Em junho de 2017 começou a tramitar no Senado Federal mais um Projeto de Lei com vistas a regulamentar e a submeter ao controle do Estado um número considerável de ocupações nas áreas de terapia, diagnóstico e consultoria, reunidas sob a denominação genérica (e evidentemente incorreta) de Terapias Naturais. Entre as especialidades incluídas no Projeto estão a Homeopatia, o Reiki, a Fitoterapia, a Medicina Ortomolecular, a Meditação, as Constelações Familiares, a Psicanálise e a Astrologia Ayurveda.
Trata-se de uma mistura heterogênea de técnicas originárias de diferentes contextos culturais, articuladas de acordo com diferentes racionalidades e paradigmas terapêuticos, com diferentes graus de maturidade teórico-metodológica e diferentes níveis de aceitação junto à comunidade acadêmica. Os modelos de formação e organização profissional são também muito variados, oscilando entre a completa informalidade e a regulamentação detalhada.
O Projeto de Lei foi elaborado por um obscuro Senador de Roraima, Telmário Mota, hoje filiado ao PTB. A proposta do parlamentar é reservar o exercício profissional dessas atividades aos portadores de diplomas de graduação, pós-graduação ou curso de educação profissional técnica de nível médio expedidos por instituições de ensino oficiais ou reconhecidas pelo Ministério da Educação.
A quem interessa este Projeto de Lei?
Projetos de Lei não surgem no Congresso Nacional por geração espontânea. São, na maioria das vezes, a expressão dos interesses de algum grupo organizado, categoria profissional, classe social, ou ainda facção de caráter político, religioso, étnico ou de defesa de interesses locais. Por isso, cabe perguntar: a quem interessa a regulamentação de tantas especialidades num único pacote?
A resposta óbvia aponta para os terapeutas naturistas no sentido estrito. Este grupo, formado por fitoterapeutas, terapeutas florais e massoterapeutas de várias especialidades – shantala, reflexologia etc. – tem um interesse antigo e legítimo no reconhecimento profissional, até porque mantém uma interface direta com as práticas médicas e paramédicas já regulamentadas, estando mais exposto a discriminações e pressões de todo tipo. A análise do noticiário na imprensa e na internet nos últimos anos revela também que este parece ter sido o único conjunto de categorias profissionais que efetivamente se mobilizou para obter alguma forma de regulamentação, e o Projeto de Lei não deveria ter ido além deste segmento específico.
É difícil entender como o conceito de terapia natural acabou indiscriminadamente estendido a psicanalistas, consteladores familiares, arterapeutas, psicopedagogos ou astrólogos. Ao que tudo indica, em algum momento da discussão alguém tratou de inserir o famoso jabuti na árvore, tão conhecido em Brasília – e, neste caso, um jabuti mal-intencionado e teoricamente injustificável. Uma olhada nos demais beneficiários do projeto pode nos dar a pista acerca dos responsáveis:
1 – Universidades e escolas técnicas privadas
São as primeiras e principais beneficiárias, já que o Projeto de Lei prevê o exercício exclusivo da profissão por portadores de diplomas outorgados por instituições de nível superior ou técnico. Sabemos de antemão que as universidades públicas terão pouco ou nenhum interesse em abrir cursos nessas especialidades, bastando observar o que já aconteceu no passado, quando do reconhecimento da Homeopatia, da Acupuntura e do Yoga.
As entidades de classe da área de saúde (Conselhos de Medicina, Psicologia, Farmácia etc.) têm forte resistência à criação de novos cursos de viés heterodoxo, seja por conflitarem com o paradigma técnico-filosófico da ciência hegemônica, seja porque novos cursos irão concorrer pelas mesmas verbas de custeio e pesquisa já destinadas aos cursos tradicionais.
Restam, então, as instituições privadas. Mas o que podemos esperar de um curso superior de graduação em Constelações Familiares ou Meditação? Nas universidades particulares, o que teremos serão cursos caros, com currículos inadequados elaborados a toque de caixa e formação de qualidade discutível (com raras e honrosas exceções). O alto custo tornará o ensino elitizado e, durante dez ou quinze anos, a oferta de novos profissionais tenderá a ser inferior à demanda, criando um efeito de reserva de mercado.
Os cursos de terapias holísticas já existentes não poderiam obter diretamente o reconhecimento junto ao Ministério da Educação? Não é tão fácil assim. As exigências operacionais e burocráticas são elevadas e não estão ao alcance de grupos com pouco poder econômico. O processo de reconhecimento de um novo curso pode demorar anos. Abrir uma faculdade ou escola técnica no Brasil exige muito capital, muita influência política e um profundo conhecimento da tecnoburocracia.
2 – Interesses ligados à ciência tradicional e a grupos religiosos
A normatização do exercício profissional das técnicas alternativas supostamente deveria beneficiar seus praticantes, mas, na prática, coloca um poder enorme nas mãos do Estado, das universidades e das grandes corporações. São essas instituições que influenciarão currículos, determinarão critérios de aprovação de profissionais e terão papel decisivo na elaboração da regulamentação específica de cada atividade – ou seja, aquela que realmente importa.
A poderosa bancada evangélica no Congresso tem conhecidas objeções a saberes e práticas como Psicanálise, Bioenergética, Astrologia e qualquer modalidade de terapia de base não-ocidental, ou que admita pressupostos conflitantes com a orientação bíblica. Esta bancada terá uma influência decisiva no caso de uma eventual regulamentação. Corporações médicas, planos de saúde e grandes laboratórios também ganham, por sua vez, maior poder de controle e de veto sobre as práticas que considerem indesejáveis. Em outras palavras: a normatização profissional pelo Estado opera contra os interesses de quem supostamente beneficiaria, pois, para os inimigos das ocupações não-convencionais, é muito mais fácil estabelecer restrições sobre conselhos profissionais submetidos ao Estado do que vigiar o exercício profissional de milhares de praticantes não institucionalizados.
Psicanalistas contra a regulamentação
Idealmente, categorias profissionais emergentes deveriam buscar legitimação oficial e regulamentação apenas quando estivessem suficientemente maduras para definir como pretendem inserir-se no mercado de trabalho. A busca do respeito social deveria preceder a institucionalização.
Dentre todas as especialidades arroladas no Projeto de Lei, provavelmente a que conta com uma corporação profissional mais organizada e socialmente reconhecida seja a dos psicanalistas. Estes, através do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, já se posicionaram de forma contrária à inclusão de sua prática terapêutica no âmbito do novo dispositivo, nos seguintes termos:
Novo projeto de Lei foi inscrito no Senado, Projeto de Lei do Senado n° 174, de 2017, visando, novamente, uma regulamentação do exercício de algumas práticas – dentre elas as psicoterápicas e psicanalíticas – sem qualquer relação com o que a comunidade profissional, de formação científica, julga ser de garante para essa mesma prática.
Essa não é a primeira tentativa da Bancada Evangélica no Senado Federal buscar uma regulamentação da psicoterapia e da psicanálise para que os membros dessas comunidades se apropriem de uma prática, um saber e uma clínica que, há mais de um século, exige uma formação fundamentalmente laica, que imprime uma necessária neutralidade no exercício da profissão.
Entre as questões propostas está a de fazer conhecer ao máximo, nas nossas instituições, a necessidade de não regulamentar a psicanálise, questão fundamental a ser compartilhada por todos os psicanalistas, já que a regulamentação atinge a própria ética da psicanálise.
Com as devidas adaptações, a argumentação das entidades psicanalíticas poderia ser adotada por qualquer das outras categorias profissionais inseridas à revelia no projeto. Alguém perguntou aos psicopedagogos, aos consteladores familiares ou aos astrólogos védicos se desejam esta normatização? Será que estamos tão ansiosos para substituir nossos modelos formativos – não oficiais, mas que respondem a uma necessidade real da comunidade de praticantes – por um diploma da UNIP ou da Universidade Anhembi Morumbi?
Um projeto com duas cascas de banana
Para amenizar o impacto de uma possível implantação, o Projeto de Lei, em seu inciso VI do Art. 1º, assegura a permanência no mercado dos profissionais que, “comprovadamente, exerçam atividades (…) há pelo menos três anos ininterruptos”. Tranquilizador? Nem tanto. Em primeiro lugar, porque trata-se de uma disposição transitória, aplicando-se apenas aos que atendam aos requisitos no momento de promulgação da lei. A partir daí, a formação em instituição reconhecida pelo Ministério da Educação passa a ser o único caminho. Além do mais, não está claro quem avaliará se cada profissional em atividade preenche ou não os requisitos. Tudo dependerá de uma regulamentação, prevista no Art. 2º do projeto, a ser estabelecida pelos “ministérios competentes”. Hum… qual será o ministério competente para determinar quem faz Astrologia Védica e quem segue a linha tropical? Ou para legislar sobre Florais de Bach? Ou sobre Regressão de Memória?
A outra “casca de banana” constante do projeto está no caput do parágrafo único do art. 1º, inciso VI, que estabelece textualmente:
Para os efeitos desta Lei, consideram-se modalidades de terapia naturista aquelas que compreendem atividades de atuação terapêutica compreendidas nos seguintes grupos, sem prejuízo de outras que possam ser agregadas (…).
A expressão “sem prejuízo de outras que possam ser agregadas” significa que a regulamentação interministerial infralegal poderá ainda incluir qualquer outra modalidade terapêutica não citada no Projeto de Lei, a critério dos burocratas de Brasília. Em outras palavras: a Astrologia Ocidental – aquela, que 99% dos astrólogos brasileiros praticam – também corre risco de inclusão nesta obra-prima de insanidade legislativa.
Num cenário mais pessimista, até mesmo os as sessões de passe dos centros espíritas, os núcleos budistas de meditação e as rodas de Terapia Comunitária Integrativa podem vir a sofrer restrições futuras, por não contarem com especialistas graduados por instituições de ensino credenciadas pelo Ministério da Educação. Não importa que desenvolvam atividades não remuneradas e de significativo alcance social: afinal, no dizer do autor do projeto, “a ausência completa de regulamentação gera um evidente problema de saúde pública da população brasileira, que se vê à mercê de profissionais despreparados ou, mesmo, mal-intencionados (…)”.
O controle estatal sobre a educação e o mercado de trabalho está em baixa em boa parte do mundo. Os monopólios oficiais e as reservas de mercado tendem a dar lugar a um modelo mais flexível, mas não menos eficaz: falamos da livre organização de categorias profissionais em entidades de classe que definem seus próprios padrões de qualidade e pressupostos éticos, emitindo, a partir daí, certificações de ampla aceitação junto ao mercado e ao público consumidor. Já é assim na Informática, na área de Tradução, em segmentos consideráveis do ensino de línguas, na já citada Psicanálise e em diversas outras modalidades terapêuticas, todas autorregulamentadas. A Astrologia tem avançado pelo mesmo caminho, com o fortalecimento de sindicatos, associações de classe e escolas independentes. Não necessitamos de uma regulamentação oficial impositiva, unilateral, confusa e que não resulta de um clamor da própria comunidade profissional.
No momento, a tramitação do Projeto de Lei está suspensa, mas o perigo ainda persiste. Para quem quiser conhecer o projeto inteiro, acesse aqui a versão PDF do PL 174/2017, texto integral
Para participar da consulta pública:
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Eliane Caldas diz
Obrigada, Fernando. Muito bom o artigo, bastante esclarecedor.
Já fui presidente do sindicato dos Astrólogos de Pernambuco, pois sempre acreditei na importância dessas entidades e me interesso pelo tema. Preocupa-me a quantidade de pessoas sem formação se denominando astrólogo nesses últimos três anos, o que em princípio, poderia ser minimizado a partir de uma regulamentação. Deveríamos aproveitar o trígono de Saturno com Urano para uma estruturação da classe, mas não necessariamente precisa passar pelo estado, exatamente pelos motivos expostos neste artigo.
Tadeu diz
Quem não ocupa espaço e se organiza fica na mão do outro.
Quando as instituições de astrologia vão
se unir, formarem grupos de estudo, planejar e se posicionar com ações estratégicas e táticas?
José A. Baptista diz
Realmente no Brasil – num contexto geral – astrólogos(as) ignoram astrólogos(as). Astrólogos não compram livros de outros astrólogos e não compartilham experiências, pesquisas e ideias. Aconteceu comigo no Facebook quando apresentei uma tese sobre o assunto “concepção”, de 12 astrólogos(as) só uma astróloga – por já conhecer o assunto “concepção” discutido pela astróloga Celisa Beranger – é que aprovou a minha tese. E, por fim, os outros 11 tiveram que se ajoelhar por estarem escrevendo bobagens, e não eu.
Luciana diz
Projeto de Lei muito mal feito. Sem falar que, nos dias de hoje, é arcaico e obtuso considerar que, para ser regulamentada, uma atividade precise estar sob a intervenção direta do Estado. Além das razões expostas na matéria – muito esclarecedora, diga-se de passagem – devemos considerar também que o mercado é muito mais ágil em oferecer conhecimento (e me refiro aqui a cursos livres e equivalentes) do que as instituições formais sob o aval do MEC. Melhor do que centralizar para si, faria melhor o Estado em dialogar com entidades de classe, associações auto-regulamentadoras e sindicatos para o estabelecimento de diretrizes de formação, atuação profissional etc.
Amanda Martins diz
Oi Fernando, pelo que eu vi no projeto de lei, a Astrologia está incluída também nessa mistura absurda de atividades. Eu espero que esse projeto não vá adiante!