viagem ao Benim, país vizinho da Nigéria, há muitos anos. Depois de algumas semanas de tentativas infrutíferas, consegui ser levado à presença de Yaoutcha Gamkpé, uma das mais influentes rainhas do culto do vodun (ou seja, mãe de santo) do país.
Passados alguns minutos de conversa, Yaoutcha chamou o babalaô (sacerdote de Orumilá, versado no jogo de Ifá, uma arte divinatória tradicional da qual o jogo de búzios é uma variante) e pediu-lhe que fizesse uma consulta comigo. O babalaô concentrou-se, jogou seu colar de adivinhação e pôs-se a dizer: “Vida de estrangeiro branco é muito agitada. Ele gosta de luta e de aventura, mas tem uma casa muito triste.”
Reagi com surpresa. Levava, realmente, uma vida movimentada, mas não considerava minha casa um lugar triste. Ao contrário. O babalaô continuou: “É porque não tem criança. Casa sem criança não é casa abençoada. Mas Odudua vai consertar isso. Mandou dizer que logo virão os Ibejis.” Fiquei desconcertado.
Ainda não tinha naquele momento planos constituir família, muito menos de ter filhos a curto prazo. E que direito tinha Odudua de decidir sobre minha vida? Mas o babalaô foi taxativo: “Você não quer os Ibejis? Vai recusar o presente de Odudua?” Achei melhor ficar quieto, para não criar constrangimentos. Mais tarde, esqueci o assunto. Um ano e meio depois, era pai de duas meninas gêmeas. Em homenagem aos amigos do Benim, dei a uma delas um nome iorubá.
Em muitos lares da Bahia, especialmente os que têm gêmeos, Ibeji é lembrado no dia de Cosme e Damião com uma festa chamada Caruru dos Meninos. As crianças da casa e da vizinhança, em número de sete, sentam-se no chão, em volta de uma esteira onde estão, além do caruru, doces, frutas, balas e guaraná. Servem-se com as mãos, enquanto os adultos cantam em volta cantigas apropriadas à ocasião. O objetivo da cerimônia é espantar maus fluidos e abrir os caminhos.
No Rio de Janeiro, é costume entre católicos e umbandistas a distribuição de doces na mesma data. Se bem que as guloseimas sejam entregues às crianças, os verdadeiros destinatários da oferenda são Cosme e Damião. Entre os católicos, o ato tem muitas vezes o sentido de agradecimento por uma graça recebida ou de pagamento de promessas (especialmente quando se trata da recuperação da saúde de uma criança).
A correspondência astrológica mais tentadora para Ibeji é com o signo de Gêmeos — e em parte está correta. Por outro lado, a associação entre Ibeji e doces faz pensar em Vênus, o planeta regente da glicose. Consequentemente, em Touro e Libra, os dois signos associados a este planeta. Mas o vínculo mais óbvio é com Libra, o signo representativo da oposição primordial, da alteridade e da relação com o diferente. O glifo de Libra é exatamente a balança, na qual sempre está presente a necessidade de equilíbrio entre dois polos.
As festas cristãs de são de origem astrológica
Na verdade, o culto a Cosme e Damião mostra a incorporação pelo Cristianismo de antigos mitos associados ao culto do Sol entre povos pagãos, devendo ser compreendido num quadro de referências mais amplo, que envolve os equinócios e os solstícios, momentos especiais no ciclo anual da Terra em torno do Sol. Vejamos a comparação:
- Equinócio de março — Áries — associado à Páscoa, com todo o seu simbolismo de ressurreição e renovação da vida (a primavera do Hemisfério Norte).
- Solstício de junho — Câncer — associado a São João Batista, aquele que anuncia a chegada do verão do Hemisfério Norte e do Salvador (Jesus Cristo, que ocupa no Cristianismo o papel reservado ao Sol em civilizações anteriores).
- Equinócio de setembro — Libra — associado a Cosme e Damião, princípio dual totalmente compatível com a noção de igualdade entre os dias e noites.
Solstício de dezembro — Capricórnio — associado ao Natal, o nascimento de Cristo exatamente na noite mais longa do ano do Hemisfério Norte, expressando a crença de que o rigor do inverno será superado e a luz, aparentemente ausente, voltará a brilhar no mundo.
Tradições populares: a Astrologia das balas e do guaraná
Na visão da Umbanda, os Ibejis são vistos como entidades evoluídas que se manifestam na forma de crianças para simbolizar a pureza e a inocência. Dominam o médium pelo chamado chacra (centro de força) laríngeo, na altura da garganta, e dinamizam a vibração de todos os órgãos ligados a esse plexo, o que provoca a sensação de leveza de movimentos nos braços e mãos e o surgimento da característica voz infantil. Incorporam normalmente no final da sessão, para limpar o terreiro.
A dança e as cambalhotas das crianças não são apenas uma brincadeira inconsequente, mas sim um ritual de magia: uma “tecnologia” de limpeza energética em que os resíduos mais pesados e negativos são neutralizados e dispersos. A sensação de euforia e bem estar que se instala no ambiente, após a incorporação, deve-se à elevação e bondade dessas entidades, e não ao fato de se apresentarem como crianças.
Cabe lembrar que o chacra laríngeo costuma ser associado à voz humana. Praticamente todas as religiões tradicionais entendem que, através da fala, damos forma ao pensamento e materializamos no ambiente as energias canalizadas de outros planos. Por isso, todas as religiões têm mantras, cânticos e invocações. O uso consciente da voz é sempre um ato de magia. É nesse nível que atuam os Ibejis, que na vertente mais esotérica da Umbanda têm status de orixá, com o nome de Yori.
Na Astrologia, os Ibejis encontram correspondência no planeta Mercúrio, no signo de Gêmeos (cujo glifo é uma a representação da dualidade) e no elemento Ar, em geral. Se quisermos pensar no toque aquariano, basta lembrar os balões de gás das festas de criança: eles concentram o ar (a concentração das energias imateriais do Ar Fixo — Aquário) e, ao serem estourados, liberam essa energia para limpeza do ambiente.
Já o toque Vênus/Libra se manifesta nos atos de magia realizados pelas entidades em forma infantil, que comumente se utilizam de doces, pirulitos e guaraná. Se lembrarmos que são alimentos ricos em glicose ou em sacarose, substâncias regidas por Vênus e rapidamente absorvidas pelo organismo através da corrente sanguínea, poderemos perceber o alcance da ação dos Ibejis: o doce é simplesmente um suporte material — um assentamento, portanto — para fluidos que serão absorvidos pelo organismo com a rapidez de uma injeção intravenosa.
Eliane Caldas diz
Que riqueza, quantas informações e suas correlações simbólicas. Gratíssima por compartilhar,
… E adorei saber a questão do seu presente, com uma pontinha de inveja, confesso.