O seriado El Chavo Del Ocho (Chaves, no Brasil) sempre se caracterizou pela reiterada referência a dois números. Analisá-los ajuda a completar o quadro que traçamos nos artigos Da astúcia do Chapolin ao desamparo Saturno-Netuno (sobre o mapa de Roberto Gomez Bolaños, criador da série) e Chaves, uma vila de muitos planetas (sobre as configurações relacionadas a cada personagem). Ajuda também a confirmar que o sucesso da série guarda relação com sua involuntária mas incontestável coerência com o simbolismo astrológico.
O nome do programa, em espanhol, era El Chavo Del Ocho (o Garoto do Oito). Por quê? Simples: antes de migrar para a a rede de TV Televisa, o seriado teve uma fase inicial no extinto canal 8 mexicano, sendo o nome, portanto, uma referência ao canal. Para evitar uma alteração de nome, manteve-se a denominação El Chavo Del Ocho. O personagem Chaves justifica o título do programa afirmando sem muita convicção que mora no número 8 da vila, mas jamais ninguém o viu na casa nem ela chegou a ser mostrada em qualquer episódio. A verdade é que Chaves é um menino de rua.
O número 8 tem uma clara conotação astrológica, lembrando a oitava casa e o signo que lhe corresponde, Escorpião. A casa 8 diz respeito, entre outros significados, a bens compartilhados e aos tributos que é necessário pagar para sua utilização. Impostos e taxas podem ser atribuídos, genericamente, a esta casa, assim como, num sentido mais amplo, também os aluguéis, condomínios e outras formas de contraprestação financeira decorrentes de contratos. Como os personagens de Chaves provêm das camadas mais pobres da população, cumprir contratos sempre será um problema, o que traz à tona um dos assuntos mais recorrentes do seriado: a inadimplência. Cabe lembrar que a atmosfera e a temática do Chavo Del Ocho estão fortemente vinculadas à oposição Saturno-Netuno do mapa de estreia, em junho de 1971. É um aspecto frio e melancólico, que fala de escassez e da necessidade de lançar mão de estratégias de sobrevivência. Sob Saturno-Netuno, o mesmo ciclo que viu nascer o movimento de independência dos países latino-americanos, dever e não ter como pagar é uma constante. O México, assim como o Brasil, já nasceu endividado. Nada mais natural que os personagens mais entranhadamente latinos que o mundo já viu também tenham uma triste experiência de casa 8, sempre a fugir dos credores.
Por coincidência, o oito é também a soma dos dois algarismos da casa de Dona Clotilde, a Bruxa do 71. Dona Clotilde, como todos sabem, sonha em casar-se com Seu Madruga, numa soma alquímica…
Aqui, um parêntesis: Ramón Valdés, ator que deu vida ao Seu Madruga, tinha um mapa natal sem qualquer fator no elemento Fogo, além de Netuno em Leão. Nascido em 2 de setembro de 1923, com um Grande Trígono em Água e uma tripla conjunção de Marte, Vênus e Sol em Virgem, Valdés era um tipo contido e sensível, discreto, pouco dado a exageros. Parece um mapa bastante adequado para alguém que precisava dar vida ao esquálido e anêmico Seu Madruga, um tipo que, saturninamente, parece estar sempre economizando sua (pouca) energia.
Quatorze meses de aluguel
Outra referência numérica famosa no programa são os quatorze meses de aluguel que Seu Madruga deve ao Seu Barriga. Ora, 14 é metade de 28, correspondendo, grosso modo, a um hemiciclo de Saturno, ou seja, ao movimento de Saturno por metade do zodíaco, cumprido em quatorze anos. A dívida de 14 meses de aluguel explicita, pois, o simbolismo de aprisionamento a uma situação saturnina, incômoda mas inevitável.
14 é, finalmente, o número da casa de Dona Florinda, o que cria um inesperado vínculo entre ela e o indesejado vizinho Seu Madruga. Dona Florinda carrega também, malgrado todas as negativas, a marca da “gentalha”.
Personagens de ficção são atemporais. Assim, seu Madruga está condenado a dever 14 meses de aluguel para todo o sempre, como se fosse um Prometeu sem glória. Contudo, alguns brasileiros resolveram brincar com a imutabilidade do mito. Em abril de 2010, o ator Edgar Vivar, intérprete do Seu Barriga, veio ao Brasil participar de um evento chamado Festa da Boa Vizinhança. Já no palco, foi surpreendido por uma inesperada aparição de uma troupe de humoristas, todos jovens que certamente passaram a infância assistindo Chaves. Os humoristas traziam um “clone” de Seu Madruga e entregaram a Seu Barriga um gigantesco cheque no valor dos 14 meses de aluguel. Era a quitação simbólica de uma dívida de mais de 40 anos. A brincadeira terminou com o ator Edgar Vivar em prantos, enquanto a plateia em coro gritava: “Seu Barriga, eu te amo!”
Cenas como essa mostram que o espelho ainda não se quebrou. Apesar de todos os avanços recentes, a alma da América Latina continua vibrando no diapasão de Saturno-Netuno. E aqui cabe lembrar um componente que, ausente da vida ficcional do autossuficiente James Bond — também criado sob uma conjunção Saturno-Netuno —, sobra nas relações entre os moradores da vila de Chaves: a solidariedade. Por mais que às vezes ajam de forma mesquinha ou competitiva, os personagens da vila estão sempre dispostos a compartilhar. Essa tagarelice permanente, essa interferência na vida alheia e essa ausência de fronteiras entre o público e o privado são traços eminentemente culturais. Ou, como diria o Seu Madruga: “As pessoas boas devem amar seus inimigos.” Afinal, somos latinos. Saturno e Netuno, entre nós, jamais significarão solidão absoluta.