Vivemos, em 2015, tempos de quadratura Saturno-Netuno. Como já escrevemos no artigo Da astúcia do Chapolin ao desamparo Saturno-Netuno, este trânsito pode ter efeito tremendamente depressivo, trazendo um sentimento de pessimismo e menos valia. Saturno e Netuno juntos criam uma interação “sem pique”, onde falta o impulso decisivo para enfrentar e reverter situações críticas. São comuns sentimentos de desamparo, desânimo e descrença na existência de saídas. Para exemplificar, consideremos algumas situações relacionadas a esta configuração astrológica: um filme, um conto infantil e um sequestro político nada fictício.
O Labirinto do Fauno, coprodução mexicano-espanhola, tem todos os elementos de um trânsito tenso Saturno-Netuno. A estreia comercial na Espanha aconteceu em 11 de novembro de 2006, com um mapa que enfatiza duas oposições: Saturno-Netuno, no eixo Leão-Aquário, e Lua-Plutão, no eixo Gêmeos-Sagitário. Adicionalmente, Netuno está envolvido num Grande Trígono de Ar com quase todos os planetas pessoais.
Nos tempos difíceis da Guerra Civil Espanhola, Ofélia é a filha de uma mulher sofrida e grávida que, em busca de um pouco de segurança e proteção (o típico tema Saturno-Netuno), admite casar-se com um capitão das tropas fascistas do Generalíssimo Franco, empenhado no combate aos guerrilheiros republicanos. O capitão é um homem cruel, sádico, cuja relação com Ofélia e a mãe se dá em bases intimidatórias (Plutão oposto à Lua). Cercada pelo ambiente hostil, Ofélia começa a receber visitas de seres mágicos, que a introduzem num reino paralelo. Ali encontra um fauno que revela que ela tem uma missão e exige o cumprimento de algumas tarefas, necessárias para salvar a vida da mãe – ameaçada por uma gravidez de alto risco – e restabelecer a ordem num mundo conturbado. Ofélia inicia então uma série de aventuras, transitando entre dois mundos igualmente perigosos. A história culmina com a morte da menina, que se sacrifica voluntariamente para salvar a vida do irmão recém-nascido. Enquanto se esvai em sangue no plano da realidade, Ofélia é acolhida com carinho no reino paralelo, numa cena propositalmente ambígua: aquele outro mundo habitado por faunos e seres mágicos existiria mesmo? Ou tudo não passa de um mecanismo de compensação criado pela imaginação delirante da menina?
O tom do Labirinto do Fauno é decididamente netuniano: a linha divisória entre realidade e magia é tênue, quase inexistente. Quanto mais presentes os limites da dura realidade (Saturno), mais viva e atuante é a outra dimensão (Netuno).
Contudo, o aspecto mais Saturno-Netuno do filme está no martírio da menina, única porta para transcender o sofrimento e encontrar acolhimento real.
Ofélia lembra outro personagem de ficção, criado mais de um século antes. Trata-se da menina miserável que vendia fósforos pelas ruas geladas de Copenhague, do conto A Pequena Vendedora de Fósforos, de Hans Christian Andersen. Publicado em dezembro de 1845, o conto fez sucesso em 1846, mesmo ano de uma conjunção Saturno-Netuno em Aquário. A menininha está faminta e não tem roupas adequadas para enfrentar o frio. É noite de Ano Novo, e ninguém parece interessada em comprar fósforos. Não tendo consegudo vender nada, ela tem medo de voltar para casa e ser espancada pelo padrasto. Sem ter para onde ir, ela se aninha junto a um muro e acende, sucessivamente, os três únicos fósforos que lhe restam. Junto com um pouco de calor, ela tem também visões luminosas envolvendo tudo aquilo que lhe falta: um lar, comida, uma família, uma festa de Natal. Ao acender o último fósforo, sua falecida avó – única pessoa que a tratara com carinho – surge bela e luminosa para buscá-la. A menina parte feliz, e no dia seguinte os transeuntes encontram apenas seu cadáver enregelado na rua.
Mais uma vez vemos aqui elementos recorrentes das tensões Saturno-Netuno: o ambiente hostil, a letargia do frio (uma metáfora da solidão e da ausência de perspectivas), a evasão do sofrimento pela fantasia e a redenção final através da morte. Um tema aparentemente antiquado, mas também terrivelmente atual: em tempos de quadraturas Urano-Plutão e Netuno-Saturno, o que pensar das vítimas do autodenominado Estado Islâmico, o mais cruel grupo terrorista dos muitos que continuam perturbando a paz do planeta?
Em fevereiro de 2015, a vítima que mais chamou a atenção do mundo foi a americana Kayla Jean Mueller, uma trabalhadora voluntária de organizações humanitárias, mantida como refém do Estado Islâmico na Síria desde agosto de 2013. Kayla não morreu decapitada, como muitos outros reféns, mas aparentemente num bombardeio aéreo às posições rebeldes. Há alguns meses, os sequestradores permitiram que uma de suas cartas chegasse à família, nos Estados Unidos:
Cheguei a um ponto em minha experiência em que, em todos os sentidos do mundo, me rendi ao nosso criador porque literalmente não havia mais ninguém… e com Deus e com as orações de vocês, me senti ternamente embalada em queda livre. Fui mostrada à escuridão, à luz e aprendi que, mesmo na prisão, uma pessoa pode ser livre.
Se ‘sofri’ em toda essa experiência, foi só ao saber quanto sofrimento fiz vocês passarem; nunca vou pedir para me perdoarem, já que não mereço perdão.
Unem-se nestas palavras a experiência radical do trânsito de Urano-Plutão (“em queda livre”, “fui mostrada à escuridão”) ao sentimento de não merecimento de Saturno-Netuno, cuja única possibilidade de redenção vem pelo sacrifício (“nunca vou pedir para me perdoarem, já que não mereço perdão”). Na angústia mais absoluta, a única salvação vem da entrega total a um princípio superior e invisível (Netuno).
A brutalidade dos opressores e o martírio de suas vítimas são as duas faces dos trânsitos que dominam 2015, e cujas manifestações em ciclos anteriores continuam tão vivas na História e na cultura. Ocorre que a Astrologia não é determinista. Trânsitos tensos de planetas geracionais não deveriam ser, necessariamente, marcadores de épocas de sofrimento. Se ainda o são, é porque segmentos significativos da coletividade humana ainda têm-se mostrado refratários às lições que esses trânsitos encerram. São várias, e algumas delas encontram-se discutidas no artigo O amor em tempos de Saturno & Netuno.
Sonia diz
Excelente colocações. Amo Astrologia nesse Nível de Conhecimento.
Gracias.