A porta-estandarte corporifica todas as contradições
dos contatos entre Europa e África no passado do Rio de Janeiro.
Ao evoluir escoltada pelo mestre-sala, ela tanto pode ser a princesa
africana que luta pela liberdade quanto a imitação
tropical da velha nobreza.
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O estandarte é o símbolo distintivo
da escola de samba. Revela a verdadeira natureza do desfile, que
não é apenas um exercício lúdico, mas
uma competição entre comunidades, resquício,
talvez, das guerras étnicas entre as diversas nações
africanas. Contudo, a rivalidade entre as comunidades não
tem base étnica, e sim geográfica. Nas primeiras décadas
de sua existência, as escolas correspondiam a territórios
geograficamente delimitados, trazendo, no próprio nome, a
indicação da origem. É o caso da Estação
Primeira da Mangueira (Morro da Mangueira), da Portela (Estrada
do Portela, em Oswaldo Cruz), do Império Serrano (Morro da
Serrinha, em Vaz Lobo), do Acadêmicos do Salgueiro (Morro
do Salgueiro, na Tijuca), da Unidos de São Clemente (Morro
de Dona Marta, na rua São Clemente) e assim por diante. Aos
poucos, a crescente interferência dos líderes da contravenção
organizada - os banqueiros do jogo do bicho - e a chegada maciça
de foliões de classe média dissolveu em parte as fronteiras
territoriais e estabeleceu outros valores distintivos. A adesão
a esta ou aquela escola deixou de ser uma questão automática,
determinada pelo bairro em que se mora, para passar a ser uma escolha
por identificação ideológica, afetiva, estética
ou utilitária.
A competição entre as escolas é
uma extensão carnavalesca de outras competições
mais sérias, que se dão no nível do "mundo
real": as brigas entre gangs de comunidades, que tumultuam
as saídas dos bailes funk nas noites de fim de semana, e
as disputas de prestígio entre os patronos das agremiações.
Em termos puramente carnavalescos, há também muitos
interesses em jogo, já que o sucesso no desfile significa
valorização no mercado para uma infinidade de profissionais
que fazem dele o trampolim para vôos mais altos: cenógrafos,
modelos, aderecistas, compositores, todos têm a ganhar ou
a perder, o que transforma a passarela numa arena. É o combate-espetáculo,
tão importante na cultura carioca quanto foram os torneios
medievais de cavalaria e as lutas de gladiadores na Roma imperial.
A escola de samba é uma agremiação
(casa 11) recreativa (Sol, Vênus, casa 5) mas também
guerreira (Marte) cujos combates se dão num espaço
circunscrito (a passarela, casa 5) e de acordo com um regulamento
(Júpiter).
No aspecto recreativo, o menos importante parece
ser Vênus, pois não se trata de lazer pelo lazer, mas
do exercício de afirmação de uma importante
parcela da população da cidade, que se empenha para
transformar o desfile no "maior espetáculo da Terra":
Sol e Marte envolvidos num esforço coletivo, onde ocorre
um imenso investimento de energia física com vistas à
produção de energia simbólica. Poucas cidades
do mundo têm uma necessidade tão intensa de produzir
manifestações periódicas do poder de sua coletividade.
O Rio de Janeiro torna-se, em função do Carnaval,
uma cidade especial, e cobra do mundo o tributo do reconhecimento
de sua singularidade.
Pessoas com Netuno no Ascendente costumam ter dificuldade
para estabelecer limites e reconhecer sua auto-imagem. Definir uma
identidade torna-se um problema específico, podendo gerar
atitudes compensatórias. Ivan IV, o Terrível, czar
da Rússia no século XVI (25.8.1530, 18h, LMT, Moscou),
tinha o Sol em Virgem na casa 7 e Netuno em Peixes como único
planeta de casa 1. Após uma infância vigiada por tutores,
em que jamais sentiu-se seguro para ser autêntico e espontâneo,
afirmou sua personalidade mediante seguidos genocídios, em
que dizimou populações civis de cidades inteiras.
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Fundação do Rio de Janeiro
- 1.3.1565 - 11h49 - 22s54, 43w15. |
O Rio de Janeiro também padece da problemática
netuniana e da ênfase no eixo Peixes-Virgem. A excessiva seriedade
com que seu povo trata o carnaval pode ser entendida como reflexo
de uma atitude compensatória, em que a indeterminação
da auto-imagem e a dificuldade de definir uma vocação
coletiva (Netuno no Ascendente regendo a 10) produziram como resposta
uma exibição totalitária de poder (Sol conjunto
a Plutão no Meio do Céu). Júpiter na 3, regente
do Descendente e co-regente do Meio-céu, completa o quadro
mostrando que tal exibição se dá por um ato
exacerbado de comunicação - mais de cem mil pessoas
na avenida, ao longo de duas noites - mas com a minuciosa precisão
de Virgem: o luxo ostensivo das escolas de samba é resultado
de um paciente trabalho de detalhes, concebido e executado artesanalmente.
Mercúrio, regente do Ascendente, em recepção
mútua com Júpiter e Netuno, informa, finalmente, que
a identidade do Rio de Janeiro é uma conquista coletiva.
Não é estranhável, pois, a importância
no desfile da exibição de um símbolo marcianamente
guerreiro, como o estandarte. Contudo, ele é portado por
uma mulher ricamente vestida escoltada por um homem que volteja
em torno dela como a mariposa em torno da luz. Ambos lembram figuras
de uma corte européia do século XVIII e alguns dos
passos do mestre-sala denunciam uma impensável referência
ao minueto.
O que faz um casal "europeu" no meio de
uma festa centrada nos valores da cultura afro-brasileira? Por que
não uma rainha negra, escoltada por seus guerreiros? Parece
que chegamos a uma questão nuclear da cultura carioca, cujas
raízes encontram-se em dois séculos e meio de dominação
colonial.
O Brasil se curva à
Europa... ou a Europa se curva ao Brasil?
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