Escorpião, Marte e a paixão pelo Flamengo
Marte e Vênus angulares e formando quadratura mostram Ary como um homem de paixões intensas e ávido para realizar seus desejos. É um aspecto de permanente insatisfação, da tensão entre o querer e o realizar, algo que se reforça ainda mais pela importância dos signos regidos por esses planetas no mapa do compositor: Libra é nada menos do que o signo Ascendente, enquanto Escorpião, domicílio tradicional de Marte, é o signo solar.
Ary Barroso viveu como uma vela que queimasse simultaneamente nas duas extremidades. Tudo o que fez foi com uma intensidade explosiva, num transbordamento de energia que o levava a desenvolver com sofreguidão dezenas de projetos ao mesmo tempo e a cair de cabeça em todos eles. Foi um homem extremamente versátil, o que se confirma pela presença de cinco planetas em signos mutáveis. Entre eles, a Lua em Gêmeos, Vênus em Virgem e o exagerado Júpiter em Peixes, na casa do trabalho – a sexta. Se pensarmos que a Lua geminiana rege a 10, da carreira pública, e que o regente da 6 é Urano na 3 (comunicação) no inquieto signo de Sagitário, e se observarmos que este Urano forma uma forte oposição com o intenso e compulsivo Plutão, temos aí a imagem do homem de sete instrumentos, movido por uma energia decididamente infernal que o transformava numa espécie de força da natureza sempre em atividade. Formado em Direito sem nunca ter exercido a profissão, foi pianista, compositor, letrista, autor teatral, radialista, jornalista, entrevistador, apresentador de TV, vereador, locutor esportivo e ainda encontrava tempo para imiscuir-se na política interna do Flamengo, sua paixão mais intensa.
O engraçado é que, nos primeiros anos de Rio de Janeiro, Ary era torcedor e sócio do Fluminense. A relação de amor com o Flamengo surgiu depois e pode ser facilmente explicada pela comparação do mapa de ambos: o clube, nascido em 17 de novembro de 1895, não poderia ser mais Escorpião, com cinco planetas neste signo. Destes, destaca-se Marte em domicílio, exatamente sobre o Sol de Ary Barroso. Por outro lado, o Plutão do Flamengo encontra-se sobre a Lua natal do compositor de Aquarela do Brasil, a qual, por sua vez, opõe-se à Lua rubronegra, em Sagitário. É um relação compulsória e compulsiva, cheia de pólvora e de adrenalina, e tão plutoniana quanto o próprio Flamengo, cujo hino (composto, ironicamente, pelo torcedor do América Lamartine Babo) é talvez o único entre os hinos de clubes brasileiros a apresentar inequívocas revelações de sadomasoquismo. Basta recordar os versos:
Uma vez Flamengo
Flamengo até morrerNa regata ele me mata
Me maltrata, me arrebata
Que emoção no coração
Consagrado no gramado
Sempre amado, o mais cotado
No “Fla-Flu é o Ai, Jesus”Eu teria um desgosto profundo
Se faltasse o Flamengo no mundo
Ele vibra, ele é fibra
Muita libra já pesou
Flamengo até morrer eu sou
Quanta força escorpiana há nestes versos! Não se trata apenas de torcer, mas de maltratar, arrebatar, matar de emoção, numa relação de dor e prazer que, se interrompida, provocaria desgosto profundo. Ah, Plutão! E nenhum torcedor levou a paixão a tais extremos quanto Ary Barroso, cuja biografia beira o inacreditável. Como locutor esportivo, carreira que seguiu, entre outros motivos, por puro prazer de estar mais perto de seu clube, foi de uma criatividade que só encontrava paralelo na absoluta falta de imparcialidade. Ary foi o inventor dos comentaristas esportivos e dos locutores de campo, aqueles que ficam à beira do gramado para acrescentar detalhes à transmissão e colher as primeiras impressões dos jogadores após a partida. Foi também o renovador da linguagem futebolística, cunhando expressões e modismos que influenciaram muitos de seus sucessores. Por outro lado, quando o Flamengo estava em campo Ary não trepidava em estimular descaradamente o time nem deixava de xingar o árbitro, se achasse necessário. Distanciamento profissional? Nem pensar! O Flamengo foi a desculpa, aliás, para a não aceitação do convite feito por Walt Disney para que Ary se radicasse em Hollywood após o sucesso de Saludos Amigos, em 1943. “Aqui não tem Flamengo”, teria dito o compositor. Anos mais tarde, ele assumiu um cargo na diretoria do clube, agregando mais uma experiência a seu vasto currículo: a de “cartola” futebolístico…
O extremismo do Escorpião somado à impulsividade e ao destempero do Marte angular levaram Ary Barroso a situações inusitadas. Uma vez, transmitindo uma partida de futebol na Argentina, ficou tão irritado com o árbitro que simplesmente abandonou o microfone nas mãos do comentarista e invadiu o campo para brigar.
Ary tinha uma espécie de marca registrada para anunciar os gols: em vez de dar longos gritos, como os outros locutores, tocava uma gaitinha de criança, de som bem agudo. Se o gol fosse do Flamengo, a gaitinha soava repetidas vezes, no máximo volume. Mas se fosse do adversário, Ary limitava-se a uma soprada sem entusiasmo – e não era raro ouvi-lo em suas transmissões esportivas pela rádio Tupi a desancar os maus jogadores do time que adorava. Não era exatamente um locutor, mas um torcedor armado de microfone. O interesse pelo futebol diminuiu muito depois da derrota do Brasil para o Uruguai na copa de 50, que Ary transmitiu. A decepção foi tanta que levou-o, não muito tempo depois, a abandonar definitivamente a carreira de locutor esportivo.
Morto há mais de cinquenta anos, em pleno domingo de carnaval, Ary teve um velório a que compareceram muitos foliões fantasiados. Uma cena nonsense, mas bastante adequada para o compositor que celebrou tantas vezes a loucura do carnaval.
O bicho-papão dos calouros
Ary Barroso foi um grande impulsionador de carreiras. Lançou e prestigiou artistas como Luiz Gonzaga, Elza Soares e Lúcio Alves. Foi amigo e admirador de Carmem Miranda, Elisete Cardoso e, mais tarde, apesar de criticar a bossa-nova, foi grande admirador dos jovens compositores que iniciaram o movimento, como João Gilberto, Tom Jobim, Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli. Este papel de patrono e protetor de artistas é indicado por vários aspectos: os mais importantes são Vênus em conjunção com o Ascendente e o trígono Sol-Júpiter. Por outro lado, em seu programa de calouros (popularíssimo desde os anos 30) era de uma objetividade que chegava às raias da crueldade com os jovens artistas que lhe pareciam medíocres. A quadratura de Mercúrio em Escorpião a Saturno em Aquário, estando Mercúrio na cúspide da casa 2 (valores e preferências), fazia de Ary Barroso um avaliador rigoroso e implacável, características que são ainda reforçadas pela presença do regente do Ascendente, Vênus, no crítico signo de Virgem. Some-se a isso a recepção mútua (troca de domicílios) entre Mercúrio e Plutão, que está em Gêmeos, e temos o quadro completo.
Ary parecia comprazer-se em manter a imagem de intolerante e mal-humorado. O jornalista Sérgio Cabral, pai do governador do Rio de Janeiro preso na operação Lava Jato, escreveu a excelente biografia No tempo de Ari Barroso, que serve de base para a maior parte das referências históricas utilizadas neste artigo. O livro conta algumas histórias deliciosas. Vejamos um trecho:
Renato Murce contou que, certa vez, lhe fez uma advertência, sugerindo-lhe que tratasse os seus calouros com mais cortesia. Resposta de Ari:
-Olha, Renato, o que eu quero é po-pu-la-ri-da-de.
Na verdade, as broncas estimulavam a sua po-pu-la-ri-da-de, mas, em compensação, conferiam a ele uma imagem que não tinha nada a ver com a realidade. Era um dos melhores bate-papos da vida artística brasileira e uma pessoa encantadora, pela inteligência e pela capacidade de convivência.
[Notas: 1. Renato Murce era um conhecido radialista nas décadas de 30 a 50. 2. Sérgio Cabral prefere grafar o nome de Ary com i, e não com y. 3. A propósito: vale a pena ler o livro inteiro, pois No tempo de Ari Barroso (Lumiar Editora) é uma delícia de biografia.]
O que Sérgio Cabral descreve é um Ascendente em Libra (“encantador”, ótimo “bate-papo”) que não se revela à primeira vista em função da quadratura com Netuno e Marte, respondendo este último pela imagem de rispidez e aquele pelo efeito de falsificação (Netuno) da imagem (Ascendente). Observe-se também que Vênus está no final de Virgem, bem próximo do Ascendente mas mesmo assim na casa 12 (algo que não se revela à primeira vista) e num signo extremamente seletivo: os íntimos sabiam quem era o verdadeiro Ary Barroso, mas para o grande público – e mesmo para alguns artistas – era uma espécie de bicho-papão. Exemplo disso foi o que aconteceu com a cantora Elisete Cardoso, ainda uma principiante, quando apresentou-se pela primeira vez no programa de TV de Ary, no início dos anos 50, para cantar Rancho Fundo. Conta Sérgio Cabral sobre o término da apresentação:
Ari Barroso exclamou:
–Muito bem, moça!
–Obrigado – disse ela baixinho.
Caminhou para fora do estúdio, ultrapassou uma cortina e caiu, desmaiada, de tanta tensão. Curiosamente, foi assim que teve início uma das melhores amizades que Elisete Cardoso teve na vida, exatamente com Ari Barroso.
Ary adorava polêmicas e jamais fugia de uma boa discussão, se achasse que valia a pena. Uma de suas lutas mais permanentes e apaixonadas foi a da defesa dos direitos autorais de compositores e letristas, sempre prejudicados pelas sociedades arrecadadoras. Neste sentido, foi um continuador da luta de uma ilustre antecessora, a brava maestrina Chiquinha Gonzaga, fundadora da SBAT – Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais. A defesa da questão dos direitos autorais acabou incomodando empresários poderosos das gravadoras e dos meios de comunicação, do que resultou uma pesada retaliação: a partir do final dos anos 50, as músicas de Ary Barroso, vítimas de boicote, passaram a ser cada vez menos executadas. Nem mesmo a admiração que lhe votavam os líderes da bossa-nova evitou que Ary caísse no ostracismo, praticamente expurgado das rádios e da TV.
Muito antes disso, porém, Ary já experimentava sua disposição briguenta como colunista de jornal, ainda nos anos 30, e depois como um vereador cheio de discursos inflamados, nos anos 40. Inflamado é um adjetivo que faz pensar em Marte, planeta que é exatamente o mais angular de sua carta, no seco e objetivo signo de Capricórnio. A quadratura Mercúrio-Saturno contribui com sua cota de objetividade e ironia, com o humor um tanto perverso e com a absoluta falta de piedade para com os adversários. A vítima preferida de Ary era seu suposto inimigo nº 1, o brilhante jornalista, poeta e letrista Antônio Maria, com quem manteve memoráveis querelas. Na verdade, o gordo Antônio Maria e o irascível Ary Barroso sempre foram grandes amigos.
Mais do que briguento, Ary Barroso chegava a ser intolerante. Uma das histórias mais conhecidas a seu respeito é a da descompostura que passou num pobre calouro que um dia apareceu em seu programa e declarou que iria cantar um “sambinha”. “Um sambinha?”, vociferou Ary, que considerava este diminutivo altamente depreciativo. Mas furioso mesmo ficou ao descobrir que o tal sambinha era de sua autoria – e que o infeliz calouro nem sequer atentara para este fato.