Trânsitos de Saturno e Netuno costumam ser vistos com desconfiança pelos astrólogos. Eis o raciocínio simplista: quando o planeta da frustração se junta ao planeta dos desenganos, o que pode acontecer? Nada de bom, certamente. Em parte, é verdade. Na dimensão mais negativa, Saturno expressa medo, restrição, paralisia e uma atitude pessimista diante das possibilidades da existência. Já Netuno anda sempre de mãos dadas com as ilusões esfarrapadas e as escolhas sem critério, que podem nos levar a profundas decepções.
Na prática, não é bem assim que as coisas funcionam. As escolhas enganosas, baseadas numa visão cor de rosa, ocorrem nos trânsitos de Netuno aos planetas pessoais (Sol, Lua, Mercúrio, Vênus e Marte). Já os momentos de enfrentar restrições e obstáculos que impulsionam ao crescimento acontecem sob os trânsitos de Saturno a estes mesmos planetas. Netuno e Saturno têm significados opostos: o que Netuno tem de confusão, Saturno tem de lucidez; Netuno tira de foco, enquanto Saturno ajuda a definir e hierarquizar nossos interesses.
Quando estes dois planetas atacam ao mesmo tempo, podem acontecer alguns processos muito reveladores. Saturno nos ajuda a tomar consciência das ilusões passadas, dos enganos netunianos dos trânsitos anteriores; já a cautela saturnina, confrontada com a generosidade netuniana, às vezes nos parece excessivamente mesquinha, levando a uma dura autocrítica. Sob esse trânsito, você se faz perguntas incômodas, como: “por que desperdicei esta ou aquela oportunidade”, ou “por que sempre lido mal com meus sentimentos” ou “por que sou tão medroso(a)”, e assim por diante. O passado é revisto sob um olhar severo e o futuro é auscultado sob um forte desânimo. Sentimo-nos tão incompetentes que não nos permitimos abrir janelas.
É um trânsito de menos valia e pessimismo. O risco maior com Netuno-Saturno não é o de alimentar sonhos impossíveis (Netuno), mas o de nos proibirmos de sonhar. É nesse ponto que algumas histórias escritas sob trânsitos Saturno-Netuno podem nos ajudar a entender como não cair na armadilha da crise de autoestima.
A Pequena Sereia de Andersen
Hans Christian Andersen, que tinha em sua carta natal uma oposição Sol-Saturno quase exata, escreveu vários contos infantis cuja temática gira em torno do sofrimento e do sacrifício. O conto mais conhecido é A Pequena Sereia, publicado em 7 de abril de 1837, com o Sol em Áries e uma quadratura T entre Saturno, Netuno e Marte. Trata-se da história da filha mais nova do Rei dos Mares, que decide abrir mão de toda a segurança ao apaixonar-se por um príncipe a quem salvara de um naufrágio. Para transformar-se numa garota humana, a sereiazinha procura a Feiticeira do Mar e aceita trocar sua belíssima voz por uma poção mágica que lhe dará pernas em vez de cauda. A Feiticeira deixa bem claro que a jovem terá pela frente um terrível desafio: não poderá usar a voz e, ao caminhar ou dançar, sentirá uma dor terrível, como se estivesse sendo cortada por mil facas. Além do mais, só passará a ter uma alma imortal caso receba um beijo de amor do príncipe. Este efetivamente se interessa por ela, mas acaba decidindo casar-se com outra.
Na noite da cerimônia, em desespero com o trágico fim que a espera, a sereiazinha vai para a beira do mar e descobre que todas as suas irmãs ali estão, esperando-a com um plano salvador: elas trazem um punhal mágico, com o qual a sereiazinha deve assassinar o príncipe e sua noiva. Se o fizer, recuperará sua condição de sereia e poderá voltar para o fundo do oceano. A Pequena Sereia, todavia, recusa a oportunidade de assassinar o amado e, em consequência, é ela que acaba morrendo. Ao fazê-lo, descobre que não se transformara em simples e indiferenciada espuma do mar – destino comum de todas as sereias – mas que ganhara uma alma imortal como só os seres humanos eram capazes de ter.
A Pequena Sereia, na versão original de Andersen, é uma história trágica e determinista. Fala de dificuldades insuperáveis num mundo hostil, amores não correspondidos e redenção através do martírio. As iniciativas (Marte) da sereiazinha fracassam diante de obstáculos intransponíveis. A única chance de felicidade oferecida por Saturno-Netuno é relacionada à transcendência.
A Pequena Sereia dos Estúdios Disney
Em 1989, os Estúdios Disney ressurgem espetacularmente após um ciclo de decadência lançando um desenho animado inspirado no conto de Andersen. A Pequena Sereia é um sucesso absoluto, que injeta vida nova no mercado dos desenhos animados e abre caminho para uma série de superproduções, como Aladim, O Rei Leão e as geniais produções da Pixar.
No mapa do lançamento de A Pequena Sereia, Capricórnio e Escorpião são os dois signos enfatizados, reunindo oito planetas. Saturno e Netuno estão em conjunção praticamente partil (órbita de apenas cinco minutos!), junto a Vênus, enquanto o Sol forma uma pesada conjunção com Plutão.
O desenho da Disney é um musical alegre, adorável, e a sereiazinha Ariel, de nariz espevitado e cabelos de fogo, é uma das arianas mais escancaradas que o mundo da ficção já produziu. Contudo, o enredo do desenho e os demais personagens, mesmo atenuando enormemente o viés trágico da história original, revelam o mundo desesperançado de Saturno-Netuno, com toques macabros de Plutão.
Para início de conversa, o essencial do conto de Andersen está preservado: o reino dos humanos e o reino submarino são dois mundos separados, que não se misturam. Para uma sereia, o contato com a superfície é perigoso, como alerta o Rei Tritão (Netuno) e reitera seu conselheiro Sebastião (um caranguejo cauteloso e com comportamento de velho, o canceriano mais saturnino que os desenhos animados poderiam inventar). Eis de volta o tema do mundo hostil, contra o qual é necessário resguardar-se. Lembremos que o desenho estreia num momento de tremendas transformações coletivas, apenas cinco dias depois da queda do Muro de Berlim!
Ariel salva o príncipe do naufrágio e se apaixona por ele. Para conquistá-lo, deixa de lado toda a cautela (Áries faz quadratura com Capricórnio, certo?) e recorre à perigosa Bruxa do Mar (Plutão, quem mais?), que propõe um pacto de alto risco: Ariel ganhará pernas humanas mas terá de abrir mão de sua bela voz (o canto da sereia, ou seja, o charme de Netuno). Terá um tempo exíguo para conquistar o príncipe e, se não conseguir, entregará sua alma para sempre para a Bruxa do Mar.
Para quem não lembra do desenho: a Bruxa do Mar – uma divertidíssima vilã, aliás – é uma tremenda vampira de energia anímica, que aprisiona suas vítimas em garrafas hermeticamente fechadas no fundo do oceano. Com ela, os Estúdios Disney exploram de uma forma nunca vista nos desenhos animados uma temática nada infantil: obsessão, chantagem, zumbificação, vampirismo e sequestro. Você estranhou aquele stellium em Escorpião no mapa de estreia do filme? Pois é…
A Pequena Sereia reproduz assim a velha cantilena Saturno-Netuno: amar é um risco enorme, correr atrás da paixão é um desatino imensurável, que coloca em polvorosa toda a ordem do reino. Só uma ariana completamente irresponsável como Ariel poderia agir com tanta inconsequência. Ela tem a suprema audácia de confrontar o medo e de transformar-se numa bela humana. Como a Bruxa do Mar joga sujo e faz de tudo para desviar a atenção do príncipe, Ariel fracassa e está prestes a ter sua alma aprisionada. Contudo, seu amoroso pai, Tritão (Netuno em pessoa), sacrifica-se, oferecendo a própria alma em troca da alma de Ariel.
Como na Disney ninguém é dinamarquês nem se chama Andersen, tudo termina com final feliz: numa reviravolta bem ao gosto hollywoodiano, o príncipe percebe que Ariel é seu verdadeiro amor, fere a feiticeira e consegue libertar todas as almas aprisionadas.
A Pequena Sereia da Disney não é fiel ao conto original, mas ao menos consegue fazer uma leitura menos determinista da “maldição” Saturno-Netuno. O mundo continua sendo um lugar perigoso, e tentar preencher as próprias necessidades afetivas é um meio infalível de atrair encrencas. Entretanto, se você confiar de verdade em sua intuição e for fiel aos sentimentos mais profundos (às vezes tão assustadores quanto a Bruxa do Mar), pode construir pontes para a troca afetiva. O detalhe mais revelador do filme é que, quando confrontados com a determinação de Ariel, o saturnino Sebastião também sobe à superfície para ajudá-la, enquanto Tritão, o rei, age em profundidade. Belíssima metáfora de como Saturno e Netuno podem atuar positivamente, quando conduzidos pela vontade solar.
Durante trânsitos de Saturno e Netuno a fatores pessoais da carta, nossa espontaneidade emocional, tal como a impetuosa Ariel, tende a ser freada pelos conselhos de um caranguejo medroso e pela superproteção de um rei-peixe fantástico, que nos repete o tempo inteiro: “não abandone as águas conhecidas, imaginar sempre é melhor do que tentar viver”. Trata-se de um período onde as tendências depressivas vicejam. A memória saturnina traz de volta as piores lembranças do passado, quando nos demos mal por acreditarmos demais em pessoas, projetos ou situações. Se o trânsito Saturno-Netuno afeta o Sol natal, desconfiamos de nossas decisões internas e colocamos em dúvida nossa força de vontade; se afeta a Lua, revolvemos o passado e ficamos lambendo velhas feridas emocionais; se afeta Marte, falta a confiança necessária para a tomada de novas iniciativas; se afeta Vênus, recusamos o desejo e tentamos manter distância dos nossos melhores sentimentos.
Algumas frases que costumamos dizer em trânsitos Saturno-Netuno a planetas pessoais:
- “Já caí nessa uma vez, não caio mais.”
- “Chega de dar murro em ponta de faca.”
- “Homem (ou mulher) é tudo igual.”
- “Pobre, quando vê muita esmola, desconfia.”
- “Pra que começar? Não vai dar certo mesmo…”
O pior que pode acontecer sob um trânsito Saturno-Netuno é a letargia que nos mantém agarrados a situações insatisfatórias por puro medo de enfrentar o desafio do novo. Se resistimos ao apelos da fuga e do comodismo, talvez possamos viver estes dois planetas geracionais em outro nível: Saturno como a maturidade tranquila obtida com os erros e acertos das experiências anteriores; e Netuno como o idealismo que nos empurra para horizontes mais amplos.
Ariel é um caso raro – mas não o único – de um personagem de ficção que não se entrega ao derrotismo de Saturno-Netuno nem precisa submeter-se ao martírio para encontrar a felicidade. Antes dela o cinema já nos apresentara a Don Lockwood e sua incrível capacidade para transformar o limão azedo em limonada.
Cantando na chuva
“Nunca ouvi falar desse tal de Don Lockwood”, você dirá. Será mesmo? É claro que você assistiu pelo menos uma vez na vida a Cantando na Chuva, o musical mais alegre, inspirado e bem realizado de todos os tempos. Don (Gene Kelly) é um famoso ator de cinema mudo cuja primeira experiência com o cinema falado revela-se um desastre: o filme – um capa e espada chamado O Cavaleiro Galante – tem graves erros de sincronização de áudio, além de falas ridículas e situações absurdas. Em vez de entregarem-se ao fracasso, Don e seus dois parceiros, o pianista Cosmo Brown (Donald O’Connor) e a cantora Kathy Selden (Debbie Reynolds) têm uma brilhante ideia: refazer o filme, transformando-o num alegre musical chamado O Cavaleiro Dançante.
Cantando na Chuva fez sua estreia mundial em Nova York, na noite de 27 de março de 1952. Não temos o horário exato, e portanto não consideraremos as casas. A carta solar mostra três planetas em Áries – inclusive o Sol – em oposição a dois planetas em Libra: Saturno e Netuno, formando mais uma conjunção. É o auge da guerra fria, e a população americana lê com apreensão o noticiário sobre conspirações reais e imaginárias, envolvendo espiões soviéticos e riscos de ataque nuclear. É o auge também do chamado Macartismo, um período de patrulha ideológica e perseguição política a artistas, pensadores, cientistas e políticos suspeitos de simpatia pela União Soviética. Trata-se de um momento pesado, em que o encontro de Saturno e Netuno em Libra define um clima de paranoia coletiva.
A cena mais famosa do filme, e uma das mais famosas de toda a história do cinema, mostra Don Lockwood (Gene Kelly) saindo duplamente feliz de uma reunião na casa de Kathy, de madrugada. Eles haviam acabado de ter a ideia genial: transformar o filme fracassado numa comédia musical cheia de números de dança. De quebra, Don ganhara também o coração da bela Kathy, após alguns desencontros iniciais. A chuva desaba. Em vez de proteger-se, Don abandona o guarda-chuva e começa a cantar e a dançar, brincando e chapinhando na água. É divertimento puro, coração leve e absoluta despreocupação. Eis o que diz a letra:
Eu estou cantando na chuva
Só cantando na chuva
Que sensação gloriosa
Estou feliz novamente
Eu rio para as nuvens
Tão escuras lá em cima
Tenho o sol em meu peito
E estou pronto para o amor
Gene Kelly, ator principal e codiretor do filme, tinha o Ascendente em Áries. Debbie Reynolds era ariana, assim como Stanley Donen, o outro diretor. O filme estreia com o Sol em Áries, oposto a Saturno-Netuno. “As nuvens tão escuras lá em cima” são o contexto Saturno-Netuno, sombrio e desesperançado. Don Lockwood, tão ariano quanto a Pequena Sereia, enfrenta a aparente ameaça com a “sensação gloriosa” de carregar o sol no peito. Para contrabalançar o medo paralisante, só mesma a disposição adolescente. Quer sair do clima depressivo? Procure onde estão os regentes dos signos de Fogo de sua carta e dê espaço para que eles possam agir!
E aí chegamos ao melhor de Saturno-Netuno: usar a experiência da realidade para apostar no sonho possível. Você já sabe tudo o que deu errado nos trânsitos anteriores. Já desenvolveu o discernimento para identificar impedimentos realmente intransponíveis, ou perceber o tom de mentira na voz do sedutor de plantão. Já sabe que todas as novas situações implicam riscos, sim, mas que, sem enfrentá-los, você jamais chegará ao pote de ouro. Saturno-Netuno pode ser fim de linha, mas pode ser também o momento de tentar outra vez. Como escreveu Vítor Martins, parceiro constante de Ivan Lins e autor da letra de Começar de Novo:
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido
Em tempo: Vítor Martins também tem em sua carta uma quadratura Saturno-Netuno. Significativo, não?