Um
olhar brasileiro em Astrologia
Edição 84 :: Junho/2005 :: - |
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Edil Carvalho, Silvio Pazotto, Ana Laraia, Ronaldo Castro e João Acuio |
Tentando reaver o fio da meada
Diante deste decálogo, o que fazer? Agir como o Jack, o estripador, e "ir por partes", ou me arriscar a imitar a habilidade com que a teia foi tecida pela aranha? Onde está o possível fio da meada que, se fosse puxado, traria um por um desses assuntos à tona?
Não sei - e, se soubesse, acho que isto se constituiria no pavimento fundamental sobre o qual a Astrologia deveria ser toda revista e remontada. Não sei se existe isto e se isto é possível - mas sei que é isto que me pergunto pois é isto que me atordoa.
E é por isso que não posso me furtar ao fato de algo que li sobre Epistemologia, que tem um nome muito esquisito e até mesmo muito pedante, mas que faz considerações muito importantes sobre as regras e leis que regem todo conhecimento, todo saber, sendo por isso mesmo a disciplina que é entendida como Teoria da Ciência.
Para a Epistemologia (e considere isto a minha nota de rodapé inicial), todo saber, sem exclusão, é composto de três níveis:
1) Nível prático - ocasião em que um saber é efetivamente executado por um ser humano, e onde ele próprio se transforma naquilo que faz, impregnando também este saber com características que pertencem a ele próprio, e não ao saber em si mesmo. É neste nível que o ser humano lança mão de habilidades que tem e que nem sempre são requeridas e fundamentais à atividade, mas que podem enriquecê-la bastante. Neste nível, portanto, o saber é muito pessoal e também intransferível, visto que a única forma de um outro indivíduo se apossar deste saber é executando-o; execução que, de pessoa a pessoa, terá diferentes tonalidades: cada um o praticará necessariamente a seu modo - o que revela que, no nível prático, o Ser e o Saber se fundem e jamais se distinguem.
2) Nível técnico - ocasião em que, ao longo de um grande tempo, certas práticas vão-se consolidando e formando o corpo tão diferenciado com que um saber pode ser praticado e executado. Ele se desmembra em várias técnicas ou "modos de fazer" que tentam, por vias diversas, dar conta dos diversos objetivos que este saber diz realizar. Por isso, neste nível de saber, há ainda tanta variedade, muito embora ela seja bem menor do que no nível prático, que quase se iguala ao número de profissionais e praticantes existentes. No entanto, no nível Técnico, o saber pode ser transmitido e ensinado a outros verbalmente, para futura prática, pois o modo de se fazer acabou construindo uma "teoria sobre o próprio fazer" - e é obedecendo aos critérios desta técnica que se garantirá chegar aos resultados almejados.
3) Nível teórico - ocasião em que todas as práticas e técnicas são observadas dentro de um único conjunto, tentando descobrir quais são as contradições e semelhanças que elas têm entre si e se há um fundamento em comum que possa sustentar toda esta imensa variedade. Neste nível, o saber é visto e examinado em si próprio com a maior imparcialidade possível, tentando sobretudo descortinar as suas leis e regras gerais - e faz isso ao verificar as contradições e os problemas que normalmente são jogados por alguns praticantes para debaixo do tapete. É este tipo de "exame crítico" que permite que um saber se desenvolva e avance, solucionando alguns de seus impasses e descobrindo algumas respostas que até então se mantinham no nível da dúvida e da hipótese. Para alguns pensadores, é somente através desta "evolução movida pela autocrítica" que um saber alcança o status de "científico".
Por isso, Acuio, ao considerar o que você falou sobre a formação que a Astrologia exige e sobre a efetiva formação do astrólogo, e ao compará-las com algumas observações feitas pela Epistemologia, só posso encontrar semelhanças entre elas - e arriscar-me a fazer uma série de especulações sobre o nível em que se encontra o saber astrológico. E arriscar uma série de especulações sobre onde "mora o problema": aquele, o fundamental, que vive me atormentando e que vivo procurando, por acreditar que, ao resolvê-lo, se resolve boa parte do impasse em que se encontra a Astrologia.
No meu modo de ver a Astrologia, percebo que há um prática rica e milenar que proporcionou uma infinidade de técnicas e de utilizações mas, independentemente desta riqueza e fartura, não temos um corpo teórico único e coeso que consiga fundamentar toda esta imensa diversidade com clareza e precisão - e isto de um modo que ela se torne compreensível também para a sociedade. Em resumo: temos muita prática e muita técnica - mas não temos, na mesma medida, um avanço tão rico e grandioso na esfera teórica. É só verificar o número de trabalhos teóricos que foram formalmente escritos sobre o assunto e a enormidade de livros sobre técnicas e regras de interpretação astrológica para constatar que a desproporção é enorme.
Piaget e a Teoria do Conhecimento
Esta situação, a princípio excêntrica, na realidade é bastante natural quando vista pela ótica da Teoria do Conhecimento (e eis minha segunda nota de rodapé). Para esta disciplina, todo o conhecimento começa por uma percepção original, acompanhada ou não de uma prática, e se desenvolve e evolui até descortinar os princípios gerais em que se baseia. Em suma: a teoria e as regras gerais são parte de um estágio último a que o conhecimento tende e que procura alcançar, por mais que pareçam desde o seu início uma mera quimera ou uma impossibilidade de fato - sendo este o estágio do conhecimento chamado de "sofisticado", em contraponto ao conhecimento em sua fase preliminar e original, chamado de "ingênuo".
Esta observação, ratificada por Jean Piaget (1960), atesta a possibilidade de que uma determinada ordem de conhecimentos seja simultaneamente rica na sua prática e pobre em nível teórico, sem que esta situação possa contestar a sua legitimidade e valia. Aliás, é exatamente esta, para mim, a situação que ocorre com a Astrologia: temos uma riqueza clínica e uma diversidade técnica que se confirmam entre as quatro paredes de nossos consultórios e que se avolumam ao longo de uma prática que se exercita durante o nosso dia-a-dia. Este conhecimento rico, de natureza propriamente empírica, é incontestável: só nós e nossos clientes sabemos do peso e do valor do trabalho realizado, e da experiência que se testemunha por ambas as partes como uma experiência única e valiosíssima.
Nenhum astrólogo diria o contrário - e nem um cliente que tivesse sido bem atendido por um astrólogo competente. O problema, então, não se revela e aparece na esfera clínica, a não ser que o trabalho tivesse sido mal realizado pelo profissional. Supondo, então, que toda a imensa maioria dos astrólogos esteja preparada para exercer de forma competente a disciplina, nenhum problema deveria aparecer para justificar a sua péssima imagem pública e, desse modo, o conhecimento astrológico seria considerado de qualidade e legítimo. No entanto, não é isto que acontece. E por quê?
Porque, quando saímos da esfera clínica e passamos para a esfera pública e temos que atestar a validade e a fundamentação dos nossos conhecimentos, a nossa reputação estremece. Afinal, quem não conhece ou nunca ouviu falar daquele famoso astrólogo que teve uma oportunidade única de ficar sob o holofote da mídia mas que, cedendo a perguntas imbecis ou então simplesmente tentando fundamentar a validade da sua disciplina, acabou falando as maiores bobagens e infantilidades históricas ou psicológicas aos ouvidos da sociedade?
Por isto, uma das coisas de que nós, astrólogos, devemos nos conscientizar é da diferença existente entre o nível de discurso que praticamos e que é exigido em atividade clínica e o nível de discurso que deveríamos usar em público e que é exigido normalmente pelas instituições: o Discurso Teórico. Veja só: o discurso clínico é eminentemente pessoal, individual, visto que tenta abarcar a singularidade da pessoa que se posta a nossa frente, de modo que todo o foco de nossa atenção está voltado para este, exigindo pois do profissional a habilidade de traduzir e aplicar todo um conjunto de regras gerais naquele caso em particular.
Conta pois o astrólogo até com um certo improviso e com certos imprevistos que surgem naquele momento específico e que tem, por ser particular e único, variações que só dizem respeito a esta situação e a nenhuma outra mais, se prestando e se dirigindo assim àquele atendimento dado àquela pessoa e revelando a esfera do privado e, como você diz, o "lugar da leitura".
Já o discurso teórico é eminentemente impessoal e geral, visto que tenta abarcar a singularidade de todos os casos particulares e traduzi-los por regras gerais que expressem a universalidade do fato ou do fenômeno, exigindo pois do profissional uma habilidade teorética ou abstrativa, isto é, a habilidade de deduzir toda uma série de princípios de dentro do próprio fenômeno e de expressá-los por condições constantes e precisas. Refere-se o discurso teórico ao fenômeno em toda a sua generalidade, e não exclusivamente por suas variações múltiplas, sempre se reportando a um certo grau de universalidade de que as instituições necessitam e exigem para validar tal conhecimento - sendo pois o discurso que se presta e se dirige mais propriamente à esfera pública.
Se tivéssemos uma idéia desta diferença, isto é, do discurso que é mais adequado para a esfera do privado e do discurso que é mais adequado para a esfera pública, muito provavelmente nos prepararíamos para discursar diante da sociedade - o que exigiria de nós uma preparação completamente nova, visto que ela não é uma preparação prática, mas teórica.
A defasagem astrológica - para mim - é teórica, e é ela que se revela frente a experiência pública, por mais que o nosso discurso encontre grande validade dentro da esfera clínica e privada - excluindo, é claro, a possibilidade de que haja uma parcela de profissionais agindo de maneira incompetente ao exercer seu conhecimento.
A saída para os impasses que se abatem sobre o saber astrológico é eminentemente teórica, pois é aí, a meu ver, que os problemas se apresentam e se avolumam, como um imensa bola de barbante cuja ponta já não conseguimos mais distinguir e encontrar, sendo este o problema fundamental que se deve resolver e que, sendo resolvido, desembaraçaria todo o restante da bola de impasses que nós mesmos ajudamos a criar.
Mas, para isto, precisaríamos suar a camisa através de um outro esforço que você inclusive menciona: estudos. Pesquisas.
Mas há pessoas que tomam a vida como um jardim que precisa ser cultivado. E outros que a tomam como o próprio paraíso edênico - e que é só esticar a mão para colher a fruta aí, madurinha.
Eu não acredito em frutas maduras. Afinal, não posso me cegar ao fato de que elas nascem, a princípio, verdinhas.
Outros textos de Edil Carvalho, João Acuio. Ronaldo Castro, Silvio Pazotto e Ana Laraia.
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