Quando alguma criação humana encontra amplo sucesso junto a um determinado público, é interessante notar a personalidade deste público e que aspectos de seu inconsciente social os conteúdos desta obra estão atingindo. Faremos aqui uma exemplificação com o mapa do Descobrimento do Brasil e com a carta de estreia de uma novela de grande sucesso e seus efeitos sobre a audiência. Antes, contudo, será necessário expor alguns conceitos básicos com vistas à compreensão tanto da novela quanto da psique do povo brasileiro.
Um dos modelos mais eficazes neste sentido é a teoria dos tipos psicológicos, desenvolvida pelo médico e psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) ao longo de vinte anos de trabalho prático e ampla pesquisa em vários ramos do conhecimento e das expressões humanas.
O modelo psicológico de Jung não é um meio para rotular pessoas ou grupos, mas, como disse o próprio Jung, uma bússola para orientação psicológica quando se quer entender melhor os indivíduos e as relações estabelecidas entre eles.
O sistema mais antigo usado como tipologia é o modelo que nos foi legado pela astrologia oriental, e que corresponde aos quatro elementos: Fogo, Terra, Ar e Água que, em sua triplicidade advinda das estações do ano, formam os doze signos ou meses solares.
Outras tipologias se seguiram, como a da medicina grega, cujas bases repousam nas secreções do corpo humano e que ainda hoje é usada na linguagem corrente.
Tipos psicológicos: funções psíquicas e correlações com os elementos
O modelo proposto por Jung diz respeito ao movimento da energia psíquica e a maneira como cada indivíduo se orienta no mundo de forma habitual, mais constante e mais fácil para cada um.
Em princípio, a personalidade tem sua energia psíquica direcionada por duas atitudes básicas: introversão e extroversão – e as quatro funções ou forma de orientação – intuição, sensação, pensamento e sentimento – podem adotar, cada uma, a atitude introvertida ou extrovertida, formando, assim, oito personalidades básicas.
Pelo enfoque da astrologia, a direção da energia poderia ser comparada ao que chamamos qualidades masculinas ou positivas [+] ou femininas e negativas [-], tendo em vista seu direcionamento para fora ou para dentro, assim como os quatro elementos podem ser assim relacionados:
- intuição = Fogo;
- sensação = Terra;
- pensamento = Ar;
- sentimento = Água.
Convém, entretanto, evitar o uso da simples correlação como “receita” para uma avaliação do tipo psicológico, pois resultaria em perigoso e errôneo simplismo.
O quadro abaixo sintetiza a maneira como estas funções se organizam dentro da forma circular, como expressão da totalidade da psique.
Cada indivíduo tem uma função dominante (ou superior) com a qual se adapta com maior facilidade à vida. Esta função é consciente e pode ser introvertida ou extrovertida, e funciona, para cada um, como se fosse, por exemplo, a cauda para o jacaré, as asas para um pássaro, ou a tromba para o elefante.
A função inconsciente, também chamada inferior ou primária (devido ao fato de não ser conscientemente desenvolvida), terá obrigatoriamente a direção inversa à função dominante. Ou seja, se a função dominante é extrovertida, a função inferior será introvertida e vice-versa.
Da mesma forma, as funções chamadas irracionais ou de percepção, que são a intuição e a sensação, se comportam de modo empírico e se contrapõem. Assim como as funções chamadas racionais, de julgamento ou avaliação – pensamento e sentimento.
Sendo assim, podemos ter um tipo psicológico orientado pela intuição extrovertida, enquanto sua função inferior inconsciente seria, obrigatoriamente, a sensação introvertida. O pensamento, assim como o sentimento, seriam funções auxiliares e, na prática, a função auxiliar é sempre aquela cuja natureza, racional ou irracional, é diferente da função dominante. Por exemplo, o pensamento não poderá ser a função secundária quando o sentimento (outra função racional) for a dominante.
Os conceitos de extroversão e introversão
A atitude extrovertida é a que se orienta habitual e conscientemente pelos fatos ocorridos no exterior.
A extroversão é caracterizada pelo interesse pelo objeto exterior, pela resposta e reação a esse objeto e por uma pronta aceitação dos acontecimentos externos, por um desejo de influenciar e ser influenciado pelos eventos, por uma necessidade de se incorporar e de se harmonizar com eles, pela capacidade de suportar – e realmente achar agradável – toda espécie de agitação e barulho, pela constante atenção dirigida para o mundo ao redor, pelo cultivo de amigos e conhecidos – nenhum deles selecionado de maneira muito cuidadosa – e, finalmente, pela grande importância que o tipo extrovertido atribui à própria imagem e, consequentemente, por uma forte tendência a exibir-se… Por conseguinte sua consciência depende, em grande medida da opinião pública… suas convicções religiosas são determinadas, por assim dizer, pela opinião da maioria…” Ele não tem segredos, já os compartilhou com todos. Todavia, se algo vergonhoso lhe ocorrer, ele preferirá esquecê-lo. Tudo quanto possa macular sua ostentação de otimismo e sua convicção será evitado. O que quer que ele pense, pretenda e faça será mostrado com entusiasmo e firmeza. …Quanto aos perigos que o rodeiam é melhor afugentá-los pelo alarde. Por mais que um “complexo” o perturbe, ele encontrará refúgio nos círculos sociais e… irá assegurar-se várias vezes ao dia de que tudo está em ordem.
(Jung – Psychological types. p. 39. Em Daryl Sharp – Tipos de personalidade)
A atitude introvertida é a que habitualmente se orienta pelos fatos interiores, pessoais.
O introvertido tende a ser reflexivo, a pensar muito e a considerar cuidadosamente as situações antes de agir. A timidez e certa desconfiança com relação aos objetos resultam em hesitação e em alguma dificuldade para adaptar-se ao mundo exterior.
Tomando por base o mapa da Independência do Brasil, o que percebemos e conhecemos sobre o comportamento básico da maioria dos brasileiros enquanto grupo, assim como o reforço quanto às características do mapa do Brasil Colônia, onde se podem perceber as mesmas configurações venusianas, podemos inferir que a função superior, a mais desenvolvida dos brasileiros, seja extrovertida e, como veremos adiante, do tipo sentimento (tendo, provavelmente, como função auxiliar a intuição).
Mas, vamos ainda dar exemplos que podem esclarecer e reforçar a forma pela qual o uso do conhecimento das funções pode colaborar com a propaganda e penetração na aceitação popular.
A propaganda feita com o objetivo de produzir emoção busca atingir diretamente a função menos desenvolvida (função inferior) de um grupo humano, pois esta função, não sendo consciente, é atingida de forma emocional.
Caso você tenha que falar a intelectuais, cuja função pensamento, certamente, deverá ser a mais desenvolvida, o que deve ser estimulado são sentimentos primitivos, pois se abordar questões científicas o grupo terá as mentes claras e perceberá qualquer tipo de falha em sua argumentação.
A Dra. Marie-Louise von Franz, em seu livro A Tipologia de Jung (Cultrix, p. 99 a 102, ed. 1995) cita o exemplo de Adolf Hitler que, usando sua intuição inferior, percebia qual o caminho a seguir antes de cada discurso que iria proferir. Diz uma testemunha que ele experimentava os temas de forma insegura, ficava pálido e nervoso e estava apenas “sentindo o terreno”. Escolhia um assunto e argumentava de maneira primitiva e emocional, que é a forma como a função inferior pode ser atingida.
Ela diz que todos os alemães que conheceu naquela época e que optaram pelo nazismo foram levados por suas funções inferiores. Os de tipo sentimental foram apanhados por tolos argumentos da doutrina do partido, os intuitivos pela sua dependência do dinheiro, pois não sabiam lidar com problemas econômicos e temiam perder seus empregos, e pela acusação de que os judeus eram atrevidos fazedores de dinheiro. Os insultos aos judeus como intelectuais destrutivos convenceu plenamente os do tipo sentimento superior, e assim por diante.
A necessidade de viver a função inconsciente
A quarta função (inferior-inconsciente-menos desenvolvida) é sempre o grande problema da vida; se não a vivemos, ficamos frustrados e meio mortos, e todas as coisas se tornam tediosas; se a vivemos, seu nível é tão baixo que não a podemos usar sem corrermos o risco de uma desintegração.
Para que esta função seja vivida de forma positiva podemos dar a ela uma forma de fantasia onde sua expressão seja feita pela imaginação ativa, uma técnica desenvolvida pela psicologia de Jung e que pode encontrar sua contrapartida coletiva nas novelas, filmes e outras manifestações artísticas de grupos humanos.
Em Baraka, filme de Ron Fricke produzido em 1992 por Mark Magidson, inspirados no pensamento de Joseph Campbell em O Poder do Mito, cuja característica principal é a ausência de texto e a expressão por imagens e sons, uma cena chama particularmente atenção no sentido da canalização de um potencial latente: uma civilização primitiva é levada a um campo sagrado onde, sob a orientação de um guru, mantém um ritual. A população é dividida em dois grupos que se revezam para que, através de gestos com os braços e sons vocais de ataque, “atinjam e derrubem” o outro grupo, numa simulação de guerra e morte, mantendo com esta prática a paz na comunidade.
O tipo psicológico predominante no brasileiro: breve descrição
sentimento extrovertido
Uma característica do sentimento extrovertido consiste em procurar criar ou manter condições harmoniosas no ambiente que o circunda. Sua avaliação do que é belo e bom não virá por causa de uma avaliação subjetiva, mas porque de acordo com a situação social talvez seja apropriado agir assim. A vida social “civilizada” não seria possível sem este tipo humano. As expressões coletivas de cultura dependem dele. Ir ao Teatro, à Igreja, participar de reuniões comerciais, piqueniques promovidos pela empresa, festas de aniversário, remeter cartões de Natal ou Páscoa, ir a casamentos, funerais, comemorar dia das mães, são coisas devidas a este tipo. Em geral este tipo é cordial e faz amigos com facilidade. Transmite atmosfera de calorosa acolhida, mas pode perder toda a referência do que ocorre internamente dentro de si, deixando-se dominar, inteiramente pelo exterior. Seu pensamento, como função inferior, está sempre subordinado ao sentimento.
Pensamento introvertido
No pensamento introvertido, a superficialização pode levar a fortes e extravagantes manifestações de sentimento, pois o pensamento torna-se servo do sentimento e fica possuído por ele numa manifestação infantil, arcaica e negativa de menos valia sobre si mesmo. Por vezes tais pensamentos se baseiam numa visão muito cética da vida. Permite-se pensar como um ninguém, desprezível e sem possibilidade de valor e desenvolvimento.
Os conceitos de introversão, extroversão e a tipologia psicológica são contribuições da obra de Jung.
As formas de pensamento, além de carregadas de forte carga sentimental, surgem através de formas já instituídas por alguma doutrina, seja ela religiosa, de um partido, de um clube etc. Este tipo recebe o sistema sem fazer indagações, podendo ser tragado por atitudes fanáticas, quando se sente ameaçado por quem tem a facilidade de pensar.
Atualmente, percebo na comunicação por e-mail um enorme reforço da palavra reflexão e do verbo refletir (pensamento) encimando textos recheados de sentimento que se pretendem reflexivos e que são seguidos de uma explicação longa, desnecessária e muitas vezes superficial sobre seu conteúdo. O didatismo sobre o refletir parece denunciar a precariedade do pensamento de quem redige e repassa a mensagem, pressupondo ou projetando fora de si a dificuldade com a própria capacidade de reflexão.
A chave do sucesso: Como Mulheres Apaixonadas atinge a função inconsciente do brasileiro
A novela, um grande sucesso da Rede Globo em 2003, surpreende pela ênfase em chavões informativos expressos de forma marcantemente didática. Como todos eles estão vinculados à carga emocional dos personagens, terminam por atingir o pensamento pouco desenvolvido da audiência como se fossem um enfoque racional e pragmático dos temas expostos.
Especialmente ao longo do século XX, o cientificismo superavalia o pensamento em detrimento do sentimento. Diante deste enfoque, as pessoas e o povo que têm como função superior o sentimento sentem-se, em geral, desvalorizados. Com a exploração das informações e ideias pseudocientíficas na novela, os telespectadores, em grande maioria, acabam tendo seus sentimentos validados, pois se sentem informados da forma correta de agir (“o politicamente correto”). Esta forma de pensar deixa o público mediano em sintonia com o que considera a nata pensante da população, a camada mais culta e informada, dentro da qual se sente, então, incluído. O veículo desta sintonia se faz, principalmente, pela identificação com a carga emocional de seus personagens…
Em Mulheres Apaixonadas há uma ênfase em todas as situações polêmicas passíveis de servir como tema e exemplo para lições sobre comportamento socialmente correto. Tais situações, por vezes, chegam ao didatismo exacerbado.
A violência na cidade e contra mulheres, alcoolismo, passionalidade doentia, abordagem de temas como homossexualidade, celibato no clero, enfrentamento de doenças graves e o comportamento mais adequado diante delas, convivência com idosos, prostituição ou sexo como programa, negação de segregação social por questões raciais, ambições de poder financeiro ou ascensão social e até paranormalidade levam o espectador a tomar conhecimento de leis, grupos de ajuda e todas as orientações que visam a alertar o comportamento da população para posturas mais abertas e esclarecidas. Entretanto, mantém-se o nível de superficialidade que, além de inerente ao veículo, consegue atingir o interesse e a identificação da população com seu tipo psicológico menos desenvolvido.