A bateria, como um todo, é regida pelo
elemento Fogo. Mas cada instrumento tem personalidade própria
e regência específica. Juntos, constituem mais um microcosmo
em que a estrutura astrológica se revela.
A bateria é a base, o que dá o ritmo
da escola. Ritmo é assunto de Netuno, mas pulsação
é função cardíaca. Quem rege o coração
é Leão, e dizer que a bateria é o coração
da escola virou uma espécie de frase feita. Por outro lado,
tambores, de maneira geral, costumam ser simbolizados por Marte,
talvez pela sua conotação guerreira, talvez pela forma
como são tocados - pancadas, atritos, tudo que exige expressão
agressiva da energia muscular.
Algumas expressões usadas pela comunidade
carnavalesca podem ajudar a identificar associações
astrológicas: "esquentar os tamborins",
"inflamar a escola" etc. Tudo remete ao elemento
Fogo e seus três signos, Áries, Leão e Sagitário.
O papel da bateria é insuflar vida no desfile da escola.
É o fator dinâmico que faz a diferença entre
uma agremiação carnavalesca e um mero desfile de carros
alegóricos. Através da bateria, incorporam-se ao desfile
elementos imponderáveis, mas de importância fundamental
para seu sucesso, como o ritmo, a empolgação e a alegria.
Nas religiões afro-brasileiras, o toque dos tambores é
utilizado para a indução do transe, criando condições
para o contato com o invisível. O ritmo frenético
desmonta a estabilidade da matéria e abre caminho para a
transcendência.
O fogo atua de forma semelhante, produzindo reações
químicas na matéria para liberar energia. As chamas
se elevam aos ares, escapando à ação da gravidade.
Não podem ser aprisionadas e duram apenas enquanto existe
a conjugação dos fatores que lhes permitem a existência,
comburente e combustível. O fogo exaure e vivifica a matéria,
possibilitando a manifestação do espírito.
Sob a regência geral do elemento fogo, a bateria
desdobra-se num conjunto de instrumentos que apresentam, cada um,
características diferenciadas e regência específica.
A ênfase neste ou naquele instrumento dá à bateria
de cada escola uma textura timbral própria, normalmente em
consonância com seu mapa de fundação.
Caixas de guerra e taróis
As caixas de guerra são de origem militar.
Dão calor à bateria, sendo responsáveis pelo
clima frenético da massa sonora. As caixas e taróis
de vários tamanhos, que constituem o segmento principal de
toda bateria, são regidos por Marte e Áries, significadores
de calor, atividade, guerra e descargas de adrenalina. Não
há que esquecer que a bateria das escolas de samba, assim
como as orquestras do frevo pernambucano, sofreram a influência
das bandas militares a que muitos de seus integrantes pertenciam.
Surdo de marcação
O surdo é um instrumento sombrio, cujo som
cavernoso parece vir do fundo da terra e serve de referência
estruturadora para toda a divisão do colorido rítmico.
Seu regente é Saturno. A bateria da Estação
Primeira de Mangueira, por exemplo, destaca-se das demais pelo uso
diferenciado do surdo de marcação. A maioria das escolas
utiliza também o surdo de resposta, que dá um toque
no contratempo da batida principal. Já a Mangueira marca
cada compasso apenas com um toque seco, uníssono, sem firulas,
o que dá a sua bateria uma sonoridade única e facilmente
reconhecível. A Mangueira, escola conservadora (Lua em conjunção
com Saturno em Capricórnio) define a textura de sua bateria
por uma diferenciação saturniana.
A libidinosa cuíca
A cuíca é o instrumento mais escandalosamente
sexuado do carnaval. Lembra na aparência um tambor comum,
mas a mão que fica por cima do instrumento serve apenas de
apoio para a ação da outra, que se mete pelo buraco
da cuíca para friccionar o eixo interno escondido dos olhos
do público. É a metáfora da bolinação,
ato ao mesmo tempo oculto e exibido, já que ninguém
vê o trabalho da mão do instrumentista, mas percebe
seu sorriso inequivocamente libidinoso.
As cuícas são debochadas, exibicionistas,
galhofeiras, em completa oposição à seriedade
dos surdos. Permitem ao instrumentista toda sorte de contorsões
- e este é um instrumentista que não precisa obedecer
à formação militar do restante da bateria,
tendo liberdade para fazer evoluções individuais.
A cuíca partilha do anticonvencionalismo e
do espírito transgressivo de Urano. Sua capacidade de despertar
sugestões eróticas, assim como a própria forma
como é tocada - colada ao instrumentista, na região
do baixo ventre - lembram Escorpião. Urano em Escorpião
complementado com a leveza de Gêmeos e a estridência
de Leão.
Tamborins e chocalhos
Os tamborins são uma herança dos saltimbancos
medievais e dos festins mesopotâmicos. Não têm
origem africana, mas mediterrânea. Não exigem muito
esforço físico para sua execução. Têm
uma sonoridade delicada, que preenche os vazios da marcação
pesada, e sua função é dar colorido à
bateria. Servem para floreios, o que já seria suficiente
para atribuir-lhes uma regência venusiana.
O mesmo pode-se dizer dos chocalhos e outros instrumentos
leves, normalmente colocados à frente da bateria e destinados
a produzir nuances de efeitos timbrais. São instrumentos
leves, de sonoridade aguda, e tendem, cada vez com maior freqüência,
a ser executados por mulheres, enquanto o restante da bateria continua
sendo um território basicamente masculino. No caso dos chocalhos
e de qualquer outro instrumento em forma de cabaça (formas
arredondadas e côncavas que contêm grãos ou outros
objetos que produzem ruído ao serem sacudidos), podemos atribuir
também uma regência lunar, já que a Lua é
significadora do útero ou de qualquer outro "saco"
que contenha alguma coisa.
Pandeiro e caixas de fósforo
O pandeiro percorreu uma trajetória semelhante
à do tamborim, mas produz um som mais cheio, que mescla o
toque seco no couro com a reverberação metálica
dos pequenos discos de alumínio nas bordas. É um instrumento
solista, um dos poucos que, tocados isoladamente, consegue reproduzir
a textura rítmica do samba. Aparece com freqüência
nas rodas de samba que reúnem compositores em torno de mesas
de botequins. Como o violão, é o veículo de
expressão do criador, auxiliando-o a exteriorizar o primeiro
esboço da nova canção, estando ligado, portanto,
à casa 5. É tocado na altura do peito, perto do coração,
estando fortemente vinculado ao conceito de pulsação.
Sua própria forma - um disco maior, de couro e madeira, em
torno do qual distribuem-se pequeninos discos metálicos -
lembra um sistema solar em miniatura.
Na intimidade das rodas de samba, pode ser substituído
pela caixa de fósforos, que produz efeito semelhante. Fósforos
existem para produzir fogo, da mesma forma como o ato de compor
um novo samba revela a centelha criadora do compositor. Pandeiros
e caixas de fósforo são instrumentos solares, significados
por Leão na casa 5.
Leia outros textos de Fernando
Fernandes.
|