—É, isso mesmo. Minha filhinha Escorpião! Escorpião é malandro. Não tô dizendo que eles mente, só que nem sempre dá pra confiar neles.
Com a frase acima, extraída da obra Preciosa (do original Push), uma senhora profundamente perturbada tenta engabelar uma assistente social, querendo convencê-la de que o histórico de estupro e violência que sua filha – a muito custo – relatou não passa de mentira. E qual escorpiano em algum momento da vida não foi considerado “culpado a priori” apenas por ter nascido no final de outubro ou em novembro? Em alguns livros antigos de Astrologia, somos até mesmo instados a crer que nascer sob a égide do oitavo signo é um atestado de canalhice crônica. Na obra a que me refiro, tal preconceito é proferido por uma mulher extremamente ignorante e maligna, com o intuito claro de invalidar a fala da filha a quem ela odeia. “Ela não foi estuprada, ela mente”. Quantos casos de incesto recebem este tipo de tratamento? Infelizmente, mais do que deveríamos ser capazes de tolerar.
Personagens ficcionais também têm mapas astrológicos. Em alguns casos, as datas de nascimento de personagens específicos foram dadas sem intencionalidade. Este não parece ser o caso de Claireece Precious Jones, figura central do livro Preciosa, de Sapphire. Dá pra apostar com forte convicção que a autora, dotada de conhecimento da Astrologia, valeu-se da ficção para dar aos seus leitores mais do que apenas um romance. Sapphire nos dá uma verdadeira aula de exemplo de caso astrológico… e que caso! Você consegue imaginar alguém que tenha sido sexualmente brutalizada tanto pelo pai quanto pela mãe, pegou AIDS com o próprio pai e engordou à força porque sua mãe queria que ela fosse feia? Se você acha isso impossível de acontecer, bem-vindo seja ao mundo plutoniano que nos desvela Sapphire – professora num dos lugares mais miseráveis de New York, onde histórias como esta são absurdamente comuns.
Sapphire, nome artístico de Ramona Lofton, escreveu Preciosa a partir de fatos reais. E, apesar de não dispormos da hora de nascimento da autora, pelo menos um dado referente ao dia de seu nascimento (4 de agosto de 1950) nos revela que Sapphire tem uma compreensão natural deste tipo denso de experiência: ela mesma, afinal, nasceu com o Sol em conjunção aplicativa a Plutão. Com esta conjunção, não é possível ver o mundo a partir de filtros coloridos. Experiências intensas e traumáticas se apresentam, nuas e cruas.
Preciosa figurou na lista dos mais vendidos do New York Times por mais de dois anos e se tornou filme fidedigno ao livro escrito. O nome da obra em inglês, Push, tem um significado especial no contexto, e se aplica bem à simbologia do Sol escorpiano e da Lua capricorniana da personagem principal. A vida não é um mar de rosas. A todo momento, a personagem se depara com alguém que lhe ordena: push! É preciso forçar (to push) para que um bebê nasça, para superar dificuldades pessoais, para ir além dos próprios limites. No original inglês, Sapphire nos fala de uma passagem do Talmude, em que somos avisados que em cada folha de grama há um anjo que diz: força! (push!)
Sapphire dava aulas de inglês para adultos no Bronx, bairro mais pobre de New York, quando uma de suas alunas disse que tinha sido estuprada pelo próprio pai e, do estupro, tinha ficado grávida de uma menina que nasceu com síndrome de Down. Diz Precious:
—Eu levei bomba na escola quando tava com 12 anos por causa que tive um neném do meu pai. Foi em 1983. Fiquei um ano fora da escola. Esse vai ser meu segundo neném. Minha filha tem Sindro de Dao. É retardada. (…) Meu nome é Claireece Precious Jones. Não sei por que tô contando isso. Acho que é porque não sei até onde vou com essa história, nem sei se isso é uma história nem por que tô falando; nem se vou começar do começo ou daqui desse ponto ou daqui a duas semanas. Daqui a duas semanas? Claro, a gente podemos fazer o que quiser quanto tá falando ou escrevendo, não é que nem viver, quando a gente só podemos fazer o que tá fazendo. Tem gente que conta uma história que não faz sentido nem é de verdade. Mas eu vou tentar fazer sentido e contar a verdade, se não de que porra adianta? Já não tem mentira e merda demais por aí?
Precious tem data de nascimento claramente explicitada por Sapphire: 4 de novembro de 1970. Com Sol, Mercúrio, Vênus, Júpiter e Netuno em Escorpião, Precious é um exemplar típico de uma filha de Plutão/Marte, com uma vivência que nos remete à agonia mais extrema desta dinâmica astral: a violência sexual. Mas também nos descortina as possibilidades mais elevadas do poder de transformação. Não à toa, o cartaz da versão cinematográfica deste livro nos mostra Precious com asas de borboleta, numa clara simbologia da mudança da lagarta para um novo ser. A obra nos anuncia: você testemunha o nascimento de uma alma. E é verdade. Testemunhamos mesmo.
É muito provável que esta data de nascimento seja a de alguém cuja história inspirou Sapphire. O principal indício que alimenta minha suspeita é o fato de que a versão cinematográfica do filme foi ao ar numa sessão fechada de lançamento no dia 4 de novembro de 2009, aniversário da personagem principal. O lançamento oficial se deu dois dias depois. O filme foi indicado a várias categorias do Oscar, e levou dois prêmios: melhor atriz coadjuvante e melhor roteiro adaptado.
Em Preciosa, somos apresentados a uma criatura tão maltratada pela vida que mal conseguimos reconhecer nela uma pessoa. Precious é estuprada constantemente pelo próprio pai, utilizada pela própria mãe como instrumento de masturbação desde que era apenas um bebê, vítima de espancamento cotidiano, forçada a comer por puro sadismo materno até ficar com mais de 100 quilos, e não conhece o mais ínfimo vestígio do que seja afeto. O resultado disso é um intenso atraso cognitivo e educacional. Precious tem 16 anos e não sabe ler, quase não fala, é violenta na escola e pensa em si mesma como “uma coisa”. Alimenta fantasias de vingança, mas não as executa. Está morta, ainda que viva. Mal fala, não sabe ler e fica apenas paralisada, enquanto o tempo passa e os abusos contra ela se sucedem.
Graças à intervenção da diretora do colégio, Precious é apresentada a um sistema alternativo de ensino, o “Cada Um Ensina a Um”, onde conhece outras meninas tão avariadas quanto ela: uma garota que foi violentada pelo irmão, outra que viu sua mãe ser assassinada pelo marido, outra que foi estuprada por vezes sem fim por ser lésbica, e tantos outros casos que nos parecem absurdos demais para serem verdadeiros. Mas são. A professora (inspirada na própria autora, Sapphire) se chama Blue Rain e mais do que ensina Precious a ler. Oferece afeto. E, na medida em que se reconhece como alguém através dos olhos dos outros, Precious inicia sua jornada de cura, que se manifesta primeiramente em sonhos carregados de simbolismo, em que ela ao mesmo tempo se lembra de coisas muito antigas que preferia esquecer, e ressignifica a experiência, resgatando a si mesma:
—Naquela noite eu sonho que não estou em mim mas acordo escutando eu sufocando, fazeno a huh a huh A HUH A HUH A HUH. Tô andano por aí tentando descobrir onde é que eu tô, de onde o som vem. Sei que vou morrer sufocada se não me encontrar. Ando até o quarto da minha mãe, mas o quarto tá diferente, ela tá diferente. Eu pareço quase que nem um nenenzinho. Ela tá falano doce comigo que nem papai fala às vezes. Tô sufocando entre as perna dela. A HUH A HUH A HUH. Ela tem cheiro de mulher grande. Ela diz chupa, me lambe, Precious. A mão dela é que nem uma montanha empurrando minha cabeça para baixo. Fecho os olho com força mas o sufoco não para, fica pior. Então abro os olho e olho. Olho pra pequena Precious e a grande mamãe e sinto vontade de bater, sinto vontade de matar mamãe. Mas não, em vez disso eu chamo a pequena Precious e digo: Vem pra mamãe, mas quero dizer eu. Vem pra mim, pequena Precious.
O exílio do feminino
Precious nasceu quando Vênus estava em Escorpião, posição clássica de exílio do planeta; a Lua, por sua vez, se encontrava em Capricórnio, também posição de exílio. Por mais que uma visão moderna da Astrologia procure rechaçar a importância das dignidades planetárias, me parece que tal rejeição a um procedimento clássico de interpretação decorre de um mal entendimento do que significam as dignidades.
Vênus e Lua em exílio não são “ruins a priori” para o nativo, como pensam muitos. O exílio significa algo muito simples de entender: a natureza de Escorpião não tem nada a ver com Vênus, assim como Capricórnio não tem a ver com a Lua. Este “desencaixe” pode inclusive produzir coisas muito boas. No caso da mulher, a insubmissão.
A relação com o próprio corpo termina demandando atenção redobrada. O corpo é, via de regra, sentido como algo problemático, gerador de desconforto, mais do que fonte de prazer. E, em muitos casos, quando há prazer, há culpa. Some-se a isso o fato de Vênus estar em oposição quase exata com Saturno, estando Saturno no signo de Vênus (Touro). Temos um caso clássico de rejeição afetiva e congelamento emocional desde a mais tenra idade. Sobre isso, vale ler outro artigo meu aqui em Constelar: O complicado dicionário amoroso dos filhos de Vênus-Saturno. Precious é – numa dimensão bem extrema – um caso da dinâmica da oposição entre estes dois planetas.
A Lua, exilada, nos remete à ausência de cuidado, de carinho. A rigidez emocional como mecanismo de defesa. Precious, conforme nos conta a história, jamais sequer mamou, pois sua mãe achava “anti-higiênico”. Sua primeira experiência de contato com o afeto humano foi logo após o parto decorrente do estupro que sofreu. A enfermeira, ao descobrir a história, abraça Precious, emocionada:
A enfermeira Manteiga senta na beira da cama. Tá tentando me abraçar. Não quero isso. Ela encosta a mão no lado da minha cara.
– Lamento muito, Srta. Jones, lamento muitíssimo. – Tento me virar pra longe daquela criatura do Mississipi, mas agora ela tá na cama puxando meu peito e meus ombros pros braços dela. Sinto o cheiro da loção dela e bafo de chiclete tutifruti. Sinto uma bondade quente vindo dela, que nunca senti com mamãe, e começo a chorar. Só um pouquinho, a princípio, depois choro e choro, tudo dói, entre as pernas, o azul-preto no lado da minha cabeça onde mamãe me chutou, mas Manteiga não vê e fica me apertando ali. Tô chorando por causa da neném feia, depois esqueço a neném feia, tô chorando por mim que ninguém nunca me abraçou antes.
Mas esta Lua capricorniana forma trígono com seu próprio dispositor, Saturno. Precious é resistente. Uma sobrevivente. O que poderia tê-la destruído, a deixou mais forte. Sol e Júpiter estão em conjunção, um alento de sorte que podemos também interpretar como capacidade de se superar, aproveitando as oportunidades que a vida dá a todos – até aos mais maltratados.
Será que a vida é uma marreta que me golpeia sem parar?
Vênus em Escorpião, Marte em Libra. Vênus num signo de Marte, Marte num signo de Vênus. Para muitos autores clássicos, este tipo de mútua recepção envolvendo especificamente Vênus e Marte assinala vivências sexuais precoces e, em algum momento da vida, a experimentação da violência mesclada com amor.
Preciosa não é um conto de fadas mas, apesar disso, é uma obra linda. Em alguns momentos, é impossível não lembrar de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector (outra plutoniana). A personagem principal não se torna bela, não encontra um grande amor, e ainda por cima está infectada pelo HIV. Impossível, contudo, não se deixar arrebatar pela notável beleza de uma alma que – a despeito de todas as adversidades – insiste e floresce, tornando-se mais humana na medida em que desenvolve linguagem. “Preciosa” é mais do que o nome de nossa heroína. Preciosa é a linguagem, que nos permite criar sentidos onde aparentemente não há nenhum. A linguagem, magnífica porta que dá passagem à nossa alma humana.
ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ. Tem 26 letra no nosso alfabeto. Cada letra tem um som. Um dia na Praia Litoral.
A chuva cai
Rodas giram
A Srta. Rain diz:
NÃO RIME SEMPRE
Continue andando
Entre no poema
O CORAÇÃO dele
Batendo
Como
Um relógio
Um vírus
Tic
Tac.