Inicialmente meu objetivo com este artigo era embasar a opinião de que a casa 4 seria natural da mãe, enquanto a 10 seria a do pai. Mas depois de muito refletir e rascunhar, cheguei a um resultado diferente do que imaginava. Na verdade não estou querendo aqui provar uma teoria, mas sim propor uma reflexão.
Usarei como ponto de partida a estória “A dona pé de Cabra”. Para quem não a conhece, ela faz parte do Livro das Linhagens, que é uma compilação de estórias de famílias importantes da região feudal de Portugal, na Idade Média. Se pensarmos no significado do Livro das Linhagens em termos astrológicos, teríamos um tema relacionado à casa 4, pois “linhagem”, “feudo”, “famílias nobres”, são todos atributos desta casa. Esta estória específica tem origem no século XI. Vou resumi-la, tentando incorporar alguns elementos que serão importantes na reflexão astrológica que farei posteriormente.
Um resumo da lenda medieval
Um dia Dom Diego Lopez estava caçando nas montanhas de seu feudo quando avista uma mulher sentada em uma pedra. Ela era muito bonita e estava bem vestida e Dom Diego lhe pergunta quem era. Ela responde ser de uma família de alta linhagem, e então Dom Diego a pede em casamento. Ela diz que aceitaria com a condição de que dali em diante ele nunca mais fizesse o sinal da cruz. Ele concorda e os dois se casam. Esta senhora tinha uma característica peculiar, que era seu pé dividido, como um pé de cabra. O casal teve dois filhos: um menino e uma menina. Um dia estavam todos almoçando quando Dom Diego joga um osso para seu cão de caça, de grande porte. Uma pequena cadela, que estava por perto, começa a brigar pelo osso e mata o cão com uma mordida no pescoço. Assustado com o acontecido, Dom Diego faz automaticamente o sinal da cruz. Sua mulher, contrariada com a quebra do acordo, pega a filha pelo braço, mas não consegue pegar o filho porque Dom Diego o segura. Ela foge pela janela do palácio com a filha e nunca mais é vista.
Depois de um tempo Dom Diego vai guerrear contra os mouros e é raptado e preso. Seu filho, Inácio Guerra, desesperado com o acontecido, pede a ajuda dos que vivem em sua terra, mas eles dizem que nada havia a fazer a não ser procurar por sua mãe, nas montanhas. E assim Inácio vai em busca da mãe. Acaba encontrando-a em cima de uma pedra. Ela diz saber o motivo pelo qual ele foi à sua procura e lhe dá um cavalo, que explica não poder ser selado, nem alimentado. Diz ainda que com este cavalo ele venceria todas as batalhas nas quais entrasse. Para libertar o seu pai bastaria deixar-se guiar pelo cavalo. Então era só chamar pelo nome do pai e, quando ele subisse no cavalo, este os levaria de volta ao palácio ainda no mesmo dia. E assim aconteceu. Quando Dom Diego veio a falecer muito tempo depois, seu feudo ficou para o filho, Dom Inácio Guerra.
A moral desta estória é que Dom Inácio teria que reconhecer e aceitar sua linhagem para que tivesse êxito na vida. A força da nobreza estava em reconhecer e aceitar sua origem. No caso dele, seria a união das duas partes: a linhagem paterna, que era representativa da luz e civilização, e a linhagem materna, representativa do obscuro e do misterioso. Só com a aceitação destas duas forças é que Inácio se tornaria o nobre Dom Inácio e teria êxito em sua vida.
Passemos agora à especulação astrológica. Poderíamos associar de início a mãe com a casa 4, pela representação obscura que ela tem nesta estória. A mãe habita a montanha e a floresta, lugares bestiais, reino do desconhecido. O pai, sendo morador do palácio, região da luz e civilização, poderia representar a casa 10. No conto, Inácio precisa reconhecer a importância de sua mãe (casa 4), de sua origem obscura (casa 4), para ter êxito na busca pelo pai (casa 10) e para se tornar Dom Inácio (casa 10). Porém surgem alguns problemas: a Dona Pé de Cabra está associada a uma série de elementos saturninos e de casa 10, como a sua própria denominação o indica: “pé de cabra”. A cabra é o símbolo de Capricórnio, que guarda analogia com a casa 10. O lugar onde a mulher é encontrada mais uma vez nos coloca em contato com um elemento capricorniano: a montanha, que, por ser um lugar alto, tem a ver com a questão da ascensão, tema capricorniano. A mulher estava em cima de uma pedra, que é outro elemento saturnino (lembremos que Saturno é regente de Capricórnio). Já o pai também tem muitas atribuições de casa 4, como, por exemplo, o fato de ser um senhor feudal, dono de terras, que é um elemento da 4. Ele também é quem vai dar o “status” de nobreza ao filho. Note-se que ambos, pai e mãe, são de alta linhagem, mas é do pai que Inácio iria herdar a terra e a definição social.
A partir de todos estes elementos, que contradizem a proposta inicial, resolvi fazer o inverso do que havia feito: associei a mãe à casa 10, por causa dos elementos capricornianos e saturninos a ela relacionados, e o pai à casa 4, pelos elementos cancerianos. Neste caso, o problema que se impõe é o seguinte: por que razão é atribuída à mãe o caráter de obscuridade e ao pai o de luminosidade, sendo que a casa 10, a da mãe, seria a casa onde o Sol estaria a pico, o ponto de maior irradiação e luminosidade, enquanto a casa atribuída ao pai seria a de maior escuridão, uma vez que o Sol estaria no ponto mais abaixo da superfície? Fiquei refletindo e pesquisando, até que achei algo interessante no livro As doze casas, de Howard Sasportas, que parece ser a chave para o entendimento da questão:
Muito simplesmente, a casa 10 descreve estas qualidades da mãe que também estão dentro de nós, quer gostemos ou não. A saída é complicada, no entanto, pela possibilidade de os posicionamentos da casa 10 designarem aspectos da personalidade da mãe que nunca foram vivenciados – atributos e características que a mãe não expressa ou representa conscientemente durante os anos de crescimento da criança. (…) Uma criança terrivelmente sensível à psique da mãe e aos subtendidos que ficam latentes no lar, será receptiva não só àquilo que ela manifesta abertamente mas também àquilo que ela nega ou suprime. A criança pode ser inclinada a ‘vivenciar’ o lado sombrio da mãe, como se a mãe se tornasse mais inteira ou redimida desta maneira.
Seguindo o que foi dito acima, podemos entender o porquê de a “Dona Pé de Cabra” (a mãe, representativa da casa 10) ficar com o elemento obscuro, enquanto Dom Diego (o pai, representativo da casa 4) fica com o luminoso. Na sociedade feudal, onde os papéis do homem e da mulher eram claramente definidos, não sobrava espaço para a mulheres (mães) expressarem seu conteúdo de realização (casa 10). Portanto, a maneira com que contornavam isto era expressando suas casas 10 através de seus maridos e/ou filhos. Partindo do princípio que o pai era a figura que conseguia se projetar e portanto vivenciar sua casa 10, é deste que o filho recebia a herança, o título de nobreza (casa 4). Esta parte da psique era facilmente reconhecida, já que a sociedade propiciava isto. Já a mãe, de quem o filho recebia a educação, tinha dificuldades de expressar sua casa 10 nesta sociedade, sendo portanto que certas características eram relegadas ao inconsciente da mesma. Desta maneira, o filho “absorvia”, em sua educação, este lado obscuro da mãe, e o vivencia por ela. Este seria portanto o lado da psique de difícil reconhecimento, uma vez que os atributos da mãe não eram claramente visíveis e expressos. Daí a representação obscura da mulher no conto.
Esta é apenas uma reflexão acerca do eixo de casas 4-10 e suas atribuições às figuras paternas. Talvez seja necessário amadurecer mais a ideia e partir para experimentação prática com casos reais. Mas partindo desta lógica, montei o seguinte quadro esquemático:
Ao reconhecer e aceitar este “legado” (lado obscuro) da mãe, o indivíduo vivenciava a sua casa 10. Podemos entender portanto a importância de se aceitar e vivenciar os dois legados, o do pai, que é claro e objetivo, e o da mãe, não tão visível e claro, mas que era importante também para compor o equilíbrio necessário do eixo de casas 4-10.
A história completa da Dona Pé de Cabra
A dona pee de cabra
[Transcrição do texto original]
Nota: como nem todos os browsers podem reproduzir adequadamente a letra e acentuada com til (som nasal), sempre que este e nasal aparecia no texto original foi aqui substituído pela convenção [e].
Dom Diego Lopez era muy boo monteyro e, estãdo huu dia en sa armada e atemdemdo quamdo verria o porco, ouuvyo cantar muyta alta voz huua mollher em çima de huua pena e el foy para lá e vio-a seer muy fermosa e muy bem vistida e namorou-sse logo della muy fortemente e pergumtou-lhe qu[e] era e ella lhe disse que era huua molher de mujto alto linhagem, e ell lhe disse que, pois era molher d’alto linhagem, que casaria com ella, se ella quisesse, ca ell era senhor daquella terra toda, e ella lhe disse que o faria, se elle prometesse que numca se santificasse, e elle lho outorgou e ella foi-sse logo com elle. E esta dona era muy fermosa e muy bem feita em todo seu corpo, saluando que auia huu pee forcado, como pee de cabra. E viuerom gram tempo e ouuerom dous filhos e huu ouuve nome Enheguez Guerra e a outra foi molher e oouve nome dona… (pedaço não reconstituído)
E, quando comiam de suu dom Diego Lopez e sa molher, ass[e]etaua ell apar de ssy o filho e ella ass[e]etaua apar de ssy a filha, da outra parte. E huu dia foy elle a seu monte e matou huu porco muy gramde e trouxe-o pera sa casa e pose-o ante ssy hu sya comendo com ssa molher e com seus filhos, e lamçarom huu osso da mesa e verrom a pellejar huu alaão e huua pondenga sobr’elle em tall maneyra que a podenga trauou ao alaão em a gargãta e matou-o. E dom Diego Lopez, quando esto vyo, teue-o por millagre e synou-sse e disse:
-Santa Maria, vall! quem vio tall cousa?
E sa molher, quando o vyo assy sinar, lamçou maão na filha e no filho, e dom Diego Lopez trauou do filho e non lho quis leixar filhar e ella rrecudio com a filha por huua freesta do paaço e foy-sse pera as montanhas em guisa que a non virom mais nem a filha.
Depois, a cabo de tempo, foy este dom Diego Lopez a fazer mall aos mouros e leuarõ-no pera Tolledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesaua mujto de ssa prisom e veo fallar com os da terra, per que maneyra o poderia auer fora da prisom. E elles disserom que nom sabiam maneyra por que o podesse auer, saluamdo se fosse aas montanhas e achasse sa madre e que ella lhe diria como o tirasse. E ell foi alaa soo, em çima de se seu cauallo, e achou-a em çima de huua pena, e ella lhe disse:
-Filho Enheguez Guerra, vem a mym, ca b[e] sey eu ao que u[e]es.
E ell foy pera ella e ella lhe disse:
-V[e]es a pregumtar como tirarás teu padre da prisom.
Emtom chamou huu cauallo que amdaua solto pello monte, que avia nome Pardallo, e chamou-o per seu nome, e ella meteo hua freo ao cauallo que tijnha e disse-lhe que nom fezesse força pollo desselar nem pollo desemfrear, nem por lhe dar de comer n[e] de beuer, nem de ferrar, e disse-lhe que este cauallo lhe duraria em toda sa uida e que nuca emtraria em lide que nom vençesse delle. E disse-lhe que cauallgasse em elle e que o porria em Tolledo, ante a porta hu jazia su padre logo em esse dia e que, ante a porta hu o cauallo o posesse, que alli decesse, e que acharia seu padre estar [e] huu currall e que o filhasse pella maão e fezesse que queria fallar com elle e que o fosse tirãdo comtra a porta hu estava ho cauallo e que, des que alli fosse, que cauallgasse em o cauallo e que posesse seu padre ante ssy e que ante noite seria en sa terra com seu padre, e assy foy. E depois, a cabo de tempo, morreo dom Diego Lopez e ficou a terra a seu filho, dõ Enheguez Guerra.
Bibliografia
A dona pee de cabra. In: IV Livro das Linhagens. Apud Crestomatia Arcaica, op.cit.
NUNES, Dr José Joaquim. Crestomatia Arcaica – excertos da literatura portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica, 4a edição.