Judy, Muito Além do Arco-Íris se concentra nos últimos meses antes do falecimento da atriz, cantora e performer Judy Garland, um dos maiores símbolos da “Era de Ouro de Hollywood”. O filme, que rendeu à atriz Renée Zellweger o prêmio de melhor atriz no Globo de Ouro de 2020, e para o qual ela está cotada para o Oscar por ter conseguido captar toda a solidão e vulnerabilidade de uma grande estrela no seu ocaso, conta a ida da diva americana para os palcos de Londres, para onde rumou no intuito de se recuperar financeiramente, em um momento em que estava imersa em dívidas e descredibilizada no show business devido ao seu comportamento errático em razão do abuso de drogas e álcool.
A adolescência como filha de um estúdio
Diferente de muitos artistas que, ingenuamente ou não, escolhem se envolver com drogas, Garland não teve tal prerrogativa, e o contato foi muito precoce, uma vez que já na adolescência recebeu do poderoso estúdio em que trabalhava anfetaminas para gerar estímulo e barbitúricos para que dormisse a seguir. Ser viciado precocemente, e sem ter sido responsável por isto, já que era menor de idade e cuidada por adultos, é algo, além de cruel, muito difícil de se livrar mais tarde.
Ela e suas duas irmãs mais velhas estavam imersas no meio musical desde pequenas e se encaminhavam para serem “vistas”, o que aconteceu em especial com Judy, que, na adolescência, fez teste para os estúdios da época. Seu pai havia falecido quando ela tinha 13 anos, e, aos 15, Judy realizou um sonho, tendo sido contratada pela MGM e se tornando “filha” deste estúdio, em uma complicada relação que, no fundo, era de apenas de ordem comercial.
Há rumores de que o chefão do estúdio, Louis Mayer, patrão direto de Judy, praticava um constante e sofisticado assédio moral, e que tentou investir sexualmente diversas vezes contra a garota, que, enquanto isto, com suas marias-chiquinhas e ingenuidade, encantava o mundo com sua linda voz como a protagonista do inesquecível “O Mágico de Oz”.
Arco-íris de fachada
Se todo artista sente o contraste entre a magia dos palcos e a vida real, com Judy esta diferença foi ainda mais gritante, pois o filme sobre a atriz mostra uma adolescente que era vigiada de perto para não engordar, sendo terminantemente proibida de comer, nem que fosse uma única vez, hambúrguer e batata frita, comida que qualquer pessoa da idade dela apreciaria degustar ao menos de vez em quando. Até mesmo por ocasião do seu aniversário, foi feito, duas semanas antes da data verdadeira, um bolo de mentira, para uma filmagem com a atriz juvenil, em uma horripilante diferença entre o glamour das telas e a quase orfandade na vida real. A adolescente ficou perplexa com o mau gosto em comemorar um aniversário antecipado com um bolo falso, e com toda a razão, mas, para o estúdio, era normal. Era só para isto que ela estava lá: para sorrir e produzir muito bem em frente às câmeras.
Além disso, em um universo de ícones como Ava Gardner, Lana Turner, Elizabeth Taylor, não custou muito para que a jovem percebesse – e fosse, é claro, avisada – que não tinha como competir em beleza com elas, e que todo seu brilho estaria na sua performance e na voz marcante. Todavia, estar à margem de mulheres tão lindas e, na época, tão endeusadas, certamente produziu marcas profundas em sua autoestima, além de todos os abusos que sofreu.
A Casa 12 e a possibilidade de “síndrome do impostor”
No mapa astral de Garland, que recebeu classificação de horário acurado no Astrodatabanking, o Sol ocupa a Casa 12, relacionada aos bastidores e privacidade. No filme estrelado por Renée Zellweger, Judy se colocava como uma mulher comum, e que muitas vezes tinha medo de entrar no palco, embora toda a sua experiência fizesse com que se desincumbisse com folga da tarefa, a menos que estivesse muito alcoolizada, o que ocorreu em vários de seus shows.
A Casa 12 é uma casa astrológica complexa, com muitas nuances. No seu melhor, simboliza pessoas que ficam confortáveis em estar nos bastidores e fazem isto muito bem, com total autoestima, como médicos, empresários, pesquisadores e até atores que emprestam seu corpo para seus personagens. No pior, porém, leva a fortes sentimentos de insegurança e a sensação de estar em um limbo e de ser um impostor neste mundo, o que pode ter sido ser agravado, no caso da atriz, por um Mutável Sol em Gêmeos: “eu me adapto e posso ter mil faces, mas quem realmente sou, será que sou o que acham que sou?” Esta poderia ser uma pergunta deste Sol.
Câncer: os problemas emocionais crônicos e a falta de raízes
Todavia, embora este posicionamento possa ter intensificado os desafios da diva hollywoodiana, ainda que lhe desse também dotes camaleônicos desejáveis para uma artista, são realmente os posicionamentos no signo de Câncer que formam a base para a sua, justamente, com perdão do trocadilho, “falta de base”, para as grandes dores emocionais que carregou. Há um papel importante de Urano em Peixes neste quadro, mas tudo começa com Câncer, que é o Ascendente de Garland (sobrenome inventado para a indústria do entretenimento), com um Plutão, planeta difícil e desafiador, que muitas vezes coloca a pessoa frente a uma necessidade de transformação em algum momento da vida (que a pessoa, seguindo o próprio arbítrio, conseguirá levar a cabo ou não), cravado no Ascendente, e mais dois planetas em Câncer, Mercúrio e Vênus.
No filme, uma Judy interpretada em toda a sua fragilidade e tristeza por Renée, o que a personagem mais fala é que é boa mãe e que quer estar com seus filhos (Câncer). Obviamente, a espiral errática de altos e baixos em que se envolve acaba, em um dado momento, por tornar isto impossível. Quando parte para Londres, para ganhar dinheiro, precisa deixar os dois filhos menores com o ex-marido (Liza, a filha que no futuro seria mais famosa, já era adulta). É quando eles passam a ter um lar mais estável, ao invés da vida nômade em hotéis, à mercê de uma mãe que é muito carinhosa, mas bastante caótica na forma como toca a sua própria vida.
Nesta ênfase em Câncer, encabeçada pelo Ascendente e por Plutão ali (um potencial geracional de viver um terror na infância ou no início de vida), nota-se a ausência de base familiar, que a lançou diretamente na boca insaciável do leão (símbolo do estúdio) da MGM Estúdios, sedento por grandes e infindáveis lucros, assim como todos os outros da época. A desproteção, que já vinha da relação com a mãe, um tema associado a Câncer, era total. É comum em pessoas com ênfase em Câncer, por paradoxal que seja, por ser o signo dos pais e do carinho, a sensação de orfandade e de negligência ou indiferença emocional.
Um outro fator ligado a um mapa regido pela Lua é que, na infância e adolescência, Judy tinha tendência a engordar (observe-se, também, um mapa regido por uma ilimitada Lua em Sagitário), daí a rígida vigilância sobre a sua alimentação. Desconheço o quanto os problemas alimentares permearam a vida da atriz, mas a questão alimentar tem certamente a ver com a Lua, havendo potencial para obesidade, bulimia ou anorexia quando não se lida bem com os temas lunares.
O pai que se ausenta por falecer cedo aparece no Sol oculto na Casa 12 e a mãe é simbolizada pelo último grau de uma Lua fora de curso (sem fazer aspectos) em Sagitário, na Casa do trabalho, tendo sido, no final, a responsável por subordinar (Casa 6) a filha integralmente ao escravizante e autoritário regime de trabalho do estúdio.
Em uma das cenas do filme, depois de a adolescente ter um episódio de rebeldia, um persuasivo Mayer pergunta se ela quer ser uma garota comum, que um dia vai se tornar a esposa inexpressiva de algum fazendeiro ou empregado e trabalhar duro e praticamente não ter vida ou se ela quer ser a estrela que todos querem ver, mas papel do qual ela tem vontade de fugir (um sintoma de Sol de Casa 12), por não lhe propiciar as delícias de uma vida comum (ela mesma não pode ir ao cinema com seus amigos para assistir a um filme). Sendo todo o universo que a menina conhece, o mundo lá fora lhe parece, ao final da incisiva prelação do imponente Mayer, feio e aterrorizante, e ela volta a ser obediente ao despótico e desumano esquema de trabalho. Além disso, o ambiente estava longe de ser saudável, desde os assessores até os colegas que faziam parte dele. De acordo com o jornal The Sun, o ex-marido da atriz, Sid Luft, revelou que a atriz foi molestada no set de filmagens por alguns anões que interpretavam os Munchkins no filme O Mágico de Oz. Na época, Judy tinha 16 anos e os colegas colocavam as mãos por baixo do seu vestido.
Depois da bomba emocional, a parte compulsiva e adicta
Para complicar a forma como as feridas emocionais poderiam repercutir na sua vida, o Sol em Gêmeos faz oposição com Marte em Sagitário (regentes dos braços e pernas, formando um par expressivo para a dança) e ambos fecham uma quadratura explosiva com Urano em Peixes, no auge da carta, no Meio do Céu: enquanto Garland eletrizava plateias (Urano no MC), era lançada em vícios (Peixes) e apartada (Urano) para uma vida que nada tinha a ver com as histórias dos filmes que estrelava.
Qualquer astrólogo que visse tal configuração no mapa de uma criança recomendaria aos pais, com cuidados e tato de consulta, mas com firmeza, que tal pessoa jamais deveria se aproximar de drogas, uma vulnerabilidade de Peixes, sobretudo estimulantes (Urano) ou com potencial destrutivo, como o álcool, pois o resultado seria um descontrole muito difícil de conter, caso de Judy.
Destaque-se, ainda, que Garland nasceu com Netuno em Leão, marca de muitos artistas que se tornaram icônicos e venerados naquela época. Netuno ocupa a Casa 2 do mapa, da voz, com Vênus, o regente da voz, na primeira casa (parte física do corpo e identidade), e, assim, além de dançar e interpretar, Garland encantava (Netuno) cantando (Casa 2 e Vênus em destaque), ficando eternizada pela linda performance juvenil com Over the Rainbow. Mas Judy nunca esteve em cima do arco-íris, ou, se esteve, foi nas filmagens, nos palcos, e por apenas alguns momentos, para depois ser lançada para fora dele.
Não é de espantar que, com um começo de vida tão emocionalmente esmagador e assustador (não há como se mensurar o poder pressionante que a figura de Mayer e todo o esquema do estúdio exerceu sobre a jovem, em um típico efeito de Plutão angular), a vida não tenha caminhado bem para a diva, que, aos 46 anos, se sentia tropeçar em dívidas, erros e, sobretudo, isolamento e solidão.
A tônica do filme são estes dolorosos sentimentos de profundo fracasso pessoal. Garland tem fãs e admiração, mas poucos amigos verdadeiros, e, aceita a ideia de um amigo para se apresentar em uma temporada em Londres e ficar longe dos filhos. Na contundente e comovente solidão em que orbita, muitas pessoas se aproximam somente da artista, e várias com interesse, enquanto os mais empáticos conseguem perceber claramente a dor e o abismo que contrasta com o domínio de voz e palco, já que sua fragilidade, um possível traço de signos de Água enfatizados (quando se expressam desta maneira, o que não é uma regra), é patente em diversas cenas do filme.
O ocaso prematuro de uma estrela: uma constante na indústria do entretenimento
Em uma indústria em que a matéria prima é a imagem e que muitas vezes não se preocupa com o bem estar das pessoas que fazem parte dela, a morte prematura de tantos artistas por overdose, abuso de remédios ou suicídio é uma constante. Estão aí para comprovar Michael Jackson, Amy Whinehouse, Kurt Cobaim, Jim Morrison, Whitney Houston, etc. A lista é infindável.
A droga, seja na forma de remédios, álcool ou como cocaína ou heroína, ajuda para que estes artistas “funcionem”, que encarem palcos imensos, agendas apertadas, dando muito lucro, sendo, porém, tão perigosa, que uma hora os invalida, a menos que consigam sair do tornado, o que vai requerer jornadas de desintoxicação e muito comprometimento pessoal. Que eles fiquem invalidados ou se tornem uma bomba relógio depois de um tempo não faz diferença para a indústria, que sempre encontra outros para substituir e colocar no que parece ser “o topo do mundo”, o lugar que dá muita coisa, mas que também tem atrativos e armadilhas que podem cobrar um preço muito alto, de dano permanente à personalidade.
No final da vida, Urano quadrava a Lua de Garland, o que explica a brusca alteração de sua vida doméstica, tendo de deixar os filhos menores com o ex-marido, e Plutão também estava lá, fazendo quadratura. Na verdade, o dia em que é encontrada morta em seu apartamento em Londres é impressionante, pois Lua, Júpiter, Urano e Plutão estavam em Virgem, pressionando fortemente sua Lua em Sagitário na Casa 6, da saúde. Ademais, a Lua era o regente do seu Ascendente, seu corpo físico, o que se pode chamar de “vida”. Assim, pouco depois de seu aniversário de 47 anos, chegou, de forma implacável, a conta de todos os exageros (Sagitário), com tão poderosa configuração.
Como a Astrologia pode ajudar a entender a si mesmo
Digamos que Judy nunca tivesse chegado ao estrelato e que tivesse escolhido a “porta de saída” apontada por Louis Mayer, que era a de ter sido uma pessoa comum. Cabe destacar que, apesar de tudo, Judy foi famosa por toda a sua vida, o que não se sabe se, no caso dela, foi uma bênção ou maldição. Existem os casos de pessoas que fazem sucessos meteóricos e que não são mais nada depois (no Brasil, há muitos atores e cantores que são vistos depois em posições bem menos glamurosas), o que é óbvio que tem um grande impacto emocional. Mas, à parte tudo isto, como usar a Astrologia para crescimento com um mapa com tais configurações? A vida de Judy teria sido tão difícil e infeliz se não tivesse sido artista? Como a Astrologia poderia ter ajudado?
É uma pergunta que é difícil de responder, pois o mapa não conta sobre o que a pessoa aprende na vida, e sim, de potenciais. Judy teria tido um grande trabalho para entender suas questões emocionais, de infância, sua relação com a sua mãe, sua vinda ao mundo, seu pai e sua própria identidade.
Segundo consta, os pais dela, que já tinham duas meninas, passavam por dificuldades financeiras e ficaram desesperados quando Ethel engravidou pela terceira vez. Chegaram a cogitar um aborto em uma clínica, mas acabaram convencidos, por um amigo da igreja onde tocavam e cantavam, a não darem este passo. Além disso, o casamento já tinha ido para o saco, já que Frank, o pai de Judy, era homossexual. Todavia, esperavam que, ao menos, viesse um menino, e foi decepcionante quando nasceu mais uma menina. Assim, Judy vivenciou uma rejeição dupla, por não ter sido desejada e por ser mulher. O nascimento da futura diva ocorreu repleto de rejeição, o que pode ser um dos potenciais, ainda que não o único, de um Plutão no Ascendente.
Impulsividade e chance de compulsão, por sua vez, teriam de ser trabalhados na quadratura em T envolvendo Sol/Marte/Urano. Garland não foi transformada em um “dínamo de filmes” à toa: o que a indústria queria e fazia combinava com o mapa natal. Todavia, é óbvio que se pode utilizar esta configuração de forma mais saudável e criativa, e um dos desafios de uma consulta astrológica é, justamente, o de mostrar outras possibilidades, elucidar questões e padrões, e, assim, ajudar na compreensão de quem somos, de quais são os nossos nós e questões difíceis, e de que forma podemos usar melhor os potencias e talentos com que já nascemos na nossa carta astrológica natal.