A evolução da Astrologia não se deu no vazio, mas acompanhou, desde os primórdios, as condições civilizatórias dos povos que contribuíram para seu desenvolvimento. O lento amadurecer das concepções astrológicas, da Mesopotâmia à Europa Moderna, reflete não apenas as progressivas etapas de avanço da tecnologia, mas também as mudanças no quadro de valores dominantes no universo ideológico. Interagindo permanentemente com outros saberes, a Astrologia deu de si na mesma medida em que recebeu. São de fundo astrológico, por exemplo, os mais antigos esquemas de classificação botânica e boa parte da medicina medieval, baseada na teoria dos humores.
Acresce que, até o final da Idade Média, a Astrologia é um conhecimento restrito à elite, e seu praticante, um consultor especializado a serviço do poder. A imagem idealizada do astrólogo como um ser especial, apartado do jogo social e das concessões ao tirano de plantão, vai por terra a qualquer leitura mais atenta da biografia de nossos antecessores na arte de auscultar estrelas.
Se a Astrologia sobreviveu por tanto tempo foi porque tinha demandas a atender – e equipou-se para atendê-las com razoável precisão. O astrólogo a serviço do rei, ou da autoridade local, moldava sua praxis em função das expectativas do público-alvo: venceremos a guerra? A peste será mortal? A colheita do trigo será farta? E o falar de estrelas era, na verdade, um falar dos homens e para os homens.
Apesar desta finalidade eminentemente mundana, a Astrologia jamais deixou de revestir-se de uma certa sacralidade, na medida em que evidenciava, em seus pressupostos fundamentais, a unidade subjacente na multiplicidade, a interpenetração entre o macrocosmo e o microcosmo e a articulação de toda a realidade conhecida em torno dos eixos espaço-tempo. Paradoxalmente, a própria precariedade do desenvolvimento tecnológico obrigou o homem antigo e medieval a elaborar um sofisticado esquema de reconhecimento dos ciclos da natureza e do cosmos. Respeitar estes ciclos e deles tirar partido era condição sine qua non para tornar viável a atividade econômica e social. Todas as civilizações clássicas estabeleceram sua própria fórmula de pacto com a natureza, adaptada às necessidades locais, sendo a Astrologia o espaço privilegiado da expressão deste pacto sob a forma de discurso estruturado. Ao permitir que a comunidade compreendesse e gerenciasse sua relação com o entorno, a Astrologia – ao mesmo tempo em que se constituía como linguagem do sagrado, investindo de significação o incompreensível – ganhava também uma dimensão operacional, instrumentalizando o diálogo com as forças que era impossível combater.
É neste sentido que o simbolismo astrológico permeia fenômenos culturais tão diversos quanto o manejo das cheias do Nilo, no Antigo Egito, ou a elaboração de um calendário de plantio e colheita na Europa do século XIII.
O tempo do relógio não é o tempo dos ciclos
O pacto com a natureza começa a ser rompido no momento em que a tecnologia atinge um patamar que permite ao homem superar limites até então intransponíveis. A partir do final da Idade Média, novos equipamentos agrícolas, novas técnicas manufatureiras e uma fenomenal ampliação das fronteiras do mundo conhecido, através das Grandes Navegações, abrem caminho para mudanças que lançarão as bases da ciência moderna e culminarão na revolução industrial e na consolidação de uma sociedade urbana. É significativo que tal processo tenha correspondido, no plano ideológico, ao surgimento de uma religião praticamente sem rituais – o protestantismo calvinista – e, no domínio do conhecimento, à concepção de uma visão racionalista e mecanicista que está na base da física newtoniana e da Lei de Lavoisier.
Na segunda metade do século XVII, quando as novas tendências se afirmam com toda a clareza, a Astrologia é retirada dos currículos universitários e relegada ao rol das inúteis superstições medievais.
Foi exatamente o fato de ter sido catapultada para fora do establishment acadêmico que deu à Astrologia – pela primeira vez em séculos – a oportunidade de tornar-se contracultura. Destituído do status de oráculo oficial e jogado ao limbo da obsolescência, o astrólogo dos últimos trezentos anos foi obrigado a perguntar-se seriamente o que fazer com seu saber. Da multiplicidade de respostas a esta questão crucial surgiu a pluralidade de caminhos da Astrologia contemporânea.
Uma parcela da comunidade astrológica jamais se conformou com a nova situação e, já no século XVII, passou a envidar esforços para adequar-se ao novo paradigma, numa tentativa de recuperação do status perdido. Todas as tentativas de incorporação do método das ciências positivas à pesquisa astrológica são herdeiras desta tendência, que teve em Kepler uma espécie de precursor e nos astrólogos franceses seus maiores defensores no século XX. Um típico representante desta linha é o psicólogo e pesquisador francês Michel Gauquelin (1928-1991), autor de um extenso estudo estatístico de correlação entre configurações astrológicas e atividades profissionais.
Outra parcela significativa da comunidade astrológica preferiu manter-se apegada à tradição, assumindo como missão o resgate e preservação dos fundamentos e das técnicas anteriores ao século XVII. Estão nesta linha os estudiosos da Astrologia Helenística e Medieval, os que tentam hoje interpretar cartas como fariam William Lilly ou Guido Bonatti, os que rejeitam a utilização dos planetas trans-saturninos descobertos a partir do século XVIII.
Uma terceira e importante tendência foi aquela que ganhou corpo ao longo do século XIX, em sintonia com a escola romântica que então se afirmava na literatura e nas artes: falamos da Astrologia de fundo místico ou esotérico, fruto da reação ao materialismo crescente da sociedade industrial. Para os defensores desta linha, o interesse pelas filosofias orientais, assim como a revivescência do ocultismo europeu, representavam uma forma de resistência cultural, funcionando como um antídoto à onda avassaladora do materialismo. Esta corrente está representada, entre outros, pelo influente grupo de astrólogos ingleses organizado em torno das ideias teosofistas ou ainda pelos rosacruzes seguidores de Max Heindel e pelos adeptos de Alice Bailey.
Uma quarta tendência consubstancia-se no intercâmbio entre a Astrologia e as ciências do comportamento, notadamente a Psicologia em suas vertentes menos acadêmicas, como as linhas de pesquisa desenvolvidas por Carl Gustav Jung ou por Carl Rogers. Esta tendência ganha força em meados do século XX, especialmente nos Estados Unidos, e veio a influenciar fortemente a Astrologia brasileira.
Todas essas tendências foram contributivas para o desenvolvimento teórico da Astrologia, resultando, nas últimas décadas, em substancial ampliação de seus recursos interpretativos. Contudo, nenhuma delas superou o desafio de restaurar o lugar privilegiado que a velha linguagem das estrelas ocupava no mundo ocidental até a ascensão da sociedade burguesa. E a questão que se coloca hoje é: este objetivo ainda vale a pena?
Se acreditarmos que sim, nosso desafio passará a ser reconquistar o papel de astrólogo do rei, ou dos seus correspondentes modernos: o governante máximo, o líder religioso, o dirigente da estatal, o popstar, o empreendedor bem sucedido. E as perguntas para as quais os poderosos de plantão desejam respostas são as mesmas de todos os séculos: sairei vencedor do campo de batalha / das urnas? Este é um bom momento para invadir o território do meu adversário / tentar obter o controle acionário de meu concorrente? A peste negra dizimará meus exércitos? / epidemia de ebola atingirá meus empregados e reduzirá meus lucros?
Temos, por outro lado, a opção de assumir radicalmente o que na prática já temos sido nos últimos trezentos anos: aqueles que estão de fora, e que não têm nenhum compromisso com as estruturas hegemônicas. Se esta opção nos tira respeitabilidade (“Astrologia não é ciência”), nos dá, em contrapartida, uma inesperada autonomia para fazermos as perguntas que realmente consideramos importantes. Ao expulsar-nos da Academia, Colbert nos isentou de tomarmos parte na construção da sociedade industrial contemporânea, cuja racionalidade utilitária já nos levou a duas guerras mundiais e ao beco sem saída da crise ambiental.
Como ferramenta de reflexão crítica da realidade, a Astrologia tem uma posição privilegiada, permitindo o exercício do pensamento utópico. Basta que não tenhamos medo de usar plenamente nossa liberdade de propor novos paradigmas, como já alertava Beto Guedes na canção dos anos setenta:
(…) O medo de ser livre
para o que der e vier
Livre para sempre estar
onde o justo estiver.O medo de ter
de a todo momento escolher
Com acerto e precisão
a melhor direção.O medo de não arriscar
Esperando que façam por nós
O que é nosso dever:
recusar o poder.