Normandos, canibais e piratas
A carta solar da partida apresenta, pela terceira
vez, uma forte ênfase em Câncer. Desta vez, Sol, Saturno
e Júpiter estão em conjunção neste signo,
todos em oposição a Netuno em Capricórnio.
Marte em Virgem faz oposição a Urano em Peixes. A
viagem não poderia ter sido pior: o escorbuto (doença
provocada pela carência da vitamina C) dizimou parte da tripulação;
depois de enfrentar tormentas, L'Espoir ancorou nas proximidades
da foz do rio Paraíba, numa praia habitada pelos índios
mais perigosos do litoral, os ferozes e antropófagos Goitacá
de origem tapuia; em fuga, Gonneville chegou à Bahia, onde
reabasteceu o navio e rumou para a travessia do Atlântico.
Já bem perto de casa, no canal da Mancha, L'Espoir
foi atacado primeiro por um pirata inglês, e em seguida por
um pirata da Bretanha (região francesa vizinha à Normandia).
Para escapar com vida, os tripulantes do L'Espoir jogaram
o próprio navio contra as pedras e fugiram a nado em direção
à costa.
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L'Espoir deixa São Francisco do Sul
- carta solar - 3.7.1504 - 26s14, 48w38 |
O índio catarinense
que virou burguês
Em 20 de maio de 1505, os 28 sobreviventes entram
a pé em Honfleur, entre eles o próprio Binot Paulmier
de Gonneville e seu novo afilhado, Essomeriq. O navio estava perdido
com toda a sua carga, mas Gonneville cumpriu a promessa feita a
Arosca de cuidar bem de Essomeriq. Este, convertido ao cristianismo
e batizado com o próprio nome do protetor, casou-se com Marie
Moulin, filha de Binot Paulmier, e viveu em Honfleur até
os 94 anos, deixando vasta descendência. Um dos netos do príncipe
indígena foi o abade Jean Paulmier que, um século
e meio depois, em 1658, solicitaria ao papa o envio de missionários
ao sul do Brasil.
O que há de comum nas cartas dos três
eventos - a partida do Espoir de Honfleur, a chegada em São
Francisco do Sul e a partida de Santa Catarina - é a permanente
ênfase em Câncer e em aspectos envolvendo Netuno e os
fatores mais importantes de qualquer carta, Sol e Lua. O toque netuniano
responde pelo próprio caráter da viagem como uma aventura
oceânica docemente enganosa, movida pelo sonho de roubar aos
portugueses uma parte da fabulosa riqueza das Índias. Explica
também as sucessivas perdas de rumo e as encrencas em que
o navio se meteu, enfrentando calmarias, tormentas e, por fim, ataques
de piratas.
De Carina a Catarina
Um outro dado digno de atenção é
a força de Júpiter na carta da chegada a São
Francisco do Sul. Além de ser o único planeta dignificado
(está em Câncer, signo de sua exaltação,
em aspectos fluentes com Urano e com a Lua, regente de Câncer),
Júpiter também apresenta uma conjunção
quase exata com a estrela Canopus, da constelação
de Carina.
Carina significa a quilha do navio que carregava
Jasão e os argonautas em busca do velocino de ouro. Está
próxima das constelações de Puppis (proa),
Pyxis (bússola) e Vela, formando com estas
um conjunto que Ptolomeu identificava sob a denominação
geral de Argus (o navio de Jasão). Na Astrologia Clássica,
está relacionada a eventos relativos ao mar e à navegação,
assim como aos rios e fontes. Dizia-se que poderia significar morte
por afogamento, quando em conexão com a casa 8. Segundo Ptolomeu,
as principais estrelas deste grupo têm a natureza de Júpiter
e Saturno.
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Santa Catarina de Alexandria
foi assim retratada no Renascimento: uma santa culta e versada
em Filosofia. A estrela Canopus era atribuída a ela. |
A estrela mais brilhante de toda este conjunto de
constelações, e a segunda mais brilhante do céu
depois de Sirius, é Canopus. Seu nome vem do principal piloto
da frota de Menelau, morto quando do retorno da Guerra de Tróia,
em 1183 a.C. Em homenagem a Canopus, os gregos erigiram uma cidade
com o mesmo nome, e foi lá que Ptolomeu fez suas observações
do céu. Sempre associada ao mar, a estrela Canopus era chamada
pelos hindus de Agastya, um filho de Varsuna, deusa das águas.
Considerava-se que era promissora de imunidade contra doenças
e de sentimentos piedosos, transformando o mal em bem. Desde o século
VI, é chamada de Estrela de Santa Catarina, pois,
ao levantar-se no céu, indicava para os peregrinos gregos
e russos a localização do convento dedicado à
santa no Sinai. Mas quem foi Santa Catarina? É o que veremos
a seguir.
Uma
santa muito atrevida e a respeitável esposa de um navegador
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