A primeira surpresa que o mapa de Ziraldo nos reserva é que não tem um único planeta no elemento Ar. Tratava-se de um gênio, mas sua matéria-prima não era o discurso abstrato: em vez da verborragia, a imagem simples, econômica, carregada de intensidade e emoção.
Sol em Escorpião e Marte em Leão estão em recepção mútua (troca de domicílios, o que cria um forte vínculo entre os dois planetas, análogo a uma conjunção). Ambos dispõem direta ou indiretamente de outros cinco planetas. Sol e Marte, dois planetas ligados à qualidade primitiva do Quente, definem, assim, um dos temas fundamentais desta carta.
Por outro lado, Saturno domiciliado em Capricórnio, oposto a Plutão e em quadratura com o Sol, faz um contraponto que nos permite compreender um tema que atravessa diversos personagens deste desenhista: o desafio do amadurecimento.
Flicts, uma cor muito saturnina
Depois da Turma do Pererê, primeira revista em história em quadrinhos produzida por um único desenhista brasileiro, o primeiro grande sucesso de Ziraldo (lançado quase ao mesmo tempo que o lendário jornal O Pasquim) foi o livro infantil Flicts, que começa exatamente assim:
Era uma vez uma cor muito rara e muito triste que se chamava Flicts
Era apenas o frágil e feio e aflito Flicts
Não existe no mundo nada que seja Flicts
— nem a sua solidão —Flicts nunca teve par
nunca teve um lugarzinho
num espaço bicolor
Raro, triste, feio, aflito e solitário são adjetivos que remetem de imediato a Saturno. É um planeta que simboliza o processo de amadurecimento, que muitas vezes exige deixar para trás o comportamento de cardume e diferenciar-se do grupo para encontrar a própria especificidade. Crescer sempre exige esforço, alguma dor, e as mudanças que nos tornam diferentes geram estranhamento e rejeição.
Saturno em aspecto tenso com Plutão dá um toque ainda mais dramático a este processo. É uma configuração que está presente em momentos históricos em que o medo da alteridade, o ódio ao diferente, a xenofobia e os preconceitos de todo tipo chegam a níveis paroxísticos. Ziraldo nasceu num momento de crise mundial e às vésperas da ascensão do nazismo na Alemanha, do qual a perseguição às minorias étnicas foi um dos traços mais característicos. Era natural que esta temática emergisse de alguma forma em sua obra. E ela surge com toda a força em Flicts, a história da cor que não encontra seu lugar no mundo.
não era bom ser tão só
e um dia foi procurar um trabalho
Procurar um trabalho é uma típica saída de Saturno, assim como de Marte, outro planeta muito destacado no mapa do desenhista. Aliás, o próprio Ziraldo era um workaholic (Meio do Céu em Virgem, Mercúrio em quadratura com Marte…). Rejeitado por todas as outras cores, Flicts sai pelo mundo, buscando alguma atividade onde pudesse ser útil:
… e mais uma vez sozinho o pobre Flicts se vai
Contudo, o mundo não tem lugar para Flicts, o que o obriga a uma saída tipicamente saturnina:
olhou pra longe bem longe
e foi subindo subindo
e foi ficando tão longe
e foi sumindo e sumindo
sumiu
Subir e subir penosamente até encontrar o seu lugar é o típico comportamento de Saturno quando precisa afirmar o próprio valor em resposta à rejeição. Sumir é um atributo de Plutão (o deus Hades, na mitologia grega, tinha o dom da invisibilidade). Quando Flicts foi lançado, em 18 de agosto de 1969, a oposição Saturno-Plutão, dirigida por arco solar, estava no eixo Fundo do Céu-Meio do Céu do mapa de Ziraldo. O eixo do meridiano, unindo a casa 4 à casa 10, simboliza exatamente este processo de progressiva luta por um lugar no mundo, da indiferenciação do meio familiar à consciência de nosso potencial único.
A história termina com Flicts descobrindo que tem a mesma cor da Lua. Uma Lua que, no mapa de Ziraldo, ocupa a casa 9, das crenças e da sabedoria de vida, no otimista signo de Leão. É como se, ao escrever este livro infantil, o autor projetasse no personagem sua própria trajetória pessoal, no que tinha de mais positiva.
Onze anos depois seria a vez do autor reafirmar o próprio mapa através do mais famoso de seus personagens: o Menino Maluquinho.
Um Maluquinho muito saturnino
Ziraldo programou o lançamento de O Menino Maluquinho exatamente para o dia em que completava 48 anos. O livro estava destinado a tornar-se seu maior sucesso, com milhões de exemplares vendidos e tradução para mais de uma dezena de línguas. Maluquinho é o Alter ego do autor, e tem muito de sua infância feliz, em Caratinga. A marca registrada do mineirinho peralta são as roupas de adulto (brincar com as roupas do pai — Sol-Saturno outra vez!) e a panela, outro objeto do mundo adulto, transgressivamente usada como um boné.
Panelas remetem à comida (a mãe, o mundo feminino) e são regidas pela Lua (recipientes ocos que servem à produção do alimento), assim como aos signos de Câncer (onde Ziraldo tem Plutão) e Virgem (o Meio do Céu e a casa 10 com três planetas). Interessante lembrar que a Lua de Ziraldo faz conjunção com Marte, regente de sua 5, a casa da infância e dos folguedos, no demonstrativo signo de Leão.
Conforme a frase que abre o livro, Maluquinho é uma criança “com o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés”. É feliz porque se comporta como criança. Alegre, criativo, amante de aventuras (uma perfeita descrição de Lua-Marte em Leão e Ascendente em Sagitário do mapa do autor), suas atividades são, na verdade, uma forma lúdica de se aproximar do mundo adulto.
O Menino Maluquinho tem, porém, um personagem oculto que rege todo o desenvolvimento da história: trata-se do tempo, que inexoravelmente irá conduzi-lo à maturidade.
Na verdade, nem tão oculto assim: a certa altura, depois de descrever as mil brincadeiras do Maluquinho, o autor abre o jogo:
Mas o seu maior mistério
todos sabiam de cor:
era o jeito
que o menino
tinha de brincar
com o tempo.Sempre sobrava tempo
pra fazer
mil traquinadas
e dava tempo
pra tudo.(o tempo era um amigão)
E asim a história avança, até que o herói finalmente se defronta com o destino de toda criança:
Mas
teve uma coisa que ele
não pôde pegar
não deu pra ele segurar
embora ele soubesse transá-la
como um milagre.O menino maluquinho
não conseguiu segurar o tempo!
E o livro termina com a conciliação hrmoniosa de Lua-Marte, Júpiter-Vênus e Sol-Saturno:
E foi aí
que todo mundo descobriu
que ele
não tinha sido
um
menino
maluquinhoele tinha sido era um menino feliz!
Ao contrário de Peter Pan, o menino que não queria crescer e vive para sempre fora do tempo, na Terra do Nunca, Maluquinho traz a mensagem da aceitação do inevitável. Se Peter Pan é a infantilização lunar, Maluquinho é a possibilidade de uma maturidade bem vivida. A vida é provisória e tudo passa, mas há que aproveitá-la em cada fugaz minuto. Assim como fez Ziraldo.
Luis Reyes Gil diz
Beleza, Fernando, minha opinião: sua análise é prazerosa de ler, é precisa, as associações são surpreendentes mas sensatas, consistentes , mas o que acho mais agradável é que parece um pouco um improviso jazzístico, onde há um chorus, há um ciclo harmônico, ou seja, há uma lei, um zodíaco, com “acordes-planetas”, mas dentro disso é possível desfrutar da liberdade de produzir sentidos — e beleza. Parabéns!
Abraço
GiL