Este artigo é a segunda parte da série Emoção sob o olhar da Astrologia e da Ciência, que tem como proposta analisar o tema da emoção humana tanto do ponto de vista da neurociência quanto do simbolismo astrológico, numa tentativa de estabelecer uma aproximação entre as duas formas bastante distintas de conhecimento. Se você pulou a primeira parte, leia O céu como projeção das imagens internas, da mesma autora.
Neste desafio vamos entrelaçar alguns conceitos e princípios da astrologia, um conhecimento milenar e essencialmente simbólico, e algumas noções básicas da neurofisiologia, que, com a tarefa de desvendar o intrincado cérebro humano com o subsídio da alta tecnologia, tem obtido resultados surpreendentes e fascinantes nos últimos anos.
Para esse estudo, escolhemos o símbolo da Lua astrológica, uma vez que ele nos remete ao arquétipo do feminino, da maternidade e da memória emocional, que é o foco de nosso interesse.
Nessa reflexão analisaremos, através de um exemplo, como uma combinação planetária e seus símbolos podem ter uma analogia com possíveis complexos psicológicos e como estes podem representar ou indicar predisposições ao adoecimento. Seria esta interface possível?
Os símbolos mitológicos e astrológicos da Lua
Adentrando a dimensão simbólica da Lua em civilizações remotas e em inúmeras culturas, podemos dizer que ela foi adorada e cultuada de diferentes formas, sempre evocando o princípio materno e feminino, imagem do arquétipo da Grande Mãe. Entendemos que a crença de que há uma conexão bastante peculiar entre a mulher e a Lua tem sido universalmente mantida, ou, dito de outro modo, essa foi uma experiência humana arquetípica, projetada na Lua física do céu.
Em termos mitológicos, a Lua é a representação da Grande Deusa ou Grande Mãe, patrona da fertilidade, concepção e crescimento, tanto na vida vegetal, quanto animal ou humana. Como Ártemis da antiga Grécia, ou Ísis do antigo Egito, ou Shakti da cosmologia hindu, deusas mães ou divindades lunares regiam, além do ciclo anual da vegetação, o ciclo humano do nascimento, da vida e da morte.
Diz Jung sobre o arquétipo materno:
Como todo arquétipo, o materno também possui uma variedade incalculável de aspectos. Menciono apenas alguns (…) a própria mãe, avó (…), a deusa, a Mãe de Deus, a Virgem, (…) a Igreja, a Universidade (…), o Céu, a terra, a floresta, o mar, as águas quietas, o subterrâneo, a Lua. No sentido mais restrito, o lugar do nascimento, a concepção, o jardim, a gruta, a fonte, o poço (…) (Jung, 2000, par. 156)
O símbolo da Lua, como outros, possui uma dimensão mais universal e outra mais individual, e todas as imagens ou narrativas a ele relacionadas são autorretratos da psique coletiva, o que dá a ele um caráter multidimensional.
Um fator relevante no que diz respeito a essa simbologia lunar é a compreensão deste arquétipo ou divindade com duas faces distintas. Além de mães provedoras, tinham também seu lado sombrio, pois, com seu poder, as colheitas poderiam secar ou as tempestades poderiam causar inundações e morte.
Esta relação pode ser compreendida a partir das variações do ciclo da Lua no céu, ora crescendo, ora minguando.
Diz Liz Greene sobre essa ambivalência lunar:
Ao jogar com as imagens evocadas por essas três fases, podemos ver como a Lua nova, essa traiçoeira Lua negra, se associa à morte, à gestação, à feitiçaria, e à deusa grega Hécate, regente dos nascimentos e da magia negra. Após o escurecimento da Lua, vinha a Lua crescente, com sua virginal delicadeza e suas promessas. Sua forma é de uma tigela aberta, pronta para receber um conteúdo vindo de fora. A Lua crescente era relacionada com a deusa virgem Perséfone, raptada por Hades. A Lua cheia, por outro lado, tem uma aparência grávida; é redonda e suculenta, plena e madura, e seu parto pode ocorrer a qualquer momento. É a Lua em seu poder máximo, associada à deusa da fertilidade Deméter, a mãe de todos os seres vivos. (Greene, 1994, p.6)
Esta relação misteriosa com o feminino também está presente nos contos folclóricos, dos lobos e vampiros metamorfoseados na lua cheia, na relação com a loucura, com rituais mágicos, na feitiçaria – todas essas fantasias e mitos relacionam-se ao mundo lunar, o mundo noturno e obscuro das emoções humanas, sejam elas o amor, a loucura ou a magia.
A Lua astrológica tem significados e representações análogas ao arquétipo feminino e materno; no zodíaco ela é a regente do signo de Câncer, do elemento Água; é o significador dos relacionamentos e das emoções. Este signo ocupa a quarta casa zodiacal, simbolizando a família, a infância, a mãe, a segurança do lar.
Como vimos anteriormente, as histórias míticas que estão relacionadas aos arquétipos zodiacais são internas e externas, refletindo a alma de uma pessoa, seus deuses e seu destino. Podemos apreendê-las como a jornada do herói rumo ao seu desenvolvimento. O signo de Câncer diz respeito a esta passagem, que é a emancipação emocional do reino da Grande Mãe, arquetípica e pessoal, para uma fase de mais autonomia e independência.
Tomando como base o período pré-natal, entende-se que o feto, desde a sua concepção, está sujeito às condições físicas e emocionais da mãe; assim, na vida intrauterina alguns dos padrões da criança já estão sendo incorporados, na medida em que ela registra via corpo e via inconsciente o que a mãe está experimentando. Temos aqui uma experiência arquetípica, isto é, comum a toda humanidade, pois todos nascemos de um corpo de mulher e dele recebemos nosso primeiro alimento, seja ele o aleitamento, a proteção, o calor físico ou o amor; o que varia é a qualidade da experiência individual.
Assim, as primeiras experiências do bebê são marcadamente sensações corporais; amamentação, sono, calor, frio, contato, dor, prazer, sons, imagens, percepções, memórias que vão tecendo a base instintiva e emocional daquele ser ainda em estado de fusão e dependência da mãe.
Os princípios arquetípicos da fase oral são os de amor, nutrição e sobrevivência. Nessa fase, que vai do nascimento até aproximadamente os dois anos, o bebê relaciona-se com o mundo através da boca e da atividade de sucção. O alimento, seja ele físico ou emocional, é essencial para a base psíquica saudável ou não da criança.
Baseado em suas observações como pediatra, Winnicott estabeleceu algumas premissas básicas a respeito do primeiro ano de vida do bebê, e quais as suas implicações para a sua saúde mental e física.
A pedra angular da teoria winnicottiana é fundamentada na relação mãe-bebê nos primeiros meses de vida. Segundo este autor, o desenvolvimento da conquista da autonomia é central nesta fase, pois o bebê sadio gradualmente deve sair da fase de dependência absoluta para a fase de dependência relativa.
Diz Winnicott:
É a mãe da criança que costuma ser a pessoa mais qualificada para desempenhar essa tarefa sumamente delicada e constante; é a pessoa mais adequada, pois é ela que, com maior probabilidade, entregar-se-á de modo mais natural e deliberado à causa da criação do filho. (Winnicott, 1993, p. 6)
As memórias são construídas a partir das impressões sensoriais, associadas às qualidades destes cuidados. No início da vida da criança, há uma fusão entre ela e sua mãe, mas aos poucos o “eu” vai se diferenciando e se cristalizando. Para que esse processo de separação e de integração ocorra, a criança precisa de um ambiente propiciador.
O desenvolvimento normal passa por um esquema corporal, por ele denominado de “unidade psique-soma”. Tendo chegado ao status de indivíduo, a criança vive firmemente estabelecida no seu corpo.
Sobre essa parceria psicossomática diz o autor:
Uma tarefa subsidiária no desenvolvimento infantil é o abrigo psicossomático (deixando de lado, por enquanto, o intelecto). Grande parte do cuidado físico dedicado à criança – segurá-la, manipulá-la, fisicamente, banhá-la, alimentá-la, e assim por diante – destina-se a facilitar a obtenção, pela criança, de um psique-soma que viva e trabalhe em harmonia consigo mesmo. (Winnicott, 1984, p. 23)
Nesse delicado processo, a criança integrada vai aprendendo a formar símbolos que possam substituir a mãe ou outros objetos desejados. Saber esperar, tolerar, suportar frustrações, brincar e interagir com o mundo, fazer vínculos, tudo propiciará à criança um rico suporte existencial, que terá repercussões positivas na vida adulta, e trará chances de se expressar no mundo de forma mais feliz e criativa.
A Lua é o símbolo arquetípico do grande registro primitivo e inconsciente das primeiras experiências vividas pela criança em relação ao ambiente, em especial com a mãe, nos primeiros meses de vida. A Lua representa a atmosfera psíquica absorvida pela criança, as imagens, as sensações ou representações mentais que constituem a sua base instintiva e a memória emocional.
A Lua/mãe não é simplesmente a pessoa que vai cuidar do seu filho e protegê-lo, mas é, sem dúvida, o primeiro relacionamento importante na vida de qualquer pessoa, o primeiro romance, o primeiro amor e, certamente, inesquecível. Ainda que não lembremos deste registro de forma consciente, todas as impressões desta fase pré-verbal estão guardadas na memória celular do corpo.
O grau e a qualidade de sintonia com a mãe, a capacidade de comunicar-se satisfatoriamente e estabelecer vínculos significativos são parte constitutiva deste tecido que é a nossa memória emocional, arcaica e inconsciente.
É a mãe pessoal quem primeiro vai intermediar para a criança o arquétipo da Grande Mãe lunar, incorporando e encarnando dimensões específicas desse arquétipo. (Greene, 1994 p. 26)
Assim, a Lua astrológica abrange inúmeros significados, pois, como a matriz da vida física e psíquica de um indivíduo, representa a sua base instintiva, as respostas corporais e emocionais e os mecanismos de adaptação, dando a base da personalidade do indivíduo.
De forma análoga ao nosso satélite que gira ao redor da Terra, refletindo e modulando a luz do disco solar, também a mãe gira ao redor do bebê, refletindo, como um espelho, suas necessidades físicas e emocionais.
Essa dependência da criança em relação à mãe é a mesma que havia nos primórdios do desenvolvimento da espécie humana. O homem primitivo dependia em larga medida do ambiente natural para sobreviver, deveria submeter-se à natureza, à Mãe Terra, que embora generosa, era também imprevisível e destrutiva.
Tais experiências pessoais encontram-se calcadas não apenas em uma fonte arquetípica simbólica, mas também em um terreno fisiológico sensorial.
Sobre a natureza do arquétipo e sua base instintiva, diz Jung:
O inconsciente coletivo não é, de forma alguma, um canto obscuro da mente, mas o poderoso depósito de experiências ancestrais acumuladas por milhões de anos. O eco de acontecimentos pré-históricos, aos quais cada século adiciona uma infinitesimal pequena quantidade de variação e diferenciação. Como o inconsciente coletivo é, em última análise, um depósito de processos terrenos encravados na estrutura do cérebro e do sistema nervoso simpático, ele constitui na sua totalidade uma espécie de eterna e atemporal imagem-do-mundo que contrabalança nossa consciente e momentânea imagem do mundo. (Jung, 1998, par. 729) (O grifo é meu)
Referências Bibliográficas
GREENE Liz, e SASPORTAS, Howard. Os Luminares: A Psicologia do Sol e da Lua no horóscopo. São Paulo: Roca, 1994.
JUNG, Carl Gustav. Cartas Volume II. Petrópolis: Vozes, 2002.
____________ Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 1996.
____________ A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1998.
——————— O segredo da flor de Ouro. Petrópolis: Vozes, 1984.
WINNICOTT, Donald. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
____________ A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
Leia também a terceira e quarta parte da série Emoção sob o olhar da Astrologia e da Ciência, produzida originalmente na forma de artigo técnico para publicação na revista Jung e Corpo, ed. Sedes Sapientiae, em 2006: