Cisne Negro é um filme sobre tirar algo de si que está abaixo da superfície, que não se vê, como um iceberg. Está estruturado em torno de obstinação e paixão, traços imputados, respectivamente, a Saturno e Plutão, e também do feminino, das emoções, do mágico e da loucura, que, por sua vez, remetem a Lua e Netuno. Sabe-se que os dois primeiros planetas estão ligados à cor escura, enquanto a Lua é branca e Netuno, claro.
Nina (cuja timidez e vulnerabilidade são generosamente acolhidas por sua intérprete, Natalie Portman) parece a própria expressão da Lua e de Netuno, branca, frágil e delicada. Mas tolo é quem a vê assim, pois a menina-mulher treina com a dedicação de quem vive tão somente para dançar. Aguenta, com vontade de ferro, todas as privações em nome da arte e da superação, da busca por um ideal. Um ideal feito de pés que se movem em pontas, corpos vigorosos que planam antes de pousarem magistralmente no solo, braços delgados que desenham incríveis figuras no ar. O mundo perfeito de Netuno, sustentado pelas engrenagens de Saturno, com seus treinos semelhantes a bigornas batendo em ferro. O mundo do balé, que ela conhece desde pequena.
Mas Thomas Leroy, diretor de uma prestigiada companhia de dança, quer mais do que balé: deseja emoção, interpretação, superação. Seus ideais são elevados, assim como os de Nina, a quem lança ao inferno, ou melhor, mostra que ela já vive nele. Ele diz para a talentosa pupila que ela é talhada para fazer o angelical Cisne Branco de O Lago dos Cisnes, mas que, para ter o papel, terá também de interpretar o gêmeo reverso, a sua versão negra. A moça estremece. Como tirar algo de dentro de si que não pratica? Onde estará, no fundo de si mesma, a sensualidade, a força e o poder da contraparte negra? Nina, de tão nervosa e perfeccionista que é, tem uma estranha alergia nas costas (a parte de seu corpo que não pode ver), a qual a arranha à noite, quando está dormindo, como quem procura desesperadamente por um outro lado de si mesma.
Cisne Negro é difícil, belo e visceral e o que há de mais brutal nele não é a rotina do balé, com suas pesagens, medições, ensaios, competição e a busca obsessiva pela perfeição. O assustador são as mulheres, com exceção, no início, de Nina, que lhes é seu avesso, a sua face branca. Elas exprimem o mais difícil dos contatos de Lua com Plutão. São rancorosas e agressivas, como a colega que não simpatiza com Nina. Ácidas e autodestrutivas, como a ex-estrela da companhia. Recalcadas e manipuladoras, como a mãe de Nina. Perigosas e sensuais, como a amiga e concorrente, Lilly. Estas mulheres são absolutamente aterrorizantes para Nina. São como corvos, e, no entanto, é preciso que a personagem as encontre dentro de si para libertar o Cisne Negro. Aquele que levará o branco, a antiga Nina, à morte, como conta a história de O Lago dos Cisnes.
Como nos contatos astrológicos Lua/Plutão, a bailarina precisará passar por muita dor emocional para descobrir quem é quem e o papel de cada pessoa em sua vida. A figura mais aparentemente cruel, que seria o diretor, acaba sendo o maior incentivador, aquele que lhe dá mais força e que lhe aponta o caminho para buscar a peça faltante para ser o Cisne Negro, que, não por acaso, será a sensualidade, algo ligado a Plutão.
Entretanto, este mesmo diretor reclama que Nina é muito técnica, precisa, perfeita, mas que não se solta. Podemos pensar, neste caso, em Saturno, a profunda repressão a que é submetida. Mexer com Saturno lhe é perturbadoramente desafiador, pois toda a sua vida foi sempre regida por este planeta: regrada, focada, tolhida, direcionada. A disciplina sempre foi o seu caminho. Treinar, treinar, treinar. Aonde iria, portanto, buscar a emoção e a vivência que não teve (Lua)? Quem diria que o estético não seria somente a forma, o ser perfeita, mas também trazer à tona algo que estivesse dentro de si? E o que tem Nina dentro de si? Ela não é virginal somente por fora, mas também por dentro. Ela não tem vida pessoal fora do balé, qualquer referência, tão somente o vínculo opressivo com uma mãe também obcecada por balé. Limites muito estreitos.
Basicamente, a única emoção que parece conhecer é o medo, que toma conta de seu universo interior. O medo é um desdobramento de Saturno, e a tímida Nina teme, principalmente, as mulheres terríveis (Lua-Plutão), todas intensas e excessivas, sempre instigando-a, desafiando-a, enfrentando-a e, não raro, querendo destruí-la. Mas, apesar delas, Nina nunca deixa de ser um motor rumo a um objetivo (Saturno). Tanto é assim que se, para isto, ela tiver de confrontar o medo e todas aquelas mulheres, ela irá fazê-lo. E basicamente o filme todo é o seu enfrentamento do medo e de todos os seus limites. E enquanto faz isto, Netuno a ronda na forma de delírios, distorções da realidade, da alergia que se expande sem explicação, do contato com as drogas e o álcool e de uma paisagem que nunca parece real, nem mesmo quando pega um trem. Nina está sempre linda, inefável, magra, perfeita demais até mesmo quando erra e chora. Ela fascina. Foi feita para ser trágica, como os personagens que interpreta. Consegue ser sensível mesmo quando tem de lutar por si mesma, pois ela só se defende. De alguma forma, mantém sempre a sua inocência, rompida, somente, em um único momento, quando arrasta o corpo ensanguentado de sua colega morta para uma pequena sala para viver sua estréia. Então o motor, o pequeno motor de Saturno movido a balé (Netuno), segue rumo ao espetáculo, à glória, ao milagre (Netuno), que, no seu caso, era poder ser duas, branca (Lua) e negra (Plutão), anjo e demônio. Quão difícil lhe foi integrar as duas coisas! Metáfora para as grandes tarefas da alma.
Para chegar neste ponto, ela teve de ganhar substância. Precisou descobrir verdades duras (o desvendamento de Plutão, planeta que mostra como as coisas realmente são) a respeito da mãe, que a mantinha como uma eterna criança e que não queria que a filha um dia alcançasse o que ela mesma não conseguiu como bailarina. A mãe, que parecia tão zelosa em seus cuidados, e que, no entanto, quando soube que a filha ganhou o papel principal de uma peça, comprou um enorme bolo, puro veneno para dançarinos. E quando Nina lhe disse que só queria um pedaço bem pequeno, quase o atirou, magoada, no lixo. Chantagens do lado sombrio de Lua-Plutão, tanto quanto a presença invasiva, opressiva, controladora.
A amiga não é muito melhor e também é invasiva quando se mete na vida de Nina, quando a estimula a consumir drogas e comer hambúrguer e quando descobre e atira os segredos de Nina na sua cara ou os conta para o diretor. Para ela, não interessa uma Nina regrada, centrada e focada em seus objetivos. Não se resolve, no filme, portanto, o fato de que todas as mulheres, de algum modo, a odeiam, talvez porque saibam que ela não é tão frágil quanto aparenta ser, pois mesmo muito humilde e discreta palmilhou dia após dia o seu caminho para ser estrela.
É por causa deste objetivo que Nina realiza toda a transformação para ser o Cisne Negro. É por causa dele que ela descobre a prisão em que vive na doentia relação com a mãe. E que percebe que, um dia, até mesmo o diretor que a incentiva lhe chamará de “princesinha”, como preveniu sua antecessora, que recebeu a mesma alcunha, e que foi descartada como um objeto usado. Ser a princesinha é, portanto, ter o mesmo destino. Assim, superar-se e amadurecer significa descobrir uma verdade chocante (Plutão), para a qual não está preparada (Netuno, fragilidade), e que vai progressivamente agravando suas doenças crônicas, a alergia, o hábito de se coçar e a distorção da realidade. Como se, além disso, para subir, se conectando a uma força descomunal (Plutão), também fosse necessário espatifar-se no chão (Netuno), algo muito comum na trajetória de artistas que não tiveram boa base familiar e emocional (Lua), verdadeiros Ícaros com suas asas de cera.
Nina é um desses Ícaros. No lindo espetáculo que é o filme, o segundo plano angustiante é a sua solidão (ausência da Lua, que, no seu melhor, representa nutrição e apoio emocional verdadeiro). Mesmo a sua interação frenética com os outros personagens nunca a tira de dentro deste muro, tão típico de Saturno, seu maior mestre e algoz. Além disso, lembremos que na maior parte do filme a personagem é rejeitada (Plutão), seja pelos colegas e diretor, por ser medrosa e certinha, ou pela mãe, por querer se rebelar. A solidão e rejeição só irão cair de fato por terra quando o seu público (regido pela Lua) lhe abrir calorosamente os braços e reconhecê-la. Até mesmo a sua mãe estará em meio a ele, fitando sua linda filha através de lágrimas finalmente redentoras, escorrendo sobre as escuras feridas de suas longas dores e frustrações.
Assim, a menina que nunca teve vínculos saudáveis se conecta ao público. Por ele, vale a pena morrer. É quando a inefável estrela subirá ao seu firmamento, ainda um pouco crua de troca e experiências, mas engrandecida pelo que viveu e superou. Romperam-se os muros.