A arte – mesmo em suas manifestações mais óbvias e previsíveis – tem a capacidade de antecipar processos sociais que muitas vezes ainda sequer ganharam qualquer outro canal de expressão. Antes de eclodir no plano da manifestação visível, necessidades e expectativas coletivas emergem no imaginário, revelando-se aqui ou ali na pele de um personagem de ficção, na temática de um filme de sucesso, nos trejeitos de um herói das histórias em quadrinhos.
O processo vivido pelos Estados Unidos, país em constante estado de guerra desde 2001, parecia difícil de antever durante os anos do governo de Bill Clinton e suas alegres estagiárias. Mas os sinais estavam todos lá.
Os bebês de proveta de um estranho casal
Craig McCracken era um jovem desenhista de 25 anos quando conseguiu criar um sucesso de alcance mundial: as Meninas Superpoderosas, três garotinhas de apenas seis anos e ainda frequentando o pré-escolar, que acumulam a pesada responsabilidade de protegerem sua cidade das mais perigosas agressões.
O desenho animado As Meninas Superpoderosas – The Powerpuff Girls, na versão original – foi lançado em 1998 pelo canal Cartoon Network e conta a história de três garotas que foram criadas em laboratório pelo professor Utonium. O objetivo do cientista era criar meninas geneticamente perfeitas. Para isso, usou açúcar, temperos e “tudo que há de bom”. Ocorre que Caco, o macaco assistente do professor, fez uma grande trapalhada e derramou na mistura um ingrediente secreto, o Elemento X (Chemical X). Daí, em vez de menininhas comuns, nasceram três heroínas que dedicaram suas vidas para combater o crime e as forças do mal: Florzinha (Blossom), Docinho (Buttercup) e Lindinha (Bubbles).
Por causa do Elemento X, as meninas ganharam incríveis superpoderes, como visão de raio laser, força descomunal e capacidade de voar, além de algumas habilidades adicionais, como falar chinês. Por isso, tornam-se as protetoras oficiais da cidade de Townsville. Elas estão no jardim de infância e não desejam o mal de ninguém, mas às vezes exageram na dose e acabam provocando algum desastre na cidade.
Características das meninas
As três têm seis anos e estudam com a Professora (Ms. Keane) no Jardim de Infância Carvalhinho (Pokey Oaks Kindergarten). Todas usam meias brancas e “sapatinho de boneca”. Contudo, terminam aí as semelhanças. Vejamos como são, uma a uma, as meninas e também os demais personagens da história, utilizando textos retirados de sites de seus inúmeros fã-clubes:
Florzinha (Blossom Utonium)
Confiante, orgulhosa, batalhadora e egoísta. (…) Florzinha é a líder das Meninas Superpoderosas com uma perfeita combinção de inteligência, beleza e força! O trabalho dela é fazer com que as meninas estejam sempre preparadas para lutar contra o mal, e manter a verdade e a justiça em Townsville.Docinho (Buttercup Utonium)
Cabelos curtos e pretos, olhos verdes da cor do vestido. Agressiva, tem bom senso, forte, porém esconde seu lado sensível. A “lutadora” do trio. (…) Só quer saber de ser a mais forte do mundo, e a pior coisa para ela é ter que usar vestido. Docinho gosta de bater primeiro e perguntar depois.Lindinha (Bubbles Utonium)
É loira e usa duas maria-chiquinhas. Tem olhos azuis da mesma cor de seu vestido. Doce, sensível, corajosa (mas tem medo do escuro), inocente, observadora. A mais calminha do trio. (…) Mas tome muito cuidado, esse anjinho de cabelos dourados pode ser bem perigoso!
Outros personagens
Além das meninas, há cinco outros personagens que aparecem em todos, ou quase todos os episódios:
O Professor Utonium é o pai (ou melhor dizer inventor?) das meninas, a quem cria com amor e bons conselhos. Contudo, não é tão inteligente quanto aparenta. O Prefeito, um velhinho bigodudo e baixinho, também não é lá muito esperto, e é uma vítima constante dos bandidos que assolam Townsville. Não dá um passo sem consultar sua assessora, a Srta. Bellum, uma ruiva inteligente cujo rosto jamais é visto. A Srta. Bellum é o verdadeiro cérebro de Townsville. Entre os personagens “do bem”, temos ainda a Professora Ms. Keane, do Jardim de Infância Carvalhinho , que sempre pede às meninas (sem muito sucesso) para “não sair pelo telhado”.
Quanto ao Macaco Louco, principal vilão da história, anteriormente era Caco, macaco de estimação e assistente trapalhão do Professor. Foi ele que, acidentalmente, misturou o elemento X na fórmula que criou as Meninas Superpoderosas. Durante a reação explosiva, Caco também foi afetado: seu cérebro aumentou e ele conseguiu capacidades mentais inigualáveis. Sentindo-se rejeitado após o “nascimento” das meninas, decide afastar-se do Professor e acabar com elas. Os grandes móveis de suas ações são, portanto, o ciúme e a inveja.
Craig McCracken, o criador, estudou desenho de animação no Instituto de Artes da Califórnia, onde foi colega de Genndy Tartakovsky, mais tarde o criador do Laboratório de Dexter. Diz McCracken que a rápida ascensão profissional de ambos foi em parte fruto do acaso:
Eu acho que nós tivemos muita sorte. Estávamos no lugar certo na hora certa. Em 1992, Fred Seibert (presidente de Hanna Barbera) tinha acabado de assumir e queria desenvolver um ambiente onde pessoas jovens com boas ideias pudessem levá-las em frente. E nós estávamos justamente lá.
Analisando o desenho: uma versão moderna das Erínias
Filhas de uma experiência de laboratório, as Meninas Superpoderosas apresentam a particularidade de terem dois “pais”: um “legítimo”, o professor Utonium, e outro, o Macaco Louco, em decorrência de uma trapalhada casual. Nenhuma mãe. Surgem elas portanto como fruto de uma competição de egos num mundo controlado por homens. De um lado, o vaidoso cientista, corporificando a pretensão prometeica de Aquário, que se considera capaz de reproduzir os mecanismos da vida criando seres geneticamente perfeitos; do outro, um macaco, animal que simboliza um estágio infra-humano, inferior ou arcaico da evolução, dando forma aos aspectos mais primitivos ou mais negativos do eixo Leão-Aquário: a veleidade intelectual do uso do conhecimento para o controle absoluto, a cisão entre ciência e respeito humano, o ego hipertrofiado. O macaco é mostrado sempre com a cabeça enfaixada, o que expressa a ideia de que ele é um “cérebro doente”, poderoso, ampliado em suas capacidades, mas incapaz de funcionar de forma conjugada com a sensibilidade que faria do personagem um ser humano completo.
Fruto de uma ordem masculina, resta às meninas agir também de acordo com as regras do mundo patriarcal. O que as torna superpoderosas é a força física descomunal, assim como a capacidade de voar. Na hora de enfrentar os vilões, elas desafiam, fazem ameaças, batem, agridem, enfim, comportam-se como qualquer garoto na mesma situação. A mensagem parece ser: se queremos obter reconhecimento da comunidade, precisamos lutar com as armas que realmente são valorizadas – as armas do mundo masculino.
A primeira apresentação pública de um desenho das Meninas Superpoderosas aconteceu em 12 de março de 1995, numa transmissão do Cartoon Network. Levantando o mapa para Atlanta, às 19h (hora do início do programa), observamos que Virgem aparece no Ascendente, enquanto Mercúrio, seu regente, encontra-se na cúspide da casa 6, em Aquário, envolvido numa quadratura com Plutão na casa 3. Temos aí colocada, neste mapa mais remoto, a problemática do uso da ciência como fator de controle social. Aqueles enormes e densos olhos zangados das Meninas Superpoderosas dão um eloquente testemunho do toque plutoniano (controle) envolvendo o regente do Ascendente (significador de aparência física).
Mas o que realmente chama a atenção nesta carta é o fato de que todos os planetas caem, direta ou indiretamente, sob o controle de Júpiter domiciliado em Sagitário na casa 3. Júpiter é o planeta da hipertrofia, do exagero – inclusive dos superpoderes das menininhas. É também o princípio da política, da lei e da justiça, em correspondência com o papel das meninas como defensoras da prefeitura e da comunidade de Townsville, a cidade natal. Como este Júpiter está muito próximo do Ascendente da carta da Independência dos Estados Unidos, podemos ver que as heroínas, em sua ânsia de defender a vizinhança (casa 3) e de assumir por conta própria o papel de justiceiras da pólis, repercutem o mapa do país e revelam algumas facetas de sua cultura nos anos noventa. Em primeiro lugar, as Meninas Superpoderosas surgem num momento em que multiplicavam-se as ocorrências de violência infantil em escolas americanas. Crianças e pré-adolescentes desajustados, de posse de armamento pesado, andavam (e ainda andam) metralhando coleguinhas de escola por motivos absolutamente fúteis. As três heroínas, na medida em que tomam decididamente o partido da lei e da ordem, representam uma espécie de antídoto contra a desagregação social que parecia tomar conta do país. Elas são precoces, mas apenas tão precoces quanto a violência que as cerca.
Outra associação possível para Florzinha, Docinho e Lindinha é com as Erínias ou Fúrias, três entidades mitológicas sempre retratadas a acossar incansavelmente suas vítimas, até levá-las à loucura. As Erínias são forças punitivas, capazes de perseguir e torturar não apenas os culpados que ainda circulam no plano dos vivos, mas também os criminosos hediondos que habitam o Tártaro, nas regiões infernais do Hades.
Na concepção grega da formação da raça humana, Gaia, a Terra, une-se apaixonadamente a Urano, o Céu, e gera com ele uma raça de entes violentos e descontrolados, os Titãs, os Hecatônquiros (gigantes monstruosos com 100 braços e 50 olhos) e os Ciclopes (seres de um olho só).
Os seres monstruosos gerados na relação de Urano e Gaia simbolizam a violência telúrica das fases iniciais da formação do planeta, quando grandes mudanças climáticas e geológicas criavam condições de permanente instabilidade que, aparentemente, não serviam a qualquer objetivo superior. Revoltado com a violência dos próprios filhos, Urano lança-os ao Tártaro, onde, aprisionados, não poderiam mais provocar tanta destruição. Entretanto, Gaia, a mãe sensível, tem piedade dos filhos e liberta-os às escondidas. Um desses filhos, Cronos, decide dar fim ao ciclo de Urano, castrando o pai com uma foice exatamente no momento em que este iria fecundar Gaia mais uma vez. Como Urano é imortal, sobrevive à castração. Contudo, seu sangue, ao derramar-se sobre a Terra, dá origem às Erínias, enquanto seu sêmen, caindo no mar, dá origem à espuma da qual nasce Afrodite, deusa da beleza.
A castração de Urano é o mito da superação de uma fase criativa (Urano não parava de fecundar Gaia) mas sem finalidade, já que a fecundidade de Urano não preenchia nenhum propósito social. Em seu lugar surge a sociedade submetida a um princípio de ordem, já potencialmente capaz de evoluir no tempo (Cronos), se bem que o novo deus passe a devorar os próprios filhos, temendo que acontecesse a ele o mesmo que fizera a seu pai… Seria preciso que Cronos, por sua vez, fosse destronado por Zeus para que triunfasse enfim o princípio da evolução.
Curiosamente, as meninas Superpoderosas são “filhas” de uma figura uraniana, o professor Utonium, que brinca de deus gerando seres sobre os quais não tem absoluto controle. As próprias meninas estão neste caso, já que seus superpoderes são fruto de um acidente. Da mesma forma, o Macaco Louco guarda analogia com os Hecatônquiros e outros seres monstruosos e disformes, capazes de trazer consigo a perturbação e o caos.
As três heroínas mirins surgem também em ressonância com o sentido da conjunção Urano-Netuno em Capricórnio (já a desfazer-se, mas ainda ativa em 1995): num momento em que estruturas de poder tradicionais estão a desabar, é necessário encontrar novas formas de proteção do organismo social. É significativo que os homens que detêm o poder em Townsville não sejam lá muito espertos, ou muito competentes. O prefeito depende dos conselhos da Srta. Bellum (um nome que sugere guerra, sem falar que ela é ruiva – um tipo Áries/Marte); o professor Utonium não é tão importante para Florzinha quanto a Professora da Escola Carvalhinho. Em outras palavras: o mundo aparentemente masculino das Meninas Superpoderosas é, no fundo, controlado por mulheres, e mulheres de comportamento pouco usual. A Lua em Leão como planeta mais elevado desta carta, em oposição ao excêntrico Urano, assim como a oposição Marte-Vênus no eixo Leão-Aquário falam desta feminilidade nada tradicional, ou nada conformada aos papéis predeterminados.
Passada a primeira apresentação pública, entretanto, os personagens de Craig McCracken tiveram de amargar três anos e meio na gaveta até terem a chance de ganhar vida num seriado regular.
O lançamento definitivo das meninas do jardim de infância
A estreia do desenho The Powerpuff Girls, já integrado à grade de programação normal do Cartoon Network, acontece apenas em 18 de novembro de 1998, às 20h, com Sol e Lua conjuntos em Escorpião na casa 5, sendo a Lua regente do Ascendente canceriano. Júpiter novamente tem um papel de destaque: utilizando o critério das regências clássicas, ei-lo outra vez como dispositor final da carta, domiciliado em Peixes e extremamente fortalecido pela situação de angularidade, já que está em conjunção com o Meio do Céu. Por coincidência, o Ascendente desta carta está em conjunção com o forte Júpiter em Câncer da carta da Independência dos Estados Unidos. Para completar, Júpiter do lançamento do seriado forma quadratura com o Júpiter da primeira apresentação, em 1995.
Vimos que, na carta de 1995, o regente do Ascendente estava em quadratura com Plutão; no de 1998, o regente do Ascendente ocupa o signo de Escorpião. As características de Escorpião mostram muito da personalidade das três irmãs (Docinho, em especial, é um tipo bem marciano), se bem que temperadas por características piscianas (caso principalmente de Lindinha). Contudo, quem dá a direção e o propósito da existência das três é Júpiter. Trata-se de um planeta cuja esfera de atuação é antes de tudo o social, em detrimento do individual. Com Júpiter em evidência, as histórias não giram em torno de pequenas questões familiares ou de relacionamento interpessoal, como em Johnny Bravo e outros desenhos da época, mas dizem respeito sempre ao bem estar da comunidade como um todo, sendo que, sem sombra de dúvida, Townsville é uma metonímia do american way of life. Esta a maldição das meninas: estão condenadas a jamais terem muita vida pessoal. São heroínas de laboratório destinadas ao serviço do país, e é impossível não pensar, neste ponto, nas milícias infantis da Juventude Hitlerista, ou nas crianças utilizadas para denunciar os próprios pais no regime de terrorismo de Estado do Khmer Vermelho.
Há algo, portanto, de assustador nas Meninas Superpoderosas na medida em o seriado sinaliza para uma época de menos liberdade individual e de maior entrega do indivíduo aos interesses de um Estado que se vê ameaçado por usurpadores de alta tecnologia que pretendem utilizá-la para finalidades destruidoras. Neste sentido, o Macaco Louco é uma metáfora de Osama bin Laden, de Saddam Hussein e de outros inimigos do império americano. Macacos são animais facilmente associáveis ao inquieto signo de Gêmeos, presente na casa 7 do mapa dos Estados Unidos – a dos inimigos declarados.
Basta lembrar que, da mesma forma como o Macaco Louco foi anteriormente o assistente do laboratório do professor Utonium (um funcionário de confiança, portanto), ditadores e terroristas como Saddam Hussein e bin Laden tiveram durante muito tempo um status privilegiado junto ao governo americano: Saddam, por opor-se ao fundamentalismo xiíta dos aiatolás do Irã, e bin Laden por representar uma liderança guerrilheira capaz de deter o avanço soviético no Afeganistão.
As Meninas Superpoderosas são uma inconsciente antecipação da paranoia e da atitude isolacionista que iria instalar-se nos Estados Unidos após o atentado terrorista ao World Trade Center. É significativo que o desenho tenha surgido quando Plutão mal entrava em Sagitário e que tenha-se transformado num seriado três anos mais tarde, quando Plutão já ativava o Ascendente da carta americana. Talvez a mensagem das três menininhas seja a de que a lei e a cultura do Ocidente estejam em risco, o que coloca todos os cidadãos – até mesmo as crianças do pré-escolar – diante do dilema de lutar pela preservação do establishment ou entregar os pontos ao Macaco Louco. Com Plutão no Ascendente dos Estados Unidos, findava de vez a era da inocência.
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Angela Schnoor diz
Caro Fernando, excelente matéria!
me deliciei com seus texto e com as relações estabelecidas e opiniões expressadas.
Meu interesse foi despertado pela estrutura do mapa de uma de minhas netas que possui este super poder em sua carta, mas ainda não voa!
um abraço. agradecido