Era uma vez, em um reino não tão distante, uma rainha chamada Astrologia, que conhecia o passado e o futuro, e a quem os súditos acorriam em busca de orientação. A rainha contava a cada um a história de sua vida, tudo que já havia se passado e aquilo que ainda haveria de se passar, e todos voltavam satisfeitos para suas casas. Um dia, apareceu no reino um mago chamado Livre-arbítrio que lançou um feitiço na rainha, obscurecendo sua visão, distraindo sua memória, tartamudeando sua voz. Daquele dia em diante, muitos súditos deixaram de consultar sua rainha, porque ela não mais parecia saber de tudo e eles não confiavam mais em sua orientação. Outros ainda recorriam à sua majestade, mas conformados de que só saberiam muito pouco a respeito de suas próprias vidas: o motivo por estarem como estavam e uma ou outra sugestão de alguma oportunidade que poderiam aproveitar num futuro muito breve. E até hoje a rainha permanece enfeitiçada, esperando alguma bondosa alma que chegue ao reino trazendo um contrafeitiço.
É, já se foi o tempo em que os astrólogos, em sua maioria, tinham a capacidade de fazer como os dois velhos astrólogos de Nechung, no Tibete, a respeito do menino Lobsang Rampa:
Que o rapazinho de sete anos devia entrar para um lamastério, depois de dar provas de grande resistência, e que devia ser ali treinado como sacerdote-cirurgião. Que havia de sofrer grandes provações, deixar a pátria e visitar terras estranhas. Que havia de perder todos os seus bens e recomeçaria a vida novamente até que acabaria por ser bem-sucedido. (Livro A Terceira Visão, de Lobsang Rampa.)
Que astrólogo, hoje em dia, arriscaria prognóstico semelhante numa grande cidade do Ocidente? Ou a vida do indivíduo se tornou por demais imprevisível, liberta de seus determinantes biológicos e culturais, ou nenhum cliente aceita mais ter sua vida predefinida.
O fato é que os clientes ficaram sem a história de sua própria vida, a qual se supõe que eles mesmos devem criá-la. O máximo que um cliente obtém de um astrólogo é uma análise de sua personalidade, quando muito pequenas previsões para o próximo ano e respostas para pequenos dramas como a obtenção de um emprego ou o sucesso de um relacionamento.
Se os clientes ficaram órfãos das histórias que ouviam, os astrólogos também ficaram órfãos das histórias que contavam. Talvez isso explique a atratividade que tem, sobre os astrólogos, a brincadeira de tentar adivinhar o signo de personagens de livros e filmes. Se o astrólogo não pode mais contar a história de seu cliente, ele agora se contenta em transformar em clientes os personagens que têm sua própria história fictícia.
Mas qual astrólogo já montou um mapa inteiro do Lobo Mau, de Odorico Paraguaçu ou da Mulher Maravilha? O máximo que os astrólogos conseguem informar é o signo solar, lunar e ascendente do personagem, quando muito algum complexo envolvendo dois planetas. Ninguém afirma em que signo está o Mercúrio de Batman, e que aspecto ele faz com seu Saturno. Se perderam a habilidade de contar uma história a partir de um mapa, talvez os astrólogos nunca desenvolvam a capacidade de deduzir um mapa a partir de uma história. Faltam-lhes olhos, voz e memória.
Como astrólogo, entre a incapacidade de definir a história própria de um cliente e o desgosto pela brincadeira de adivinhar signos de personagens, eu já havia me conformado a oferecer a meus clientes apenas minha torpe visão, minha claudicante língua e minha frágil memória quando, por sorte, talvez por delírio, consegui ver em um mapa não a história do cliente mas a história de um personagem.
Entregar para alguém não a própria história, mas uma história supostamente alheia, poderia soar como uma ofensa, mas o que adveio foi o reconhecimento. Aceitando como sua uma história que não tem a obrigação de ser sua, o cliente mantém seu livre-arbítrio mas ganha um sentido de vida. E o astrólogo pode continuar contando histórias.
Esses dias, preparando o mapa de uma cliente de 37 anos, vi nele o mapa do filme O discurso do rei, um dos concorrentes ao Oscar de 2011.
Eis o mapa…
Eis a história…
Em meados de 1930, o rei George V, da Inglaterra, está preocupado com o futuro imediato da monarquia britânica. Seu filho mais velho, David, primeiro na linha de sucessão ao trono, está se relacionando amorosamente com uma americana divorciada, comportamento incompatível com a moral da Igreja Anglicana, da qual o Rei também é a figura máxima. O segundo filho do rei George V, Albert, que é o segundo na linha de sucessão ao trono, sofre de gagueira desde criança. Embora um homem brilhante e dedicado, Albert, por causa de sua gagueira, não ganha a confiança do público. Como o Rei George V afirmou, a respeito de viver em uma era de comunicações, “um rei não pode mais sobreviver apenas devido à sua boa aparência em um uniforme real e à sua montaria em cavalos de batalha”. Albert tentou vários tipos de tratamento durante muitos anos. Elizabeth, sua esposa amorosa, queria ajudá-lo a ganhar confiança diante da necessidade crescente de falar em público. Ela encontra um terapeuta australiano não convencional chamado Lionel Logue para ajudar na cura da gagueira de Albert. Lionel não tinha um diploma de médico, mas trabalhou como treinador de oratória no teatro e já havia lidado com soldados em estado de choque após a Primeira Guerra Mundial. Ninguém, nem mesmo a família de Lionel, sabia que ele realizava esse trabalho com um dos príncipes da Inglaterra. A relação de Lionel e Albert era muitas vezes conflituosa, com Lionel desejando que os dois se tratassem em pé de igualdade, enquanto Albert não estava acostumado a ter conversas com um plebeu. Lionel aos poucos se torna confidente e amigo de Albert. Por meio de uma variedade de técnicas, Albert aprende a falar de tal maneira que torna o seu impedimento um problema menor e, quando já é rei, substituindo seu irmão David, que se casara com a americana, faz um discurso impecável ouvido em todo o mundo pelo rádio, declarando guerra à Alemanha nazista em 1939. (Tradução livre, elaborada a partir de resumos do IMDB.com)
Gravação original do discurso do Rei George VI ao povo inglês, em 3.9.1939,
com a declaração de guerra à Alemanha.
Eis a interpretação astrológica…
Os Nódulos Lunares, que podemos compreender como o rumo da história, estão em Gêmeos / Casa 11 (Sul em conjunção com Saturno) e Sagitário / Casa 5 (Norte). A história é um movimento da coletividade controlada pela comunicação (em plena Era do Rádio) para a expansão da expressividade individual, com alguns personagens procurando viver sua própria verdade: o príncipe David dando vazão a seu romance, Lionel fazendo suas tentativas de atuação no teatro.
O Ascendente, que dá o tom da condução da história, que indica como ela é narrada, está em Leão, que sugere tanto um clima de nobreza quanto a busca pela autoestima independente da posição ocupada pelas pessoas envolvidas: o gostar genuíno por gostar, e não o gostar bajulador pela posição ocupada.
O regente do Ascendente é o Sol, indicador do herói, do personagem principal. O Sol em Aquário, conjunto a Júpiter, na Casa 7, sugere um herói não individualizado e não convencional, um herói que é um casal, uma dupla ou uma parceria amigável, podendo mesmo ser essas várias coisas. O herói são dois pares: o casal Albert-Elizabeth e o terapeuta-cliente Lionel-Albert.
A Lua representa o inimigo e as necessidades emocionais. Em Capricórnio, na Casa 5, reflete a ambição e a necessidade de exibir-se. Sua semiquadratura com o Sol sugere resistência. Albert resiste a assumir o trono, embora deseje essa posição. Quando Lionel lhe sugere brigar pelo reinado, Albert o destrata, julgando-o conspirador.
Mercúrio representa os ajudantes ou a própria fala e o pensamento do herói. Na Casa 7, retrógrado em Peixes, é um primeiro indicador do discurso compartilhado, das repetições de comunicação e da compaixão. Durante os discursos oficiais, enquanto Albert falava ao microfone, Lionel falava junto com ele, em off.
Vênus representa as mulheres. Em Capricórnio, indica a fortaleza e a disposição de seguir em frente, bem como uma certa frieza antipática. Embora seja carinhosa com Albert, Elizabeth se revela bastante dura nos demais contatos com outros personagens. A rainha também mal consegue abraçar seu filho David quando o rei George V morre. E a americana é fria e distante. Na Casa 6, indica mulheres a serviço, como Elizabeth, sempre a serviço de Albert, e também o trabalho (Casa 6) com a voz (Vênus).
Marte representa os homens. Conjunto ao Meio do Céu, aponta para a necessidade de projeção pública, presente no rei George V, em Albert, em Lionel. Marte está em exílio, em Touro, indicando o retardamento da assertividade em prol de sua continuidade. Os homens são persistentes: não saem na frente, mas perseveram e alcançam seus objetivos.
Quíron representa a criança ferida dos personagens. Em Áries, na Casa 8, indica a agressividade latente e a dificuldade de se afirmar perante os valores dos outros. Albert normalmente não conseguia rebater, sem gaguejar, o ponto de vista alheio. E, quando conseguia, sempre o fazia gritando, demonstrando grande raiva. O mesmo se vê, de maneira mais sutil, em David, Elizabeth e Lionel.
Urano na Casa 3 sugere um ambiente de comunicação caracterizado por novas tecnologias: o rádio, à época. Netuno na Casa 4 aponta para a idealização das tradições, para o sacrifício de um dos pais e para a vitimização por parte da família, bem representados pelos personagens do rei George V e dos príncipes David e Albert. Plutão na Casa 2 indica riqueza e também transformação dos valores, demonstrados tanto pela opulência da realeza quanto pelas escolhas fora de padrão: David por uma americana; Albert por um terapeuta sem diploma.
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Moral da história: oferecer aos clientes histórias não deterministas, mas simbolicamente prováveis, pode ser um dos ingredientes do contrafeitiço que fará a rainha Astrologia superar sua gagueira.