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A dupla chama: amor e erotismo
AUTOR: Octavio Paz
Editora Siciliano - 196 páginas - 1994

A possibilidade de convergência dos conhecimentos humanos

Em sua origem, na Grécia Antiga, as fronteiras entre as ciências e a filosofia eram indiscerníveis; os primeiros filósofos foram também e sem contradição físicos, biólogos, cosmólogos. O exemplo maior é o de Pitágoras: matemático e fundador de um movimento filosófico-religioso. Um pouco mais tarde começa a separação e Sócrates a consuma: a atenção dos filósofos se desloca em direção ao homem interior. O objeto filosófico por excelência, mais que a natureza e seus mistérios, foi a alma humana, os enigmas da consciência, as paixões e a razão. Contudo, não diminuiu o interesse pela physis e os segredos do cosmo: Platão cultivou a matemática e a geometria; Aristóteles se interessou pelas ciências biológicas; Demócrito e o atomismo; os estóicos elaboraram um sistema cosmológico que tem aspectos extremamente modernos... Com o fim do mundo antigo precipitou-se a separação; na Idade Média as ciências começaram a se desenvolver e foram mais práticas que teóricas, enquanto a filosofia converteu-se em serva do saber supremo, a Teologia. No Renascimento começa, de novo, a união entre o saber científico e a especulação filosófica. A aliança não durou muito: as ciências conquistaram aos poucos sua autonomia, especializaram-se e cada uma se constituiu num saber separado; a filosofia, por seu lado, transformou-se num discurso teórico geral, sem bases empíricas, desdenhoso ddos saberes particulares e afastado das ciências. O último grande diálogo entre a ciência e a filosofia foi o de Kant. Seus sucessores dialogaram com a história universal, como Hegel, ou com eles próprios, como Schopenhauer e Nietzche. O discurso filosófico voltou-se contra si próprio, examinou seus fundamentos e se interrogou: crítica da razão, da vontade, da filosofia e, por fim, da linguagem. Mas os territórios que a filosofia abandonava, as ciências ocupavam - do espaço cósmico ao espaço interior, dos átomos e astros às células e destas às paixões, às volições e ao pensamento.

O último grande diálogo entre a ciência e a filosofia foi o de Kant.
Um detalhe impressionante sobre Kant é que ele jamais saiu de sua cidade natal, Koenigsberg.  

À medida que as ciências se constituíam e fixavam os territórios de sua competência, dava-se um processo duplo: primeiro, a progressiva especialização dos conhecimentos; depois, em direção contrária, a aparição de linhas de convergência e de pontos de intersecção entre as diversas ciências. Por exemplo, entre a física e a química ou entre a química e a biologia. De um lado, os limites de cada especialidade: o até aqui chega a esta ou aquela disciplina; de outro, o desde aqui começa um novo território que, para ser explorado, necessita do concurso de duas ou mais ciências. No último meio século este processo de cruzamento entre as disciplinas se acelerou: o elemento tempo, que jogava um papel secundário, sobretudo na física e na astronomia, converteu-se num fator determinante. Primeiro, a relatividade de Einstein imprimiu movimento, por dizer assim, ao universo de Newton, no qual o espaço e o tempo eram invariáveis. Depois, a hipótese do big-bang introduziu o tempo na especulação científica: se o universo teve um começo também terá, inexoravelmente, um fim. Ou seja: o cosmo tem uma história e um dos objetos da ciência é conhecê-la e contá-la. A física tornou-se uma crônica do cosmo. Novas perguntas se desenharam no horizonte; questões que a ciência, desde Newton, desprezara, tais como a origem do universo, seu fim provável e a direção da flecha do tempo: está obrigada a seguir a curvatura do espaço e assim voltar sobre si própria? Essas questões, provocadas pelo próprio desenvolvimento da física, são sem dúvida legitimamente científicas - mas também são de ordem filosófica. É notável que se quer formar a intersecção da ciência mais moderna e da mais antiga filosofia: as perguntas que hoje se fazem os cientistas se fizeram, há 2.500 anos, os filósofos jônicos, fundadores do pensamento ocidental. Submetidas à rigorosa crítica da ciência, essas perguntas hoje voltam e são tão atuais como no raiar da nossa civilização. É o rumo que as especulações vêm tomando que nos revela que a moderna cosmologia volta continuamente às respostas que nossa tradição filosófica e religiosa deram às perguntas sobre o começo do mundo.

A grande lição filosófica da ciência contemporânea consiste, precisamente, em nos ter mostrado que as perguntas que a filosofia não parou de fazer durante dois séculos - as perguntas sobre a origem e o fim - são as que de fato contam. As ciências, graças ao seu prodigioso desenvolvimento, tinham de enfrentar esses temas em algum momento; foi uma bênção para nós que esse momento tenha sido o do nosso tempo. É uma das poucas coisas, neste crepuscular fim de século, que acende em nosso ânimo uma pequena luz de esperança. Em 1954, numa carta a um colega, Einstein dizia: "O físico não é nada mais do que um filósofo que se interessa por certos casos particulares; de outro modo seria só um técnico". Poderíamos acrescentar que esses casos particulares, no transcurso de uma geração, revelaram ser da maior importância. Em outra ocasião, ao falar de si próprio e de sua obra, Einstein escreveu: "Eu não sou realmente um físico, mas sim um filósofo e até um metafísico". Se esta frase fosse escrita agora, talvez Einstein a tivesse formulado de maneira um pouco diferente: "Sou um físico e por isso mesmo sou um filósofo e até um metafísico". Juízo perfeitamente aplicável aos cosmólogos especulativos contemporâneos.

O esquecimento da unidade e da identidade humana

Rotas de navegação deste artigo

Parte 1 - A chama vermelha: a carne do corpo
Parte 2 - A chama azul: o corpo do espírito
Parte 3 - Breve história sobre o conhecimento do Homem e do Mundo
Parte 4 - A possibilidade de convergência dos conhecimentos humanos
Parte 5 - O esquecimento da unidade e da identidade humana
Parte 6 - A consciência humana
Parte 7 - Teorias sobre o funcionamento da mente humana


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