Biutiful é, essencialmente, um filme sobre Saturno, um filme sobre o tempo. O tempo que passa, o tempo de que não dispomos, a agonia da consciência da morte e da própria mortalidade. Evoca também as dimensões plutonianas da existência, ao insistir no tema da morte e do poder paralelo do submundo. Entretanto, vale aqui lembrar que a morte e o morrer sempre estiveram relacionados pela Astrologia com o planeta Saturno. Com a descoberta de Plutão, transferimos muitos dos significados de Saturno para o novo planeta, e terminamos por reduzir nossa compreensão da simbologia saturnina.
Saturno, em diversos sentidos, é mais “morte” do que o próprio Plutão. Enquanto este último representa as transformações profundas e inescapáveis, Saturno se revela na fatalidade da decrepitude. Fato: tudo envelhece, adoece e, mesmo assim, há uma profunda beleza na vida. Beleza pungente que não se revela a olhares domesticados e viciados em filmes açucarados.
Em Biutiful, Bardem (numa de suas melhores atuações, quase beliscando o Oscar de melhor ator em 2011) é Uxbal, um pai de família com poderes mediúnicos que, para sustentar os filhos, vai contra as próprias regras espirituais e comercializa o uso de seus talentos psíquicos. Vai também contra as regras do mundo dos homens, e coordena uma rede de venda de produtos falsificados e de exploração de imigrantes ilegais asiáticos e africanos. Uxbal é “todo errado”, mas não dá para julgá-lo, sobretudo ao constatarmos que ele faz o que faz por amor aos filhos.
As coisas só pioram: Uxbal descobre que tem câncer de próstata e pouco tempo de vida. Confronta-se, assim, com a inexorabilidade de sua própria limitação, com as imposições inegociáveis de Saturno e Plutão. Quando você pensa que as coisas já ficaram péssimas e não há mais para onde afundar, Iñarritu (o diretor) mostra que é possível, sim, que tudo fique muito pior. E é aí que o espectador pode se questionar: onde há a beleza anunciada no título do filme? Seria uma ironia do diretor?
Poucas vezes o nome de um filme sintetizou tão bem o espírito de sua história, como no caso de Biutiful. Somos, de certa maneira, como a criança do filme que, ao fazer um exercício de inglês, escreve o termo com pequenos erros. Assim como a filha de Uxbal, nós sabemos o que é a beleza, mas somos ainda muito imaturos para descrevê-la corretamente e, assim, cometemos erros. A beleza não deixa de ser o que é, e é possível compreendê-la mesmo quando torta se apresenta.
Há muita beleza no filme, numa intensidade tão ardente que chega a doer. Há beleza em constatar que, a despeito de toda a desgraça e miséria, a despeito de todo infortúnio e horror, o amor persiste. O amor de Uxbal por seus filhos e por sua mulher psicótica. O amor de todas aquelas pessoas entre si, mesmo num contexto de miséria extrema, como algo que torna minimamente possível suportar o insuportável. E Iñarritu demonstra a existência deste amor, valendo-se de sutilezas: aumenta o volume do som da pulsação cardíaca quando Uxbal e sua filha se abraçam, por exemplo. É nas sutilezas que a beleza se revela.
Assistir a Biutiful é se dispor a se deixar incomodar, angustiar. De fato, não é um filme comum, feito para agradar à maioria das pessoas. Seu objetivo não é transmitir leveza, nem muito menos entreter. Desta vez, Iñarritu não se dispôs ao entretenimento, e se fez canal de Saturno e de Plutão, ao esfregar na cara do espectador toda a podridão da miséria, da morte e do desespero, tudo isso que faz parte da vida.
Vida que, como se canta por aí, “é bonita, é bonita e é bonita”. Mesmo quando está toda torta e errada. Mesmo quando se escreve torta por linhas certas.
Lia Domingues diz
E assim se prova, mais uma vez, que astrologia consegue explicar nossas dores de um jeito poético, pelas mesmas linhas tortas que usamos para avaliar belezas e suas formas distintas…