O drama da Portela
A tradicional escola do bairro carioca de Oswaldo
Cruz protagonizou o episódio mais dramático dos desfiles
de escolas de samba, não só deste como de muitos anos.
Tudo começou com o incêndio do carro abre-alas, ainda
no barracão, na tarde de domingo, 6 de fevereiro. O fogo
começou por volta das 14h, por motivo desconhecido, e em
dois minutos devorou todas as figuras de monstros e bestas de isopor
que representavam o mal. O enorme carro de 30 metros, além
de trazer a águia que simboliza a agremiação,
deveria representar "as coisas ruins do mundo", introduzindo
o enredo Nós podemos: oito idéias para mudar o
mundo, baseado numa Declaração da Assembléia
da ONU para as metas do milênio.
Em apenas um dia o carro estava reconstruído
e pronto para o desfile na madrugada de segunda-feira. Contudo,
as asas da águia não puderam ser encaixadas corretamente,
levando a diretoria a optar por desfilar com uma águia sem
asas no carro abre-alas. A opção, segundo o presidente,
deveu-se ao risco de a escola perder pontos caso não iniciasse
o desfile conforme o regulamento. Começaram ali as primeiras
lágrimas dos componentes.
Contudo, a Portela guardava uma surpresa. Havia uma
segunda águia, igualmente gigantesca, que passaria no último
carro, no qual estaria a Velha Guarda e também um painel
em homenagem ao embaixador Sérgio Vieira de Mello, morto
em atentado terrorista no Iraque. Todavia, a quebra do carro, nos
minutos finais do desfile, trouxe o momento mais dramático:
o carro não pôde desfilar, e os componentes da Velha
Guarda, ao descer do veículo, encontraram o portão
de acesso à passarela já fechado, devido ao encerramento
do tempo. Em prantos, entre a revolta e o desespero, muitos septuagenários
e octogenários tiveram de receber atendimento de emergência
para crises hipertensivas e desmaios. Quase uma hora depois, a passagem
da Velha Guarda foi liberada. E eles caminharam toda a avenida,
sozinhos e sem bateria, cantando o samba da escola e recebendo uma
das maiores consagrações da história do sambódromo.
Comecemos pelo mapa do incêndio do carro abre-alas:
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Incêndio do carro abre-alas da Portela
- 6.2.2005, 14h HV - Rio de Janeiro, RJ - 22s54, 43w12. |
Para entender este mapa é preciso reproduzir
alguns trechos do artigo A Acadêmicos
do Zodíaco saúda o povo e pede passagem:
Esta conotação arquitetônica dá
às alegorias um sentido Touro-Capricórnio. E, quanto
mais altas e verticalizadas forem as alegorias, mais forte será
o componente libriano na sua concepção. (...) Ainda
podem participar como co-significadores das alegorias os planetas
Júpiter (quando os carros são enormes e magnificentes
- um indicador de hipertrofia) e Urano (quando os carros são
dotados de recursos computadorizados e efeitos especiais, uma tendência
recente).
Um carro alegórico que merece regência
própria é o abre-alas, aquele que abre o desfile,
sendo precedido apenas pela comissão de frente. O abre-alas
está duplamente vinculado ao Ascendente, à casa 1
e ao primeiro signo, Áries, seja porque é o portador
da identidade da escola - especialmente no caso da Portela, que
sempre traz a águia, seu símbolo tradicional - seja
porque é o que vem na frente, iniciando a apresentação
do enredo.
O artigo, escrito em 1998, ganha com o mapa do incêndio
uma inesperada confirmação: o Ascendente do evento
é Touro, um significador geral de alegorias. Júpiter,
significador de grandiosidade e magnificência, encontra-se
em Libra, signo de estruturas aéreas, em quadratura com Saturno
e Lua, no eixo da estrutura (Câncer-Capricórnio). Urano,
planeta do inesperado, é o mais angular da carta, situando-se
próximo do Meio do Céu. Mas o elemento determinante
na interpretação é a presença do Nodo
Norte e da Parte da Fortuna conjuntos em Áries, fechando
uma Grande Quadratura com Júpiter, Saturno e Lua. Áries
é o próprio significador específico dos carros
abre-alas, o que nos remete à posição de seu
regente, Marte: vamos encontrá-lo na cúspide da casa
8 (morte e tributos) em Sagitário (signo de objetos hipertrofiados,
exagerados) e em conjunção com Plutão (destruição
radical, transmutação).
Vamos lembrar mais uma vez que o incêndio destruiu
um carro que carregava uma águia (símbolo da identidade
da Portela - casa 1) e imagens de monstros e bestas, já inseridas
no contexto do enredo (monstros e bestas lembram Plutão na
8).
Quando a Portela tenta entrar na Sapucaí,
na madrugada de terça-feira, com um carro abre-alas remendado
às pressas, o mapa do desfile mostra o Ascendente em Sagitário
com Plutão e Marte em plena casa 1. Quem ocupa agora a casa
8 é Saturno, formando quadratura com Júpiter, regente
do Ascendente. E - surpresa! - mais uma vez Urano é o planeta
mais angular.
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Portela - Início do desfile - 8.2.2005,
1h46 HV - Rio de Janeiro, RJ - 22s54, 43w12. |
Plutão na 1 parece dizer que a Portela precisava
com urgência entender a necessidade de purificar-se e resgatar
sua identidade. Plutão, quando bem trabalhado, leva-nos a
descartar aquilo que é acessório, às vezes
de forma radical e transformadora. Contudo, o que a Portela perdeu
três vezes em dois dias não foi o acessório,
e sim o essencial, simbolizado pela águia: sua própria
alma, enfim. Sucessivamente, a águia foi queimada, decepada
e finalmente abandonada no início da avenida, numa seqüência
que parece simbolizar um processo agudo de perda de referências.
Mais significativo e impactante foi o drama vivido
pela Velha Guarda, impedida de desfilar por causa de um carro
travado e de um portão fechado (duas inequívocas
images saturninas!). A Velha Guarda, conforme escrevemos no artigo
sobre o simbolismo astrológico
nas escolas de samba, tem uma série de conotações,
lembrando recursos (casa 2), raízes (casa 4), sistema imunológico
(casas 6-12) e assim por diante. E mais:
Seu marcado conservadorismo é traço
taurino, enquanto a idade provecta e a respeitabilidade apontam
para Saturno. O que há de comum em tudo isso é a absoluta
identificação com casas e signos femininos. Junto
com a ala das baianas, a Velha Guarda constitui o aspecto mais yin
das escolas de samba.
Por outro lado, Plutão em destaque costuma
ser encontrado com freqüência em mapas de eventos que
pecam pelo exagero, pela ausência de sutileza, pelo objetivo
de impressionar a qualquer custo. A Portela escolheu um enredo pretensioso
ao decidir mostrar oito propostas para mudar o mundo - mais
Plutão em Sagitário na 1 impossível! Veio gigantesca
e com problemas de harmonia, o que acabou por desenraizá-la
e fazê-la perder contato com os próprios trunfos. Passaram
os portelenses de superfície, sem vínculo com o passado
da escola, e ficaram para trás os baluartes. Sem identidade
(casa 1) e sem os alicerces (casa 4), a escola naufragou.
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Final do desfile da Portela: o portão
se fecha impedindo a entrada da Velha Guarda. 8.2.2005, 3h06
HV - Rio de Janeiro, RJ - 22s54, 43w12. |
Por volta das 3h06 da madrugada, quando o portão
se fechou diante dos desesperados componentes da Velha Guarda, Plutão
e Marte haviam acabado de cruzar o Ascendente. É o retrato
de um ato de violência (Marte), mesmo que involuntária,
contra os baluartes (Capricórnio no Ascendente e Saturno
em exílio na casa 7). Plutão agrega intensidade e
dramaticidade ao momento, além de simbolizar, especificamente,
o ato de mutilação que a escola perpetrava contra
si própria.
Imperatriz Leopoldinense
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