Ele ali estava, sedutor e cheio de leveza, como
se conversasse com sua própria sombra. Mas o que o Ar teria
a dizer à terapeuta?
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Meu cliente das quatro horas acabara de ligar
avisando que não viria. Mal havia ligado o som para
relaxar quando a campainha soou.
-Será que voltou atrás? Pensei.
Fui atender ao interfone e a voz do porteiro
avisou:
-Está aqui um jovem que pede licença
para vê-la. Diz que um amigo a recomendou. Chama-se
Ar. Posso mandar subir?
Mal acabei de desligar e a porta já
ressoava um rápido toc-toc.
Pouco convencional este moço...
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Não tive tempo de completar o pensamento,
pois ele entrou ligeiro, leve e sorridente e foi falando:
-Não sei se é seu estilo, mas ouvi
falar que há uns terapeutas lacanianos que usam um tal de
tempo lógico e achei que poderia tomar um pouco do seu para
conversarmos. É claro que sem atrapalhar suas consultas!
Não quero inter... Você gosta de Lacan? Caso seu próximo
cliente esteja para chegar volto em outro dia, mas estava passando
por aqui e... Como meu amigo Fogo disse que eu iria gostar de sua
conversa... Bem, aqui estou! Muito prazer!
Eu ainda não tinha me recuperado da surpresa
e ele ali estava, sedutor e cheio de leveza, como se conversasse
com sua própria sombra, enquanto pegava os objetos ao alcance,
examinava-os e, sentando no sofá, me olhava como se já
fôssemos velhos conhecidos.
Como não parava de perguntar sem esperar resposta, aproveitei
para olhá-lo com atenção, dando graças
ao faltoso pela oportunidade que me propiciou de entrar em contato
com aquela brisa em forma de gente. Ou seria uma ventania?
Tinha o corpo ágil como de um garoto e, na
verdade, seu rosto moleque não aparentava qualquer idade.
Em poucos minutos... lá estava eu, informada
das principais notícias do dia, coisa que minha rotina de
trabalho não costumava favorecer.
Em certo momento parou e pareceu que me via pela
primeira vez.
Seus movimentos serenaram e uma sutil elegância
suavizou-lhe os traços. Pareceu-me mais bonito e agradável
quando sua conversa mudou de ritmo e de rumo. Começou a perguntar-me
sobre os livros em minha estante.
-Percebo que gosta de arte. Disse, pegando um volume
sobre a obra de Magritte.
Por mais de meia hora dissertou sobre surrealismo
sem deixar, entretanto, de ouvir minhas opiniões e ponderando
de modo gentil e interessante.
Notei que estava longe de se aprofundar em algum
assunto pessoal quando levou a conversa para questões humanitárias
e sociais. Usava o pronome nós e parecia que, neste
"nós", englobava a todos no planeta!
A partir daí brindou-me com as teorias mais
fantásticas sobre as melhorias que a ciência traria
ao mundo no próximo milênio, as viagens espaciais e
os projetos de mapeamento dos genes Humanos.
Como o tempo não parecia ter limites para
este jovem e a hora de meu próximo cliente estivesse próxima,
resolvi interrompê-lo perguntando sobre seus amigos. Afinal,
eu estava intrigada por saber algo mais pessoal sobre, em suas palavras,
meu novo companheiro.
-Ah! O Fogo é meu melhor amigo! Às
vezes diz que sou muito teórico, mas nos damos muito bem,
embora, em alguns momentos, eu o ache muito impulsivo. Ele me incentiva
e eu o ajudo com meus contatos e conhecimentos.
-Já as irmãs, Terra e Água,
você sabe... Gosto delas, mas... Terra não me leva
a sério. Vive querendo que eu prove a validade de minhas
idéias e é muito lenta. Não consegue acompanhar
meu raciocínio. No entanto, gosto quando digita os trabalhos
que necessito apresentar e traz meu lanche quando me perco entre
meus estudos.
-Água é muito linda e doce e me olha
como se eu fosse um Deus, principalmente quando consigo dizer tudo
aquilo que deseja e não consegue. Mas ela se preocupa em
excesso e muitas vezes me atrapalha os movimentos... Não
consegue sair daquela casca e, é tão intensa! Mas
com ela sinto-me menos duro.
Dizendo isto, atendeu seu celular que tocava e, enquanto
falava, acenou-me, girando as mãos indicando que voltaria
depois.
Saiu pela porta, piscou-me seu olho matreiro e, novamente
sem me dar tempo, foi-se...
Para Alberto, companheiro fiel de toda uma longa vida.
Angela Schnoor.
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