Num país que pouco lê, o destino do escritor é tornar-se conhecido e admirado por um público restrito. Com Jorge Amado foi diferente. Sua vocação não era ficar confinado aos círculos intelectuais, mas foi preciso que a televisão o descobrisse para que todos – mesmo os que jamais leram seus livros – passassem a tê-lo como uma referência familiar.
Às 22 horas do dia 14 de abril de 1975, ao comemorar seu décimo aniversário, a Rede Globo de Televisão estreou a primeira superprodução com sotaque baiano: a novela Gabriela, baseado no livro homônimo (Gabriela, Cravo e Canela) de Jorge Amado. Exibida durante seis meses (o último capítulo foi ao ar em 24 de outubro de 1975), a novela transformou-se num sucesso nacional, além de lançar para o estrelato uma atriz morena e de transbordante sensualidade chamada Sônia Braga.
Gabriela, o sucesso nacional
Gabriela recebeu na TV a adaptação de Walter George Durst e a direção de Walter Avancini. No elenco, além de Sônia Braga, estavam Armando Bogus no papel do turco Nacib, Paulo Gracindo, José Wilker, Nívea Maria, Fúlvio Stefanini, Elizabeth Savalla, Marco Nanini, Dina Sfat, Hugo Carvana, Stênio Garcia – todos falando com o sotaque que, a partir daí, tornar-se-ia quase obrigatório na novela das oito. Já viera antes O Bem-Amado, de Dias Gomes, em 1973, e ainda estavam por vir sucessos como Roque Santeiro, do mesmo autor, e ainda Tieta e Porto dos Milagres, novas adaptações da obra de Jorge Amado. Mas Gabriela foi a produção que consolidou a Bahia como cenário ideal para a crítica de costumes do cotidiano nacional.
Vejamos a sinopse da novela, obtida, assim como os dados de sua estreia, no extinto site do pesquisador em teledramaturgia Flávio Porto e Silva (uma verdadeira mina de informações sobre produções de TV no Brasil).
Entre os fazendeiros de cacau, senhores absolutos da situação política, dois fatos novos vêm mudar o cotidiano pacato da cidade. A chegada de Dr. Mundinho Falcão (José Wilker) com ideias renovadoras; e o caso de amor entre o turco Nacib (Armando Bogus) e a retirante Gabriela (Sônia Braga). A renovação política e social, à primeira vista, parece fraca para destituir o Coronel Ramiro Basto (Paulo Gracindo), ditando as ordens da região. Ao final, a situação está enfraquecida e a morte do Coronel Ramiro traz um novo alento à oposição.
Tanto que na última cena, Mundinho recebe o aval para namorar Jerusa (Nívea Maria), a neta de Ramiro, com quem vivera um difícil caso de amor em virtude das imposições políticas. Porém, Mundinho Falcão termina sendo adorado pelas baianas, que lhe beijam a mão em praça pública. Uma atitude que lembrava nitidamente o coronelismo local.
(…) O público foi brindado com a explosão sensual de Sônia Braga. A adaptação (…) e a direção valorizaram, ampliaram e explicaram a obra de Jorge Amado, principalmente no aspecto político – em que se deteve a maior parte de sua criação.
O mapa da hipocrisia e do amor transgressivo
A questão do poder é central na novela. E ei-la que aparece no mapa de sua estreia indicada pela oposição de Plutão em Libra na casa 10 (controle social) a Júpiter em Áries na casa 4. O Ascendente é o conservador e hierárquico signo de Capricórnio, cujo regente, Saturno, está em exílio em Câncer, na casa 7, recebendo como único aspecto um quincunce de Netuno, regente da 4. Este mesmo Netuno faz oposição à Lua em Gêmeos e um belo trígono a Júpiter em Áries. Urano, na casa 11, opõe-se ao Sol, ainda na 4 mas junto à cúspide da 5.
O mapa tem a forma geral de uma ampulheta, sendo um dos polos constituído pelos três planetas invisíveis (Urano, Netuno e Plutão) no quarto quadrante (o social, o coletivo), enquanto o outro é formado pelos sete planetas clássicos, dos quais apenas um, Saturno, está acima da linha do horizonte. A estrutura de ampulheta e o jogo de oposições do mapa remetem a um sentido geral de contraposição entre o que é visível (acima do horizonte) e o que é invisível (abaixo do horizonte), o que é socialmente consentido e o que se pratica na intimidade, o público e o privado, as estruturas gerais da coletividade e as paixões individuais.
É um mundo regido por valores conservadores e pela estamentação social do coronelismo (Capricórnio ascendendo), mas Saturno, em exílio e recebendo o quincunce de Netuno, indica que as bases morais não são tão sólidas assim, e que as aparências encobrem o que se faz por baixo do pano (Netuno na 12, Plutão elevado).
Boa parte da novela se passa numa casa de mulheres, o cabaré Bataclã, local de diversão (Lua e Vênus em Gêmeos na 5) e prostituição (a oposição com Netuno na 12), palco onde a gente do povo mantém ambíguas relações com o poder, dissolvendo na cama as barreiras que separam as classes à luz do dia (Netuno, regente da 4, em quincunce com o regente do Ascendente).
O farisaísmo, a hipocrisia da classe dominante que se apoia numa moral de superfície, é um tema fundamental dentro da novela. O romance a céu aberto entre o “turco” (na verdade, um imigrante sírio-libanês) e a retirante Gabriela explode como um contraponto aos valores desta sociedade que consente tudo, desde que sob o véu do respeito às convenções. O imigrante – aquele que veio de longe (casa 9) – é o Sol, regente da 9, em Áries; Gabriela, a retirante que veio do entorno rural pobre (casa 3, dos arredores), é simbolizada por Urano. A excitante e provocativa oposição Sol-Urano acompanha o romântico eixo casa 5-casa 11, em contraste com o conflito de poder que marca o pano de fundo: a oposição Júpiter-Plutão.
O mais curioso sobre o ciclo baiano da teledramaturgia brasileira é que a Bahia mostrada nas produções da Globo é uma Bahia inventada, puramente ficcional, onde repetem-se sempre as mesmas situações dramáticas e os mesmos personagens-padrão. Neste sentido, a Bahia das novelas da Globo passou a ter para o Brasil um papel semelhante ao do faroeste americano da segunda metade do século XIX: é a expressão de um gênero convencional, através do qual reconstroi-se idealmente um certo passado e critica-se o cotidiano brasileiro. Como a Ilhéus de Gabriela e a Porto dos Milagres de Guma e Lívia não estão em parte alguma, podem estar em qualquer lugar. São um retrato caricato do país e de suas eternas contradições.
Gabriela, Vênus em Leão na carta do Brasil
Ao situarmos os planetas do mapa de Jorge Amado sobre o mapa da estreia de Gabriela na televisão, vemos que Lua, Vênus, Marte e Netuno da novela formam aspectos com a quadratura T da carta de Jorge Amado, mais uma vez enfatizando o papel do Mercúrio do escritor. Por outro lado, Vênus em Leão de Jorge Amado ocupa a cúspide da casa 9 do mapa da novela e faz um interaspecto com Marte. A casa 9 é a da comunicação a grandes distâncias, da publicidade e da divulgação ampla, com abertura de horizontes. Vênus em Leão de Jorge Amado é, como já vimos, um padrão de mulher, do ponto de vista estético e comportamental, que ele projetou em muitas de suas heroínas. O sentido geral é o do início de uma fase em que o escritor se tornaria mais conhecido do grande público em função de seus personagens femininos, do qual Gabriela é o melhor exemplo. Curiosamente, esta Vênus em Leão também está em oposição ao Ascendente do mapa da Independência do Brasil – em conjunção com o Descendente, portanto – simbolizando uma espécie de relação amorosa, passional e lírica entre o escritor e seu país de origem.
O povo em vez dos críticos literários
Jorge Amado nunca foi uma unanimidade entre os críticos especializados. Muitos viam nele um escritor de poucos recursos, repetitivo, abusando intencionalmente de clichês e lugares-comuns com o objetivo de seduzir o leitor mediano. Efetivamente, o autor de Capitães de Areia e outros tantos best-sellers às vezes resvalava nas saídas fáceis e na superficialidade indicadas pela quadratura Mercúrio-Júpiter. Da mesma forma, acusaram-no de praticar, especialmente nos primeiros anos, uma literatura bitolada por um aprisionamento ideológico estreito e limitador – o que igualmente é verdade, como testemunham os tensos aspectos de Saturno. Mas, na medida em que deixou fluir livremente as inclinações do próprio mapa, Jorge Amado encontrou o caminho do coração do leitor. Ao morrer em 2001, as homenagens espontâneas que a Bahia e o Brasil lhe renderam mostram qual foi seu legado: a plena realização do conteúdo da conjunção Lua-Netuno em Câncer e do Sol em Leão, que lhe permitiram dar ao Brasil um espelho onde se fundem na mesma vistosa luminosidade o coronel do cacau e a vendedora de acarajé.