O levante do feminino com
Urano em Peixes
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Capa do catálogo da exposição
da Semana de Arte Moderna, de 1922 (Di Cavalcanti) |
Peixes, para Aquário, representa a transição
do radicalismo ideológico para a via humanitária.
Urano em Peixes é como Aquário assumindo uma contraparte
relativista, flexível, não isenta de contradições,
é claro, mas com potencial de inclusão e tolerância
mesmo para divergências ideológicas extremas. É
em sua passagem pelo eixo Virgem-Peixes que Urano ativa na coletividade
o levante do feminino e, em seu ressurgir, diversos trabalhos iconográficos
contendo mulheres ou manifestações femininas de impacto
na sociedade. Boas provas disso são a capa do catálogo
da Semana de Arte Moderna e um quadro de Menotti del Picchia, "Branca
de Neve e os Sete Anões". Menotti retrata a si e a outros
seis artistas e escritores minúsculos ante uma mulher que
para os anões parece uma gigante. Os anos 20 também
foram críticos para Lampião, rei do cangaço,
que estava sempre acompanhado de sua não menos famosa consorte,
Maria Bonita. Outra vez a figura feminina em evidência.
Finalmente, durante a passagem de Urano em Virgem,
na década de 60, houve a liberação sexual feminina
proporcionada pela pílula anticoncepcional. Além disso,
o estilo unissex permitiu às mulheres usar em massa roupas
tradicionalmente tidas como masculinas. O conjunto "Os Mutantes",
embora tivesse como líder um homem, tinha em Rita Lee a figura
mais expressiva. Rita Lee veio a tornar-se, posteriormente ao fim
do grupo, símbolo do rock nacional. Sutiãs foram queimados
em praça pública e o cúmulo do feminino em
evidência, ao menos em termos simbólicos, foi a chegada
do Homem à Lua, corpo celeste relacionado astrologicamente
ao feminino.
Retornando a Atená, sabemos que ela é
a deusa da guerra justa, da sabedoria. O mito afirma que ela inventou
a roda do oleiro e o esquadro empregado por carpinteiros e pedreiros.
As artes metalúrgicas e os trabalhos femininos estavam sob
sua proteção; o culto a Atena se baseava no amor ao
trabalho e à cidade. É interessante notar que os "trabalhos
femininos", assim como outras atividades ligadas ao masculino,
eram associadas a Atená. Se observarmos Mulheres Apaixonadas
com foco nas atividades desempenhadas pelas personagens femininas,
logo veremos o singular "amor ao trabalho" das mesmas.
É o que lhes dá um sentido de independência
e maturidade diante das questões complicadas com que se deparam.
O que vemos em nosso mundo agora, inclusive o que
é retratado na novela, é um foco potente da decadência
do poder patriarcal.
Configurações,
emblemas e características
E onde mais vemos o declínio do poder patriarcal?
Em toda a novela. Há por exemplo o caso do personagem Carlão
e seus pais idosos, com problemas com a total falta de sensibilidade
de Dóris, a neta, para com qualquer pessoa que não
ela mesma. A retirada do mundo familiar e a cessão do quarto
que Dóris julga ser seu direito inalienável, a ida
para o Retiro dos Artistas, tudo isso dói mais em Carlão
do que nos dois velhinhos. Ao mesmo tempo em que ele é atingido,
sim, pela piedade, pela carência e pela gratidão aos
pais, ele também vê claramente seu poder pátrio
ser desafiado pela filha e pelas circunstâncias. Urano no
eixo Aquário-Leão e Urano e Netuno em recepção
mútua representam bem essa problemática entre o novo
e o velho, entre o egoísmo e o altruísmo e, mais ainda,
de declínio do poder fálico. Por conta do quincunce
natural de Aquário com Câncer está toda a situação
de conflito com a tradição familiar demonstrada nas
cenas daquela família. Idem quanto à dissolução
netuniana e a imposição de valores incompatíveis
com a vida em família, ao menos no contexto mais conhecido
pela maioria das pessoas.
Outro ponto importante na questão do gradual
declínio desse poder fálico está na relação
entre Stella e o Padre Pedro. A Igreja, embora seja uma instituição
que tem na figura de Maria, Mãe de Deus, um de seus mais
potentes ícones, é essencialmente patriarcal, sendo
o sumo pontífice o Papa, isto é, um homem. E apesar
de os padres serem celibatários (ao menos em teoria), tendo
como justificativa a necessidade de serviço ao próximo
e o amor universal, é significativo o fato de o dilema vivido
pelo Padre Pedro entre a batina e a saia (a saia de Stella, para
ser mais exato), ser retratado justamente numa novela em que as
outras manifestações de poder masculino descem do
pedestal. Arquetipicamente falando, podemos associar esse dilema,
contextualizado na obra de Manoel Carlos, à mesma perda de
noção de superioridade masculina ante o feminino.
É a desconstrução do mito da expulsão
do Paraíso ocasionado, segundo muitos, pela Eva bíblica.
É reverter a mesma ótica contida no mito da Caixa
de Pandora, que, por sua desobediência, curiosidade e instabilidade,
liberta todos os males colocados pelos deuses, invejosos dos homens,
na caixa que estava sob a guarda de Epimeteu, irmão imprudente
de Prometeu. É como se fosse um recado para o futuro, dizendo
que Adão reencontra sua Eva, ou melhor, o ser humano se reencontra
consigo mesmo e percebe que o Paraíso é a união
dos opostos e a coexistência das ambigüidades num só
ser em harmonia.
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Caetano, o taxista garanhão, e Sílvia, a madame
fogosa, de um certo modo lembram a Ônfale grega, com
seu escravo poderoso: Héracles ou Hércules.
Na lenda, Héracles é condenado por Apolo a permanecer
escravo por um ano, sendo vendido a Ônfale, rainha da
Lídia.
Contudo, os dois se apaixonam e chegam a trocar de papéis,
com Ônfale divertindo-se em vestir o couro do leão
da Neméia e a brandir as armas do herói, enquanto
este, prazerosamente, fiava lã e usava os vestidos
e brincos da rainha.
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O taxista Caetano e a elegante
Sílvia reproduzem o mito de Héracles como escravo
de Ônfale. |
A relação
entre a granfina e o taxista, embora não seja idêntica,
tem um pouco do mito, ao colocar uma mulher com acesso ao poder
econômico e status social tirando proveito de um homem
que ela considera bonito, porém rústico, que a
excita pela postura pouco dada a rapapés e pela descomplicação. |
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