Em 20 de junho de 1971 estreou na Cidade do México o programa Chaves, sob uma oposição Saturno-Netuno quase exata. Este aspecto remete, entre outros significados, a uma certa melancolia e a uma atitude pessimista frente às perspectivas vivenciais. O homem se sente enfraquecido diante de circunstâncias que afetam toda a coletividade e contra as quais não poderia lutar sozinho. Em Chaves vemos uma pequena comunidade de moradores de uma vila de baixa classe média. Ali, cada personagem expressa um diferente padrão de resposta ao desamparo diante do mundo hostil, corporificado na tensão deste aspecto (ver artigo Da astúcia do Chapolin ao desamparo Saturno-Netuno).
O caso mais bem delineado é o de Seu Madruga e Dona Florinda, que vivem situações sociais semelhantes, mas com atitudes diametralmente diversas diante do contexto dos recursos escassos e ausência de perspectivas. Dona Florinda aferra-se netunianamente à fantasia, recusando-se a admitir o clima de “fim de linha”. Viúva de um militar que morreu devorado por um tubarão (ou uma baleia, dependendo do episódio), criando sozinha seu único filho, insiste em comportar-se como se a estada na vila fosse apenas um episódio transitório, algo que pudesse ser revertido por um simples ato de vontade. Trata todos os seus vizinhos como “aquela gentalha”, como se ela própria pudesse reivindicar o pertencimento a um estrato superior.
Seu Madruga, por outro lado, expressa um padrão reativo onde o polo de consciência está em Saturno – se bem que os traços netunianos não estejam de todo ausentes. Seu Madruga percebe que algumas horas a mais de trabalho, ou alguns pesos a mais no bolso, não farão diferença significativa. Filosoficamente, assume sua condição de membro da baixa classe média e vê de forma descrente todas as supostas possibilidades de ascensão social.
É curioso que Seu Madruga, e não Chaves, seja o personagem mais popular do seriado. Até hoje o ator Ramón Valdés é um dos rostos mais conhecidos do continente, apesar de falecido em 1988. É possível vê-lo em camisetas, substituindo o onipresente Che Guevara, e sempre acompanhado de alguma de suas famosas frases. Há pouco tempo foi lançado no Brasil o livro Seu Madruga – vila e obra, uma homenagem ao personagem adorado pelos fãs. A filosofia de seu Madruga constitui um capítulo à parte:
“Não existe trabalho ruim. O ruim é ter que trabalhar.”
“Quando a fome aperta, a vergonha afrouxa…”
“Sou pobre, porém honrado!”
“São todas assim: começam ficando com o chapéu e acabam ficando com a carteira!”
“Sou um cidadão consciente, não fanático!”
“Minha senhora, se acha que pode me comprar com alguns presentinhos, eu vou lhe dizer uma coisa… eu aceito!”
“É isso que eu digo: não há nada como dever.”
Em resumo: Seu Madruga é o próprio Saturno em Sagitário (um planeta pessimista num signo filosofante) do mapa de Roberto Gomez Bolaños!
A chave astrológica do Chaves
Chaves é um tipo mercuriano, semelhante a tantos escravos e serviçais espertos das comédias de Plauto, Terêncio e Molière. Ele é o leva-e-traz, o fator de confusão, de desordem, de intriga, de indução ao engano. O boné que sempre utiliza, de abas caídas sobre as orelhas, lembra as asas do capacete de Mercúrio.
Agindo ora por distração, ora por diversão, ora por espírito de represália contra um personagem mais poderoso, Chaves é o motor da história. Absolutamente pobre e tendo por casa um barril, seus únicos recursos são a palavra e o pensamento rápido. Sob este aspecto, Chaves não é muito diferente do outro anti-herói criado por Bolaños, o Chapolin Colorado (“Ah… não contavam com minha astúcia!”).
Chaves tem também algo de Marte-Urano: a atividade incessante, a capacidade de aparecer e sumir de cena nos momentos mais inesperados, a energia incansável, o uso da palavra como recurso de desarme do adversário (quanto mais fala, menos se sabe se está dizendo a verdade), tudo isso aponta para uma dinâmica que envolve elementos dos três planetas: “Foi sem querer… querendo.”
Chaves tem aguda consciência social. É a criança capaz de gritar bem alto que o rei está nu, o que o torna uma presença incômoda e desestabilizadora. Esta característica expressa claramente a dimensão Marte-Urano, como quando Chaves responde ao professor Girafales:
—Chaves, como se chamam os animais que comem de tudo?
—Ricos!
Ou quando provoca Dona Florinda:
—Eu não estou a fim de ouvir idiotices!
—Pois eu sim. O que a senhora dizia, Dona Florinda?…
Ou quando aponta as limitações do pobre Quico:
Quico: “Vocês não veem que eu estou convalescente?”
Chaves: “Convale o quê?”
Chiquinha: “Chaves, quando o Quico diz ‘convalescente’, quis dizer que ainda não está bem, besta!”
Chaves: “Ah, e quando estiver bem besta já vai poder sair para brincar?… Se é por isso, já podia ter saído há muito tempo!…”
Mais uma observação: se bem que Roberto Gomez Bolaños, o criador do Chaves, não tivesse um aspecto Marte-Urano, seu mapa mostrava Mercúrio em Aquário, signo de Urano, e Marte em Gêmeos. Portanto, a conexão entre Mercúrio, Marte e Urano estava presente, de forma indireta.
Chiquinha e Quico, um caso de troca
Se Chaves é Mercúrio, seria natural que seus dois amigos mais próximos, Chiquinha e Quico, fossem, respectivamente, os planetas pessoais subsequentes, Vênus e Marte. Mas não é bem assim.
Chiquinha, a filha única de Seu Madruga e caprichosa amiga de Chaves e Quico, é hiperativa, às vezes histérica, feminista convicta e decididamente mandona. Tem muito mais iniciativa do que o bochechudo Quico. Na verdade, Chiquinha é muito mais Marte do que ele, apesar de que o nome da personagem em espanhol – Chilindrina – remete a um tipo de pão doce muito comum no México (Vênus rege os pães doces). Mas, na hora do confronto, sabe ser absolutamente direta:
Seu Madruga – “Dar acostuma as pessoas à vadiagem.”
Chiquinha – “Ah, tá. E quem dava as coisas pro senhor, papi?”
Já Quico é um garoto mimado, superprotegido por sua mãe, que não o quer ver misturado com a “gentalha”. Bem tratado, sempre limpo e vestido de marinheiro, faz o gênero “dengoso” e, não raro, covarde. Carente de atenção, usa de todos os recursos de sedução para obtê-la. Seu jeito doce mal disfarça uma criança invejosa, cobiçosa e eventualmente vingativa. Todo o seu temperamento lembra Vênus no que tem de pior. Na verdade, a assertiva Chiquinha e o sonso Quico formam um par Vênus-Marte às avessas, em que o papel ativo cabe ao personagem feminino.
Seu Barriga e o capitalismo latino
Seu Barriga é o rotundo dono das casas da vila, que aparece periodicamente para cobrar o aluguel. Aos olhos dos moradores, é o burguês, o proprietário, exercendo ali uma função jupiteriana (provedor) mas também saturnina (cobrador). Dividido entre Júpiter e Saturno, às vezes exerce pressão sobre Seu Madruga, o eterno devedor, chegando mesmo, em certa ocasião, a despejá-lo. Contudo, a natureza essencialmente generosa leva-o a rever a decisão, protelando indefinidamente o pagamento. Seu Barriga expressa as contradições do capitalismo na América Latina, onde as leis impessoais do mercado sempre são compensadas por alguma forma de intervenção: para sobreviver como empresário, precisa fazer concessões. Seu Barriga, ao chegar na vila, sempre apanha de Chaves, que assim consegue subverter, ao menos no plano da fantasia, a desigualdade da luta de classes.
Nhonho é o filho obeso e pançudo do Seu Barriga. Apesar de generoso, é guloso e avarento quando se trata de comida. Sendo a única criança do seriado a quem não faltam recursos financeiros, tem um quarto cheio de brinquedos que despertam em Chaves uma sensação de deslumbramento. Nhonho, bem de vida e amante de doces, pode ser definido como um tipo Vênus-Júpiter.
Observe-se que Chespirito, o criador da turma do Chaves, tinha Júpiter em Touro em quadratura com a Lua em Leão. Em entrevistas, sua esposa Florinda Meza (a atriz que representava Dona Florinda) contava que Chespirito era um ótimo garfo, e, ao frequentar restaurantes, normalmente dizia ao garçom que vinha trazer-lhe o cardápio: “Eu quero… comida!” Este lado glutão está presente em vários personagens da vila, especialmente em Nhonho, mas também no sempre esfomeado Chaves, em Seu Barriga e em Quico.
Dona Clotilde, a Bruxa do 71, é uma vizinha que assusta as crianças (que por isso a consideram uma bruxa) mas é apaixonada pelo Seu Madruga, a quem tenta agradar e conquistar com todo tipo de gênero alimentício. Dona Clotilde desempenha uma função vagamente plutoniana, já que tem um cãozinho de estimação chamado Satanás e sua casa é imaginada pelos pequenos como um castelo de horrores.
A fantasia escapista de Dona Florinda
Dona Florinda exerce no seriado uma função lunar. Sempre de rolinhos na cabeça (o que ressalta seu papel doméstico), dona de um restaurante e mãe superprotetora, reúne de uma só vez vários atributos da Lua, mas não uma Lua qualquer: viúva de um oficial da Marinha e, nostálgica de sua antiga posição social, rejeita boa parte de seus vizinhos (especialmente Chaves e Seu Madruga), a quem chama de “gentalha”. Vive a ilusão de um romance com o Professor Girafales, a quem vê como um cavalheiro e um intelectual que poderá colocá-la acima da mediocridade da vila. Essas veleidades de grande dama, esse arrebatamento romântico, assim como a agressividade com que protege Quico de seus vizinhos “inferiores”, fazem pensar numa Lua leonina mal aspectada. Uma das qualidades da Lua em Leão é ser capaz de acreditar na própria fantasia. Neste sentido, Dona Florinda e o Professor Girafales são os únicos personagens que conseguiram encontrar um antídoto eficaz para a falta de perspectivas de seu ambiente Saturno-Netuno. Em tempo: Dona Florinda é a própria Lua em Leão do mapa de Bolaños, o criador de Chaves!
O professor Girafales é um tipo idealista, que pode ser associado à nobreza de um aspecto Sol-Júpiter. Professor primário, sonha que seus alunos se tornem um dia pessoas cultas e acredita que elas são o futuro da pátria. Conhecedor dos assuntos mais variados, da botânica à esgrima, funciona como uma crítica bem-humorada às elites intelectuais da América Latina, muitas vezes alienadas numa cultura livresca e incapaz de definir diretrizes práticas para a sociedade. O romance platônico entre o professor Girafales e Dona Florinda pode simbolizar, no plano político, a atração mútua entre os setores mais conservadores da intelectualidade e a pequena burguesia na América Latina. O verniz erudito do professor Girafales não é suficiente para alavancar nenhuma mudança de vulto. Não é ele quem vai mudar o status social e econômico da vila.
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Ana Maria diz
Depois de tantos comentários antigos, agradeço por encontrar hoje, artigo como este que eu procurava a respeito de arquétipos da Dona Florinda. Eu valorizo as informações sobre Arquétipos, pois desejo saber se é conveniente colocar na minha casa uma imagem de dona Florinda. Muito obrigada, gostei!
Ana Carolina diz
Essa Clarice é uma troll. N alimentem trolls
Luis diz
Adorava assistir ao chaves.
Hugo diz
Acho que a Chiquinha também tem uma energia mercuriana-geminiana bem forte (no lado negativo) misturada tmbm com uma energia netuniana,pois ela sempre está tramando alguma artimanha pra se dar bem manipulando e iludindo os outros (como no episódio do pé de carambolas e da fonte dos desejos).
Tadeu Borges diz
Pra mim, o maior mérito do texto, ou melhor, dos três textos, é o que foi apresentado em outro comentário como defeito. Se astrologia serve só pra dizer quem combina com quem, tô fora. Se serve pra explicar a realidade do meu país, do meu continente, tô dentro.
Clarice T Ururahy diz
Fico chocada com a maneira como esse site Constelar desperdiça o tempo dos leitores com posts irrelevantes. Entro aqui toda semana para ler as previsões da Vanessa, que são a parte que se salva e que tem utilidade verdadeira para os leitores. Mas não consigo entender porque o destaque maior fica com um artigo como este do sr Fernando, que despeja em nós o lixo cultural dos cucarachas como se se fosse assunto digno de analise.. Chaves é o que existe de pior, não é cultura, é uma produçao mexicana de quinta categoria, coisa mesmo de país pobre e atrasado. Pra mim, astrologo que perde tempo analisando personagem infantil é porque nao tem competencia pra analisar mapa de gente de verdade.
Vania diz
Cucaracha??? Tsk,,, Tsk… que baita preconceito contra o Mexico, dona Clarice! Precisa rever os seus conceitos!
Elias Mendes diz
Nossa, que texto maravilhoso e quantas observações pertinentes. No caso do Quico e da Chiquinha acho que da pra solucionar o impasse marte-venusiano dando a eles o detrimento de cada planeta: ao quico um marte em Libra sonso e covarde, e a chiquinha uma vênus ariana muito franca e histérica
Redação Constelar diz
Você tem toda a razão, Elias! Considerando os personagens projeções do próprio mapa de Chespirito, Chiquinha corresponde a Vênus em Áries (a garota guerreira e meio kamikaze) e Quico pode ser associado a Marte em Gêmeos oposto a Saturno. Não chega a ser um Marte exilado, mas de qualquer forma “roda presa” e acovardado, como costuma acontecer nas manifestações mais degradadas deste aspecto. É raro encontrarmos um criador cujo mapa se reflita tão fielmente no comportamento dos personagens quanto Bolaños.
Fabiane diz
Genial, muito perspicaz!