A dupla chama:
amor e erotismo
AUTOR: Octavio Paz
Editora Siciliano - 196 páginas - 1994
A chama azul: o corpo do
espírito
O amor: esta transcendência que a carne comete
e que parece ao mesmo tempo sua salvação e uma heresia.
O que é amor? É a chama azul da vela, a chama quase
imperceptível que se eleva sob o fogo intenso e vermelho
da sexualidade. Erotismo e Amor: eis a dupla chama da vida. E eis
como o autor desenlaça o tema que se propõe analisar
ao longo da obra: o nó que as ata, que as torna uma única
e mesma experiência a que nenhum ser humano se safa.
O amor, como lembra Octavio Paz, é o resultado
de uma escolha - mas esta, por sua vez, não é o resultado
de um conjunto de circunstâncias e coincidências? E
essas coincidências, são meras casualidades ou têm
um sentido e obedecem a uma lógica secreta? Afinal,
o encontro precede a escolha e no encontro o fortuito parece determinante.
O encontro é constituído por uma série de fatos
que surgem na realidade objetiva, sem que aparentemente venham guiados
por algum desígnio e sem que nossa vontade participe em seu
desenvolvimento. Por exemplo: eu ando sem rumo certo por uma rua
qualquer e tropeço em uma pessoa; sua figura me impressiona;
quero segui-la, desaparece numa esquina e um mês depois, na
casa de um amigo ou na saída de um teatro ou ao entrar num
café, a mulher reaparece; sorri, falo com ela, me responde
e assim começa uma relação que nos marcará
para sempre. Há mil variantes do encontro, mas em todas elas
intervém um agente que às vezes chamamos sorte,
outras casualidade e outras destino ou predestinação.
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Breton
recria com clarividência poética esses estados
que todos os amantes conhecem no princípio de sua relação:
o saber-se no centro de um tecido de coincidências,
sinais e correspondências.
(Esquerda:
André Breton, precursor do surrealismo)
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Casualidade ou destino, essa série de fatos
objetivos regidos por uma causalidade externa, cruza-se com nossa
subjetividade, nela se insere e transforma-se numa dimensão
do mais íntimo e poderoso em cada um de nós. Breton
lembrou Engels e denominou a interseção das duas séries,
a exterior e a interior, de acaso objetivo. Ambas são
alheias à nossa vontade, ambas nos determinam e sua conjunção
cria uma ordem, um tecido de relações, sobre o qual
ignoramos tanto a finalidade quanto a razão de ser. Essa
conjunção de circunstâncias é acidental
ou possui um sentido e uma direção?
Seja o que for, somos joguetes de forças alheias, instrumentos
de um destino que assume a forma paradoxal e contraditória
de um acidente necessário.
O acaso objetivo cria um espaço literalmente
imantado: os amantes, como sonâmbulos dotados de uma segunda
visão, caminham, cruzam-se, separam-se e voltam a se juntar.
Não se procuram: encontram-se. Breton recria com clarividência
poética esses estados que todos os amantes conhecem no princípio
de sua relação: o saber-se no centro de um tecido
de coincidências, sinais e correspondências. O acaso
objetivo apresenta-se, em suma, como outra explicação
do enigma da atração amorosa, mas deixa intacto o
outro mistério, o fundamental: a conjunção
entre destino e liberdade. Acidente ou destino, sorte
ou predestinação, para que a relação
se realize é necessária a cumplicidade da nossa vontade.
O amor, qualquer amor, implica um sacrifício; apesar
disso, sabemos estar escolhendo, sem pestanejar, esse sacrifício.
Este é o mistério da liberdade, como o viram admiravelmente
os trágicos gregos, os teólogos cristãos e
Shakespeare. Também Dante e Cavalcanti pensavam que o amor
era um acidente que, graças a nossa liberdade, se transformava
em escolha. Seja como for, Breton percebia como são precárias
e ilusórias as idéias com que pretendemos explicar
o enigma da relação amorosa. Esse enigma é
parte de outro maior, o do homem que, suspenso entre o acidente
e a necessidade, transforma sua situação em liberdade.
Breve história sobre o conhecimento
do Homem e do Mundo
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