No mundo contemporâneo, há a construção de um novo conceito de cultura que é interdisciplinar. Tal conceito teórico justifica a análise de uma obra cinematográfica em relação ao mundo dos símbolos astrológicos. Porém, já em nossa vivência prática podemos encontrar sinais dessa interdisciplinaridade. Onde está a limitação entre a lua que habita o imaginário de todos nós e a conceituação astrológica? Difícil resposta.
É só deixarmos nossos olhos se alongarem no horizonte da cultura e poderemos enxergar tais arranjos. Dessa forma, observei fortes sinais do símbolo astrológico da lua no filme argentino Os segredos dos seus olhos. Andei pelas informações teóricas da astrologia e pelas cenas do filme e descobri uma rede imensa de metáforas e significados. Então, depois de elaborar os aspectos do filme (I) e os da lua (II), passaremos às metáforas que se organizaram a partir deles (III).
I – O filme
O filme argentino O segredo dos seus olhos tem direção de Juan José Campanella e sua trama fala sobre um crime sem solução há 25 anos, que é revisto pela personagem masculina e que dá origem a uma recolocação de decisões pessoais feitas no passado. A personagem Benjamín Espósito (Ricardo Darín), sentindo-se motivado a escrever um livro sobre suas memórias, busca Irene Menéndez Hastings (Soledad Villamil), que era sua superior e companheira nesse caso. Tal encontro trará lembranças que o farão repensar seu presente e futuro.
A narrativa mistura amor, assassinato e uma dose de humor. Ao lado desses elementos, assistimos a um panorama de parte da história argentina, em que os meandros da justiça e a época da última ditadura no país são tratados de forma econômica e sem demagogia. Um excelente trabalho de fotografia, com planos de profundidade e interessantes sequências que agradam pelo componente estético agregado. Tudo isso valeu-lhe o prêmio de melhor filme estrangeiro no Oscar de 2010.
II – A lua
A lua é primordialmente representativa do tempo. É a partir da observação astronômica do movimento lunar (e solar) que o ser humano pôde construir suas primeiras e rudimentares concepções cosmogônicas da vida. Em paralelo às aplicações de vida prática, a observação de tais movimentos passou também a ter significados, seja nas suas fases, especialmente na lua cheia ou nova, seja nos eclipses, em que a relação com o sol fica mais explícita.
Por ser o mais rápido dos corpos planetários, é o mais individual e simboliza o lado emocional de nossa natureza e a necessidade de dependência e de segurança.
Alexander Ruperti indica a lua como representativa da “maneira repetida, e quase automática, pela qual as pessoas se ajustam aos desafios e impactos do ambiente na sua vida cotidiana. /…/[Ela mostra também] Os compromissos que o indivíduo está disposto a assumir para poder tirar proveito das situações que tem que enfrentar para poder manter a felicidade e o conforto do seu corpo e das suas emoções.” (1986, p.103)
Podemos entender, como decorrência natural, que essas formas de comportamentos que nos dão conforto permaneçam e se fixem como vícios, chegando “a ser absolutamente compulsivas” (RUPERTI, 1986, p.103).
Também será natural que a pessoa se rebele “automaticamente, contra qualquer coisa que pareça ser contrária aos seus padrões de hábito” (RUPERTI, 1986, p.103-4). Então, acontecimentos do passado serão fixados, não havendo espaço para “tentativas de enfrentar a situação presente de uma maneira nova e criativa” (RUPERTI, 1986, p.104). A permanência no conforto, no vício, no comportamento automático é mais fácil do que elaborar algo diferente e renovador.
Em síntese, ela é o símbolo dos ritmos biológicos, do tempo que passa e também dos aspectos de recorrência, frequência e repetição. Ainda que privada de luz própria e, por isso mesmo, sendo representação de dependência, ela tem importante presença em nossas vidas, assim como o sol, com quem tem uma relação astronômica que é marcada por fases sucessivas e regulares. Embora nossa análise tenha por intenção a lua, chegaremos inexoravelmente à representação simbólica do sol.
III- Ressonâncias e metáforas
O olhar de um homem, repetido em algumas fotos, poderá ser o indício de uma intenção criminosa e é a hipótese que poderá desvendar um crime. Este é o primeiro indício de possíveis relações entre o filme e os significados da lua, pois os olhos contêm nossos segredos.
Nós só podemos visualizar uma de suas faces, e ainda assim na forma de fases que se sucedem em contínua mudança. Ou seja, ela sempre esconde algo de nós, podendo também ser observada como um símbolo do inconsciente na psicologia profunda. Os olhos seriam os mensageiros desses significados internos em nossa natureza, podendo revelar intenções, desejos, enfim, segredos. A desconfiança atenta de Benjamin e a cobiça dos olhos de Gomes são as chaves para entrar no mundo lunar de ambos.
Mas, ao lado desse olhar externo, observamos, em meio aos eventos da narrativa, o olhar para si mesmo, que indica quem somos ou fomos um dia. Irene viu a si mesma e, numa confissão a respeito dos efeitos da passagem dos vinte e cinco anos em si mesma, diz: Não me reconheço. Eu era outra e era jovem. Outras conversas entre ela e Benjamin realinham o momento presente dos dois e o tempo que passou em relação ao passado comum.
E entre esses dois momentos do tempo – o presente e o passado -, nessa passagem que se chama vida, pode-se apreender algum sentido? Como se faz para viver uma vida plena?, se pergunta Benjamin, cuja vida é cheia de nada. E enquanto ele se pergunta – Vida plena ou cheia de nada?- , seu amigo já sabe a resposta. Sandoval, o amigo fiel, diz: a paixão preenche a vida. Beber no bar até não saber voltar para casa é uma paixão que dá sentido a sua vida. E Benjamin se surpreende, mas escuta seus argumentos: Muda-se tudo: religião, deus, sapato. Não se pode mudar de paixão.
Não se trata da paixão proveniente de um relacionamento amoroso ou afetivo. Mas de um tipo de apego a aspectos da vida, que são confortáveis e pela permanência dão segurança. Beber faz sentido para Sandoval, que constrói esse argumento (lunar) para validar tal comportamento. Ele já se fez perguntas e sucumbiu à resposta: é a paixão que dá sentido á vida – ainda que seja a bebida. Apego, repetição do conforto, comodismo e sensação de preenchimento pelo conhecido?
Pouco importa o nome para essa vivência lunar, pois, é um sentido, uma paixão que oferece valor e faz a passagem do tempo ser mais fácil. Não cabe contra esse argumento a afirmativa de Irene sobre o perigo de se ter mil passados e nenhum futuro, pois, quem precisa do futuro se encontra tanta paixão e conforto? Mas ainda podemos nos perguntar: Que resistência é essa do passado que preenche tão definitivamente as necessidades da pessoa e bloqueia uma visão de futuro?
É o passado que permanece como uma escravidão, como um fantasma, e nos faz recordar do tempo pelo exercício da memória. Esse passado fixado submete as personagens Benjamin e Morales, em uma vivência tipicamente lunar.
Essa memória desperta em Benjamin a ideia de escrever um romance sobre o caso de 25 anos atrás. Há a fixação de uma memória e uma significação que não é clara para ele. A volta ao passado é um indício de paixão em Benjamin, como aquela que Sandoval define.
Quando confessa a Irene sua dificuldade de escrever, ela lhe dá uma alternativa: Comece por uma imagem. Mas, é a imagem de Irene jovem chegando ao novo lugar de trabalho que lhe acorre à visualização da memória. Essa talvez seja a prova de que ele quer escrever a sua própria história, ainda que a de Morales esteja sendo uma referência.
Acompanhando essa ligação entre Benjamin e Morales, podemos entender que a ligação entre eles vai além da questão judicial mal resolvida. Benjamin vive um tipo de reflexo; tem sua vida enroscada na vida de Morales. Nunca vi amor tão grande, se surpreende Benjamin. Na verdade, grande é o amor que ele sente por Irene e que foi deixando para trás em oportunidades perdidas.
Na verdade, há um espelhamento de Benjamin na história de Morales. Ele admira o jovem por sua fidelidade e compromisso, pelo tamanho de seu amor. Como a própria lua vivendo por espelhamento da luz do sol, ele só percebe a necessidade de viver sua história de amor ao entrar em contato com a resolução da vida de Morales.
Além desse espelhamento, também observamos a circularidade, outro fator lunar por excelência. Há a marcação de um ciclo que se fecha quando Benjamin corrige o papel escrito certo dia ao acordar: de TEMO a TEAMO. Há algo que se realiza nesse momento. Viu a si mesmo por anos e anos na mesma ladainha? Viu a sina de Morales marcada pela obsessão de um objetivo? Terá percebido que planejou uma história sem o amor de Irene, mesmo que de forma não consciente?
Talvez ele tenha se libertado dos padrões repetidos ao longo do tempo, se afastando desse hábito fixado. Consegue reescrever o papel lembrete, age na situação, quebrando a rotina de longos vinte e cinco anos. Ele decidiu e, enfim, caminhou do lado lunar ao solar.
O diálogo final entre ele e Irene marca um encontro do qual ficamos de fora, como espectadores, pois a porta se fecha na cara do espectador. Essa porta, inúmeras vezes marcou a diferença entre o externo e o interno. Nada mais íntimo e relativo a nossa privacidade do que a lua. A metáfora da porta se repete, abrindo-se e fechando-se, inúmeras vezes, em situações variadas, sempre com a mesma significação de intimidade necessária (e lunar) a algum encontro.
IV – Ainda algumas Considerações
Podemos perceber a importância da presença da experiência lunar nesse filme, após tantos índices: os olhos e seus segredos, a intimidade, o tempo que passa, a paixão, a permanência do passado, o exercício da memória, a circularidade e o espelhamento entre experiências de vida.
Porém, há um sinal de sua representatividade que só surge quando se estabelece a atitude solar da personagem. Após o resgate do passado – ele é inexorável-, a personagem optou por fazer um novo momento presente. Esta é uma decisão solar, em que a coragem interveio e a identidade se marcou firmemente, como se ele tivesse optado finalmente pela vivência de seu sol. Não quis mais permanecer nos escuros desvãos do passado e de comportamentos de temor e de insegurança.
Com Alexander Ruperti, sabemos que Dane Rudhyar, em 1939, observou como “o sol e a lua ocupam o mesmo espaço na percepção consciente do homem”, sendo tal fato sinal de um “equilíbrio exato entre natureza solar mais elevada do homem e sua natureza lunar mais inferior – o Eu que irradia luz e a natureza psíquica do homem, que reflete a luz são iguais em significado e tamanho no ser total do homem.” (1986, p.77)
Viver somente o lado lunar pode não ter sido o melhor para Sandoval nem para Morales. Benjamin pôde fazer uma opção diferente, fechando um grande ciclo de experiência lunar e solar. Ele realizou a promessa de seu destino que era amar Irene, superando o temor de se lançar na aventura de amar e de ser amado.
Que a porta se mantenha fechada diante de nós.
Bibliografia
CUNNINGHAM, Donna. Being a lunar type in a solar world. New York: Weiser, 1990.
RUDHYAR, Dane. Tríptico Astrológico. Os dons do espírito, a travessia, a estrada iluminada. Trad. Joaquim Palacios. São Paulo: Editora Pensamento, 1987.
RUPERTI, Alexander. Ciclos de evolução. Modelos planetários de desenvolvimento. SP: Pensamento, 1986.