A dupla chama:
amor e erotismo
AUTOR: Octavio Paz
Editora Siciliano - 196 páginas - 1994
Breve história sobre
o conhecimento do Homem e do Mundo
Mas, como disse, o autor do livro não se resume
a analisar somente a experiência erótica: num ato de
verdadeira transcendência intelectual, vai descortinando outros
horizontes mais vastos, onde quem se insinua é a própria
imagem e gravura deste ser a que chamamos Homem.
Para
Octavio Paz, a ponte entre a eternidade e o tempo, o espaço
estelar e o humano, o céu e a história, desmoronou.
E estamos sozinhos no universo. |
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Octavio Paz começa a descerrar tal cortina
lembrando que desde a Antiguidade greco-romana, apesar das numerosas
mudanças de ordem religiosa, filosófica e científica,
vivíamos num universo mental relativamente estável
que repousava sobre dois poderes aparentemente inalteráveis:
a matéria e o espírito. Eram duas noções
ao mesmo tempo antitéticas e complementares. Uma e outra,
desde o Renascimento, começaram a balançar. No século
XVIII um dos pilares, o espírito, começou a desmoronar.
Paulatinamente abandonou, primeiro, o céu e, depois, a terra;
deixou de ser a primeira causa, o princípio originador
de tudo o que existe; quase ao mesmo tempo retirou-se do corpo e
das consciências. A alma, o pneuma, como diziam os
gregos, é um sopro que se converteu em ar. Psiquê voltou
à sua pátria longínqua, a mitologia. Cada vez
mais, por meio de diferentes hipóteses e teorias, pensamos
que a alma depende do corpo ou, mais exatamente, que é uma
de suas funções. O outro termo, a antiga matéria,
limite extremo do cosmo para Plotino, também foi-se desvanecendo.
Já não é substância nem nada que possamos
ouvir, ver e tocar: é energia que, por sua vez, é
tempo que se espacializa, espaço que se resolve em duração.
A alma ficou corpórea; a matéria, insubstancial. Dupla
ruptura que nos encerrou para sempre dentro de uma espécie
de dois parênteses: nada do que vemos parece ser real e é
invisível aquilo que é verdadeiro. A realidade última
não é uma presença e sim uma equação.
O corpo deixou de ser uma coisa sólida, visível e
palpável: já não passa de um complexo de funções;
e a alma se identificou com essas funções. A mesma
sorte tiveram os objetos físicos, desde as moléculas
até os astros. Ao contemplar o céu noturno, os antigos
viam nas figuras das constelações uma geometria animada:
a própria ordem; para nós o universo deixou
de ser um espelho ou um arquétipo. Todas essas mudanças
alteraram a tal ponto as nossas idéias que tornaram todas
as coisas incompreensíveis, tanto quanto a alma e a matéria.
Para os antigos, o universo era a imagem visível
da perfeição; na noção circular dos
astros e planetas, Platão via a própria figura do
ser e do bem. Reconciliação do movimento e da identidade:
o girar dos corpos celestes, longe de ser mudança e acidente,
era o diálogo do ser consigo mesmo. Assim, o mundo sublunar,
nossa Terra - região do acidente, da imperfeição
e da morte - tinha que imitar a ordem celeste: a sociedade dos homens
deveria copiar a sociedade dos astros. Essa idéia alimentou
o pensamento político da Antiguidade e do Renascimento; podemos
encontrá-la em Aristóteles e nos estóicos,
em Giordano Bruno e em Campanella. O último que viu no céu
o modelo de cidade dos justos foi Fourier, que traduziu a atração
newtoniana em termos sociais e em Harmonia a atração
passsional. Mas Fourier foi uma exceção: nenhum dos
grandes pensadores políticos dos séculos XIX e XX
se inspirou na física e na astronomia modernas. A situação
foi muito claramente descrita e resumida por Einstein: "A política
é para o momento, a equação para a eternidade".
Octavio Paz interpreta assim suas palavras: a ponte
entre a eternidade e o tempo, o espaço estelar e o humano,
o céu e a história, desmoronou. E estamos sozinhos
no universo. Mas para Einstein, como bem adverte, o universo ainda
tinha uma figura, era uma ordem. Também essa crença
hoje está trôpega e a física quântica
postula um universo outro dentro do universo. A acreditar
na ciência contemporânea, o universo está em
expansão, é um mundo que se dispersa. A sociedade
moderna também é uma sociedade errante. Somos homens
errantes num mundo errante. Não podemos esquecer também
que o cristianismo dessacralizou a natureza e traçou uma
linha divisória e infranqueável entre o mundo natural
e o humano. A Idade Moderna acentuou o divórcio: num extremo,
a natureza; no outro, a cultura. Hoje, ao término da modernidade,
redescobrimos que somos parte da natureza, e que a Terra é
um sistema de relações ou, como diziam os estóicos,
conspiração de elementos, todos movidos pela simpatia
universal, e que nós somos partes, peças vivas
nesse sistema - tema tão caro a nós, astrólogos.
Hoje, entretanto, todas as discussões passaram
a ser mais de ordem política e moral que filosófica
e religiosa, não versando mais sobre as causas primeiras
ou últimas, mas tendo por tema uma questão "de
fato": a história. Ou seja: entendendo como
a coisa se desenrolou, e acreditando piamente que, ao entender
como a coisa se deu e se fez, se entende o que ela é.
Com isto, o homem desviou a sua atenção do modelo
divino, isto é, dos princípios e das causas primeiras,
e passou a se dedicar a entender como as coisas se dão ao
longo de uma história, percebendo mais o mundo fenomênico
e a matéria - que é, como esclarecia Aristóteles,
o mundo do acidente e da corrupção, bem aquém
do que se considerava a eternidade, isto é, o mundo
da Perfeição e do Absoluto.
A circunstância atual nos obriga a ver com
maior rigor crítico a situação de nossas sociedades.
Seus males não são exclusivamente históricos
e econômicos mas sim, como sempre, filosóficos e religiosos,
ou seja, morais. Têm a ver com a liberdade, a justiça,
a fraternidade e, enfim, com o que chamamos comumente de valores.
No centro dessas idéias e crenças está a noção
de indivíduo. É o fundamento de nossas instituições
políticas e de nossas idéias sobre o que devem ser
a justiça, solidariedade e convivência social. Enquanto
isso, parece temerário para o autor denunciar a validade
da História. Foi e é um grande depósito de
novidades, umas maravilhosas, ontras terríveis; tem sido
também um armazém imenso onde se acumulam as repetições
e as cacofonias, os disfarces e as máscaras. O que ocultam?
O rosto do presente? Não, o presente não tem cara.
Nossa tarefa é, justamente, dar-lhe uma cara. O presente
é uma matéria ao mesmo tempo maleável e indócil
- parece obedecer à mão que o esculpe, e o resultado
é sempre diferente do que imaginávamos. É preciso
resignar-se, pois não temos outro recurso: pelo mero fato
de estarmos vivos, temos de enfrentar o presente e formar um rosto
dessa confusão de linhas e volumes. Converter o presente
em presença, fazendo com que as coisas sejam aquilo
que elas são.
A possibilidade de convergência
dos conhecimentos humanos
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