O mito marciano segundo James Hillman
ANA OCAMPO:
Li uma palestra, outro dia, de um psicólogo norte-americano (James Hillman) sobre a questão de Marte e as guerras. E ele tira umas conclusões no mínimo surpreendentes e bonitas sobre o mito marciano. Ele pegou vários escritos de veteranos e ex-combatentes de guerra, sobre o momento da batalha, do avançar na terra, do atacar. Quando o mito é psiquicamente constelado, toma (como uma “possessão”) conta daqueles homens.
E sabe o que Hillman deduz? Que o que se apodera daqueles homens, naquele momento, e os faz avançar unidos, contra tudo e todos, não é o ódio ao inimigo, não é a adesão aos “nobres ideais da guerra”, não é um exacerbado patriotismo, enfim. O que os move é um amor que ele chama de “profundo, gentil, altruísta e ardente” que cada soldado tem por seus companheiros, por seu pelotão, por pertencer àquele grupo. Um amor capaz de fazer com que homens semimortos em trincheiras ajudem companheiros menos mortos a sair delas e, quem sabe, sobreviver; que faz com que soldados sem qualquer esperança de saída, vitória, medalha ou sobrevivência, se arrastem entre os companheiros para afastar os que estão mortos, para fazer bandagens em moribundos, dar a última gota de água aos que não vão ser heróis, não vão ganhar a guerra, não vão voltar pra casa, não vão viver – como ele.
A gente se acostumou a pensar em Marte como violento, irascível, irracional, feroz e ferino. Esquecemos que ele é o guerreiro, e que o guerreiro traz dentro de si nobreza, idealismo, franqueza, fidelidade e um profundo amor. Hillman diz que a sociedade norte-americana gasta orçamentos cada vez mais dantescos na área militar, para impor ao mundo uma paz violenta, porque provavelmente é uma sociedade violenta, mas não é guerreira. Achei essa distinção fundamental. O amor de Marte não é o de Afrodite – esses são polarizados. O amor de Marte é difícil de enxergar, difícil de entender, nem sempre fácil de aceitar. Mas é amor, é profundo, nobre, sincero. É fiel.
ZINI:
Bom… Estive pensando no que você relatou sobre as conclusões de J. Hillman. Esses homens, na hora “H” mesmo, de frente pra morte, numa situação-limite, estão MUITO fragilizados. Pra começar, nem foram eles que começaram a guerra, nem traçaram as estratégias ou táticas – como sempre…
ANA OCAMPO:
Estão fragilizados, sim. Mas a hora “H” que ele descreve é a da luta, não a da morte. Nesse momento, mais que fragilidade, talvez exista o corolário de Marte que já conhecemos: euforia e excitação com desejo de matar, aniquilar, destruir. Ele não nega isso. Só diz que não é só isso. Isso é o óbvio, o que facilmente vemos e combatemos ideologicamente.
ZINI:
Mas lutar implica a possibilidade de morrer; acho meio inseparáveis essas ideias, não achas?
ANA OCAMPO:
Acho inseparáveis, mas não sei se num campo de batalha realmente se acredita que se pode morrer: isso é um pensamento racional. Talvez ali seja crucial, inevitável, acreditar que nós venceremos, e os inimigos é que morrerão. Mas, enfim, acho que há fragilidade, medo, e desespero no meio dessa “força” ou euforia, sim. Tudo muito misturado, obnubilado. Tem um Marte que se chama caecus, o cego, não tem?
O amor e o medo profundo
ZINI:
Desse Marte cego eu não sei… Ana, eu nunca estive numa guerra, mas morando no Rio tem horas em que eu acho que morrer é tão fácil… Pensa: um cara cheio de pó, babando de doido, encosta uma pistola na tua cabeça e diz pra você passar o relógio pra ele. É uma situação em que temos pontos diferentes e comuns, tendo em vista uma batalha: no assalto você está desarmado, à mercê do bandido; na guerra, mesmo estando armado, em grupo, você está sempre nas mãos do imprevisto, de um tiro por trás, de uma bomba que cai do céu, de pisar numa mina… a Morte está em todos os seis lados – e acho, é claro, que a tendência é tentar acreditar mesmo que não se vai morrer, mas, talvez, exatamente por estar tão em contato com Ela, a pessoa sinta-se mais viva e em condições de despertar todo o seu potencial de sobrevivência, de ativar a marciana “síndrome do luta-ou-fuga”.
ANA OCAMPO:
Certo, também acho que sim. Acho que acontece em toda situação de medo profundo, de pânico diante da morte. Mas as pessoas reagem de forma muito diferente diante disso: alguns com ódio, raiva, rancor; outros com um sentimento profundo de amor à vida e ao que ela pode dar. Você vê isso em pessoas que recebem um diagnóstico de câncer, por exemplo. Ou de Aids, ou qualquer doença fatal. Há quem queira meio mundo morto junto com ele. Há quem veja a vida com cores que nunca conseguiu ver antes.
Lembrei da cena de Blade Runner – O exterminador do futuro em que o último replicante vai morrer e, ao invés de soltar o exterminador para a morte, salva a vida dele. O exterminador pergunta por que e ele responde: “Não sei, talvez nesse momento ame tanto a vida, que ame qualquer vida, mesmo a sua.” E ele estava com muita raiva! Com muita dor.
O que quero dizer é que, mesmo em situações de medo e raiva imensos, há também a possibilidade de que um tipo de amor se constele aí. E raramente olhamos pra ele. Pra essa possibilidade.
Não sei se conta para um cara cheio de pó e babando na gente, porque esse está vivendo o aspecto do tudo ou nada mesmo. A vida é só hoje, amanhã pode ser tarde demais. Vale pra todo mundo, mas depende de como se faz. O que a gente vê é que cada vez mais gente faz do pior modo possível.
A crua beleza dos guerreiros
Hillman chama a atenção também para o que denomina “aspecto venusiano em Marte”, dentro do mito. Uma espécie de “ritual estético”, físico, na retórica e apetrechos militares (roupas, cerimônias, vários feitios de armas, condecorações, “dança dos guerreiros” – com seus giros de pés, continências, espinha ereta etc.). E diz que Marte constela também um sentimento profundo de amor e união entre os que combatem juntos, e que isso dá mais força a todos, mesmo que seja para matar. Ele diz que esse amor é muitas vezes pela guerra. Não sei se é um amor que chamaríamos de “bonito” (por padrões venusianos), ele é difícil de aceitar, de entender. Mas está lá, misturado, encoberto, pano de fundo. Hillman acha que, se não o olharmos bem, talvez nunca consigamos, por exemplo, lidar de verdade com a questão do desarmamento no mundo.
ZINI:
Interessante, pois muitos realmente “amam” as armas, a honra militar, a pompa e rituais, o rufar dos tambores. Acho que existem os que efetivamente “veem” essa beleza (Vênus) em Marte – como a semente Yin latente em Yang, e vice-versa. Quando pensei nisso em termos de polaridade, clareou.
ANA OCAMPO:
Hillman tenta evitar um pouco essa polaridade. Por exemplo: Afrodite x Marte; “faça amor, não faça a guerra” etc. Ele acha que a beleza em Marte é diferente da de Afrodite. Mais física, talvez? Ele evita a polarização. Mas também acho difícil de ver sem polarizar.
ZINI:
Eu mencionei polaridade – mas isso implica complementaridade também, do tipo: “faça a guerra com amor” e o “amor com guerra”… um sentido quase sexual. Isso não excluindo o que você colocou da beleza marciana: física, heróica, suada, sangrenta, muscular, impositiva? – complementando a maciez, a suavidade, a receptividade, o equilíbrio e o perfumado frescor venusiano?
ANA OCAMPO:
Acho que é isso que ele quer quebrar, a idéia de que todo amor cabe a Vênus e toda a violência e brutalidade cabe a Marte. Afrodite podia ser supervingativa, ciumenta, cruel. Marte podia ser totalmente intempestivo sem intenções cruéis. Neste sentido é que entendo a idéia de não polarizar, mas de enxergar todos os aspectos nas duas potências. Algo como: também podemos ser violentos nas relações de amor e amorosos na nossa agressividade.
Mas é mesmo uma história longa, complicada. Acho que num ponto ele tem razão: se não percebermos que há algo que estamos eliminando das características desses Deuses, talvez não saiamos do impasse de querer por fim às guerras através de cada vez mais guerras e mais violentas. Não faço qualquer apologia às guerras e à matança desenfreada, por qualquer motivo que seja. Mas se a gente parar pra pensar, a cultura humana foi criada através de invasões, dominações, barbárie. Há algo aí que não entendemos bem, não captamos, preferimos não ver – e isso é que me intriga. Se a gente entendesse melhor, criaria um precedente pra dispensar as guerras? É uma pergunta mesmo…
ZINI:
Ainda comentando as conclusões de Hillman: pode até ser que outros motivos (patriotismo etc.) também contribuam em alguns casos para esse modo de comportamento e sentimento.
ANA OCAMPO:
Sem dúvida, também acho que isso está presente. Talvez, no que disse antes, tenha parecido que só esse amor responde pela ação do grupo. Não é isso. Esse amor é o que talvez alimente a força no momento em que a batalha é deflagrada. Não invalida outros sentimentos, mas talvez, nesse momento exato, o patriotismo, o governo, os ideais da guerra etc. não sejam realmente o que psiquicamente toma conta dos soldados. O que lhes dá força, entende?
ZINI:
Não seria a constatação de fragilidade diante do imponderável um fator a despertar uma espécie de egoísmo ecológico? Ou seja: “Eu ajudo todos, todos me ajudam, a gente sai dessa. Sozinho não posso.” Não é necessariamente amor, mas um tipo particular de “espírito de corpo” vestindo um medo mais profundo. Seria possível?
Só vivemos o aspecto insano de Marte
ANA OCAMPO:
Acho que é possível, mas é difícil de saber. Pelo relato que Hillman transcreve, não me pareceu isso, ou só isso. Como a maioria de nós nunca esteve (e, espero, nunca estará) numa situação-limite dessas, são experiências emocionalmente incompreensíveis pra nós. Mas acho que vivemos, todos, em situações menos dramáticas, cotidianas, aspectos do mesmo sentimento. Não usamos a energia de Marte sabiamente, amorosamente, é uma realidade. Cada vez as pessoas se armam mais, no trânsito, nas casas, na vida, todos contra todos, numa banalização total e gratuita da violência. Vivemos mais os aspectos irracionais, destrutivos, que os amorosos de Marte. Mas essa idéia de uma espécie de amor em Marte me tocou, me disse algo.
ZINI:
Pelo que você coloca, só estamos vivendo uma das polaridades, ou ainda, vivendo o pior aspecto de Marte…
ANA OCAMPO:
Eu acho que sim, sem dúvida. Mas não sei se é uma coisa de agora, ou foi sempre assim. Dos cristãos aos leões, da Santa Inquisição, das guerras e matanças coletivas, do holocausto nazista aos miseráveis de Uganda, em que é que mudamos muito na nossa concepção de Marte? Nós o achamos insano, violento, destruidor, e assim o vivemos. Porque assim o nominamos? E se víssemos outras coisas nele, de verdade? Mudaríamos isso? Eu acho que sim.
De qualquer modo, relatos de afeto e cuidado humano em condições tão extremas de dor e desesperança também me fizeram pensar que a solidariedade humana é algo que exercitamos pouco na vida, ainda. E ela não implica passividade. Ao contrário, para mim, “fazer o bem”, ser solidário, é uma atitude positiva, uma decisão, um ato de vontade consciente, que tem que envolver coragem (e constância), e nesse sentido também é marciana. E tem que envolver uma grande capacidade de amar. E de amar muito. O amor tem seus mistérios… talvez não só os de Vênus, os de Marte também. Quem pra decifrar, né?
Nesta série de cinco artigos, a importância e o significado de Marte são passados a limpo a partir de diversas abordagens. Publicada originalmente por Constelar em março de 1999, registra um debate que se estendeu de 2 a 7 de fevereiro de 1997, através da lista de discussão Solstix. Foi o primeiro grande debate astrológico da Internet brasileira – e um dos melhores.
Leia a sequência inteira:
O amor de Marte diante da morte – Ana Ocampo e Marcus Vannuzini
Da virilidade ao projeto de vida – Valdenir Benedetti
A ereção eterna do tutor de Marte – Barbara Abramo
A guerra do desejo e a hora do sexo – Barbara Abramo e Valdenir Benedetti
O que vale a pena ler sobre mitologia – Barbara Abramo
Marta Bellini diz
Sublime.