Em 1494, o Tratado de Tordesilhas divide entre Espanha e Portugal as terras do recém-descoberto continente americano. Seis anos depois, Cabral aporta nas costas da Bahia para “descobrir” oficialmente o Brasil. Se os colonizadores da nova terra tivessem cumprido à risca os limites estabelecidos em Tordesilhas, boa parte das regiões Sul, Norte e todo o Centro-Oeste seriam hoje um pedaço da América espanhola.
Foi o interesse econômico nas riquezas que poderiam estar guardadas no interior que fizeram com que expedições oficiais enviadas por ordem da coroa portuguesa (as entradas) e, mais tarde, expedições particulares, promovidas por aventureiros da capitania de São Vicente (as bandeiras) subissem a Serra do Mar e rasgassem as matas virgens.
Antes disso, porém, muita coisa aconteceu. O primeiro europeu a botar os pés na atual região Sul do Brasil não foi português nem espanhol, e sim um normando chamado Binot Paulmier de Gonneville.
Localizada no litoral noroeste da França, a Normandia sempre foi uma província de navegadores. Foi ali que os piratas vikings se estabeleceram no século X. Depois de assimilarem a língua e a cultura francesas, voltaram os olhos para o outro lado do canal da Mancha e invadiram a Inglaterra em 1066. Reis como Ricardo Coração de Leão e João sem Terra, entre outros, foram descendentes desses vikings afrancesados.
No início do século XVI, a Normandia era um importante centro náutico, além de maior polo de produção têxtil da França. Tecidos necessitam de corantes, e a França não tinha onde obtê-los diretamente. Então, a notícia da existência do pau-brasil atiçou as pretensões francesas em relação aos novos territórios descobertos por Portugal.
O francês que tentou imitar Cabral
Binot Paulmier de Gonneville era um burguês com espírito aventureiro e boa dose de audácia. Estava em Lisboa quando Cabral voltou de Calicute, em 1501, carregado de especiarias. A propalada riqueza do Oriente mexeu com sua imaginação, e Binot desenvolveu o projeto de também chegar à Índia.
Depois de obter recursos e contratar 60 marinheiros (alguns deles portugueses), Gonneville partiu do porto normando de Honfleur em 24 de junho de 1503, a bordo do navio L’Espoir (A Esperança). É impossível obtermos a hora precisa desta partida, o que nos obriga a considerar apenas as posições de planetas por signos, sem levar em conta as casas.
Quatro planetas encontram-se em Câncer, formando uma conjunção aberta: Saturno, Sol, Mercúrio e Lua. Esta última encontra-se em oposição a Netuno, em Capricórnio, e é dispositora final de toda a carta.
A conjunção Sol-Saturno, indicando lentidão e atrasos, e a oposição Netuno-Lua, reunindo dois planetas ligados ao sonho, aos excessos de imaginação e à própria água, explicam muito do que aconteceu na viagem. Depois de ficar retido na região das calmarias (área do Atlântico com poucos ventos, temida por todos os marinheiros), L’Espoir enfrentou uma tempestade de dez dias e perdeu-se no oceano.
Após navegar sem rumo por quarenta dias, foi dar com os costados numa ilha deserta no meio do Atlântico, na latitude aproximada da atual cidade de Mar del Plata, na Argentina (mais tarde, esta ilha foi batizada com o nome do navegador português Tristão da Cunha). Não se sabe exatamente por quê, Gonneville decidiu fazer ali uma brusca mudança de rumo, navegando para noroeste. Provavelmente, ao perceber que jamais conseguiria chegar às Índias, resolveu alcançar a nova terra que Cabral descobrira em 1500.
Gonneville descobre Santa Catarina
Passaram-se mais dois meses em alto mar até que a costa foi finalmente avistada: uma região de verdes montanhas, junto à qual L’Espoir ancorou numa ilha, na foz de um rio que Gonneville comparou aos de sua terra natal.
A região é a atual fronteira entre Santa Catarina e Paraná, e tanto o rio quanto a ilha têm hoje o nome de São Francisco do Sul.
O dia foi 5 de janeiro de 1504 (quase seis meses após a partida da França!), e as posições planetárias correspondentes outra vez indicam uma ênfase no eixo Câncer-Capricórnio. Netuno, Sol e Vênus estão em estreita conjunção em Capricórnio, enquanto Júpiter, Marte e Saturno também formam uma fechada conjunção em Câncer. Contudo, os dois blocos planetários não chegam a estar em aspecto direto. Fora isso, a configuração mais forte da carta é a quadratura T envolvendo Lua em Virgem, Urano em Peixes e Plutão em Sagitário.
A expedição que partira da França atrás de uma utopia (Lua-Netuno — o sonho de chegar às Índias) depara-se agora com uma terra nova e desconhecida (Lua-Urano — o choque do inesperado).
Por sorte de Gonneville, aportar por engano, naufragar ou ser desterrado em Santa Catarina sempre foi muito mais um prêmio do que uma punição. Lá viviam os índios Carijó, considerados os mais pacíficos e amigáveis da costa. Desde o primeiro momento, os Carijó consideraram os europeus como seres especiais, talvez anjos vindos diretamente do céu, e manifestaram enorme admiração por aquelas armas de fogo que jamais haviam visto.
Na época da chegada do Espoir, os Carijó (uma tribo do grupo guarani) eram governados por um cacique chamado Arosca, cujo maior projeto era destruir seus velhos inimigos, os índios Tupiniquim do litoral de São Paulo. O astuto Arosca mandou que seus comandados tratassem muito bem os franceses, suprindo-os com “carne de veado, frutas e pinhões”.
Os tripulantes do L’Espoir foram os primeiros europeus a descobrir as delícias culinárias da terra — carne de caça com farinha de pinhão — e muito provavelmente os primeiros a experimentar na prática as diferenças entre as mulheres europeias e as índias guaranis. Tempo para isso não faltou. Gonneville ficaria na ilha de São Francisco do Sul por longos seis meses e, quando decidiu voltar para a Europa com o navio abarrotado de peles e penas, levava dois novos passageiros: o jovem Essomeriq, um garoto de treze anos, filho de Arosca, e seu tutor Namoa.
Normandos, canibais e piratas
A carta solar da partida apresenta, pela terceira vez, uma forte ênfase em Câncer. Desta vez, Sol, Saturno e Júpiter estão em conjunção neste signo, todos em oposição a Netuno em Capricórnio. Marte em Virgem faz oposição a Urano em Peixes. A viagem não poderia ter sido pior: o escorbuto (doença provocada pela carência da vitamina C) dizimou parte da tripulação.
Depois de enfrentar tormentas, L’Espoir ancorou nas proximidades da foz do rio Paraíba, numa praia habitada pelos índios mais perigosos do litoral, os ferozes e antropófagos Goitacá de origem tapuia; em fuga, Gonneville chegou à Bahia, onde reabasteceu o navio e rumou para a travessia do Atlântico. Já bem perto de casa, no canal da Mancha, L’Espoir foi atacado primeiro por um pirata inglês, e em seguida por um pirata da Bretanha (região francesa vizinha à Normandia).
Para escapar com vida, os tripulantes do L’Espoir jogaram o próprio navio contra as pedras e fugiram a nado em direção à costa.
O índio catarinense que virou burguês
Em 20 de maio de 1505, os 28 sobreviventes entram a pé em Honfleur, entre eles o próprio Binot Paulmier de Gonneville e seu novo afilhado, Essomeriq. O navio estava perdido com toda a sua carga, mas Gonneville cumpriu a promessa feita a Arosca de cuidar bem de Essomeriq. Este, convertido ao cristianismo e batizado com o próprio nome do protetor, casou-se com Marie Moulin, filha de Binot Paulmier, e viveu em Honfleur até os 94 anos, deixando vasta descendência.
Um dos netos do príncipe indígena foi o abade Jean Paulmier que, um século e meio depois, em 1658, solicitaria ao papa o envio de missionários ao sul do Brasil.
O que há de comum nas cartas dos três eventos — a partida do Espoir de Honfleur, a chegada em São Francisco do Sul e a partida de Santa Catarina — é a permanente ênfase em Câncer e em aspectos envolvendo Netuno e os fatores mais importantes de qualquer carta, Sol e Lua.
O toque netuniano responde pelo próprio caráter da viagem como uma aventura oceânica docemente enganosa, movida pelo sonho de roubar aos portugueses uma parte da fabulosa riqueza das Índias. Explica também as sucessivas perdas de rumo e as encrencas em que o navio se meteu, enfrentando calmarias, tormentas e, por fim, ataques de piratas.
De Carina a Catarina
Um outro dado digno de atenção é a força de Júpiter na carta da chegada a São Francisco do Sul. Além de ser o único planeta dignificado (está em Câncer, signo de sua exaltação, em aspectos fluentes com Urano e com a Lua, regente de Câncer), Júpiter também apresenta uma conjunção quase exata com a estrela Canopus, da constelação de Carina.
Carina significa a quilha do navio que carregava Jasão e os argonautas em busca do velocino de ouro. Está próxima das constelações de Puppis (proa), Pyxis (bússola) e Vela, formando com estas um conjunto que Ptolomeu identificava sob a denominação geral de Argus (o navio de Jasão). Na Astrologia Clássica, está relacionada a eventos relativos ao mar e à navegação, assim como aos rios e fontes. Dizia-se que poderia significar morte por afogamento, quando em conexão com a casa 8. Segundo Ptolomeu, as principais estrelas deste grupo têm a natureza de Júpiter e Saturno.
A estrela mais brilhante de toda este conjunto de constelações, e a segunda mais brilhante do céu depois de Sirius, é Canopus. Seu nome vem do principal piloto da frota de Menelau, morto quando do retorno da Guerra de Troia, em 1183 a.C. Em homenagem a Canopus, os gregos erigiram uma cidade com o mesmo nome, e foi lá que Ptolomeu fez suas observações do céu.
Sempre associada ao mar, a estrela Canopus era chamada pelos hindus de Agastya, um filho de Varsuna, deusa das águas. Considerava-se que era promissora de imunidade contra doenças e de sentimentos piedosos, transformando o mal em bem. Desde o século VI, é chamada de Estrela de Santa Catarina, pois, ao levantar-se no céu, indicava para os peregrinos gregos e russos a localização do convento dedicado à santa no Sinai. Mas quem foi Santa Catarina? É o que veremos a seguir, no artigo Catarina, uma santa muito atrevida.
Leia também: