A melhor fonte de informação sobre o período da fundação do Rio de Janeiro é uma detalhada biografia de Mem de Sá publicada em 1972 pelo Conselho Federal de Cultura e jamais reeditada. A grande qualidade da obra é a fartura de citações de fontes documentais originais (Anchieta, Frei Vicente do Salvador, documentos franceses do século XVI etc.). Para auxiliar os astrólogos que necessitam de mais informação factual sobre o período, eis uma seleção de trechos que tratam diretamente do período compreendido entre 22 de janeiro e outubro de 1565.
Referência: WETZEL, Herbert Ewaldo. Mem de Sá, Terceiro Governador Geral. Conselho Federal de Cultura, Rio de Janeiro, 1972.
Informa Herbert Ewaldo Wetzel:
Em S. Vicente deliberou Estácio com seus imediatos colaboradores sobre a partida da expedição. O Ouvidor Geral Brás Fragoso permaneceria em S. Vicente até se consertar o galeão S. João e a nau francesa capturada, ambos carunchados. A esquadra partiu a 22 de janeiro de 1565. Compunha-se de 5 embarcações e 8 canoas com ao todo 300 homens a bordo. De caminho juntou-se a eles mais uma canoa e outras embarcações, perfazendo o total de nove navios e nove canoas de guerra. A viagem durou mais de um mês com escalas nos portos intermediários para receber gente e mantimentos. Acompanhava-os o Pe. Gonçalo de Oliveira juntamente com Anchieta para darem assistência religiosa aos índios. Ambos dominavam perfeitamente a língua brasílica. Anchieta seria o cronista da expedição.
(…)
Anchieta procurava serenar os ânimos convidando índios e portugueses à paciência. No dia 27 de fevereiro (1565) os índios resolveram abandonar a esquadra. Anchieta pediu-lhes mais um pouco de paciência, prometendo que o sol não se poria antes de chegarem os navios com os mantimentos. Não demorou muito apareceram três navios com o socorro prometido. Pasmaram os índios admirados da sabedoria profética de Anchieta, o que veio contribuir muito para não mais abandonarem a empresa.
Mas não era só aos índios que Anchieta dava ânimo e constância. Também ao Capitão-mor incentivava com sábios e repetidos conselhos. O padre Gonçalo de Oliveira, seu ex-discípulo de Piratininga, depõe no processo informativo em 1619 e apresenta o canarino como a figura principal do acampamento: “O dito Pe. José de Anchieta dava avisos ao Capitão Estácio de Sá o qual aí (no Rio) residia por ordem do Rei Dom João III, ou da Rainha Dona Catarina, advertindo-o que não mandasse partir as canoas para determinados lugares da nossa conquista, porque sabia que os índios tamoios aí tinham preparado emboscadas. E aconteceu diversas vezes que, por causa de tais avisos, se acautelara o dito capitão das emboscadas, saindo-se bem de alguns empreendimentos por se valer desses avisos.”
Depois que a armada deixou as praias de S. Vicente foram os tamoios surpreender aquelas terras com repetidas tropelias. “Andavam tão acesos que já não se contentavam em festejarem uns as tomadas dos outros, mas a modo de formigas se topavam indo uns e vindo outros e quase nunca iam de vazio.” Mas os poucos moradores que permaneceram em S. Vicente desbarataram os assaltantes no mesmo dia em que a esquadra de Estácio entrava na Guanabara.
Sobre a fundação da cidade
A expedição reuniu-se junto à ilha Redonda, a uma légua da barra. A 1º de março (1565) entraram os navios na baía e desembarcaram seus homens. Começou uma atividade febril: puseram-se a “roçar em terra com grande fervor e a cortar madeira para a cerca, sem querer saber dos tamoios nem dos franceses”. Desceu o Capitão-mor como quem entrava em sua terra, dando ânimo aos outros para fazerem o mesmo. Houve grande entusiasmo, “ocupando-se cada um em fazer o que lhe era ordenado sem haver nenhum que a isso repugnasse. Desde o Capitão-mor até o mais pequeno, todos andavam e se ocupavam em semelhantes trabalhos”.
O desembarque foi no istmo da península de S. João, na várzea entre o morro Cara de Cão e os penedos do Pão de Açúcar e Urca. Aí na restinga entre os morros cavaram trincheiras, e construíram as primeiras casas de palha. Da parte dos morros defendia-os a própria natureza; da parte das praias cravaram-se estacas e levantou-se a cerca. Inicialmente apresentaram-se dificuldades para encontrar água potável. Secando, porém, uma lagoa de águas estagnadas, deram com uma fonte de “água muito boa com que todos se alegraram muito e se vão firmando mais na vontade que traziam de levar aquela obra ao cabo, vendo-se tão particularmente favorecidos da Divina Providência”.
Estácio deu início aos fundamentos da cidade que mais tarde se chamaria “cidade velha”. Demarcou-lhe o termo na forma dos forais que regulavam a matéria das Capitanias, e deu-lhe o nome de São Sebastião em homenagem ao jovem Rei D. Sebastião, que mais tarde (4 de agosto de 1578) desapareceu tragicamente em A K.
O local escolhido não era dos mais favoráveis para estabelecer nele uma cidade, mas estava mais facilmente a resguardo dos ataques inimigos. Estácio deu-lhe logo uma instituição administrativa, podendo-se por isso considerar que a 1º de março de 1565 estava fundada a cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro. Para essa tarefa fora Estácio enviado ao Rio: “D. Catarina mandou a Estácio de Sá para não só correr a costa, mas também para de uma vez expelir do Rio de Janeiro aos franceses, fundando ali uma Cidade debaixo das determinações do Governador Geral Além (sic!) de Sá.”
(…)
Havia um mês que o arraial existia, e já “tinham feito muitas roças em derredor da cerca e plantado alguns legumes e inhames”. Com o passar do tempo impacientavam-se os homens da esquadra, desejando “ir-se para suas casas, como é razão. Se os não deixam ir, perdem-se-lhes suas fazendas (nas capitanias). Se os deixam ir, fica a povoação (de S. Sebastião) desamparada e com grande perigo de serem comidos os que lá ficarem. De maneira que por todas as partes há grandes perigos e trabalhos”.[1]
Também no campo adversário trabalhava-se febrilmente: abriam-se trincheiras, rasgavam-se valos e levantavam-se fortificações, sendo as mais importantes: Uruçumirim na Glória e Paranapeçu na ilha do Gato, hoje do Governador. Falava-se também dum grande reforço da França: “souberam que estava o sobrinho de Villegaignon, Capitão que foi da antiga fortaleza, para vir ao Rio de Janeiro e S. Vicente com uma grossa armada”.[2] Deveria chegar em outubro de 1565, mas felizmente não apareceu.[3]
NOTAS
[1] Carta de Anchieta.
[2] Idem. O sobrinho de Villegaignon, Bois-de-Comte, estava então em França. Nem ele nem seu tio voltaram ao Brasil.
[3] Carta do Pe. Quirício ao Pe. Provincial de Portugal, 13 de julho de 1565.
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