Enquanto o caos segue em
frente, com toda a calma do mundo
Acredito que a exposição franca de
suas angústias, tristezas e de dor tão intensa, como
se tivesse sido inexoravelmente abandonado por deus, é que
fez a Legião ganhar milhares de fãs. É como
se Renato Russo operasse uma catarse coletiva. Quando alguém
consegue representar sentimentos e contradições que
todos nós compartilhamos, acaba atraindo legiões e
aliviando tensões coletivas.
Com Renato Russo, os meninos e as meninas choram.
E se sentem compreendidos pelo mundo.
Para que se possa representar os sentimentos do mundo
é preciso que o poeta possa transitar em vários universos
e, assim, como um camaleão, ir expressando tons e matizes
sobre o mesmo tema. Os quatro signos mutáveis - Gêmeos,
Virgem, Sagitário e Peixes - têm facilidade para a
metamorfose. Principalmente Gêmeos e Peixes, signos duplos
e plurais no nome e no glifo.
A impessoalidade está em letras como "Índios",
Eduardo e Monica, Metrópole, Faroeste Caboclo
e tantas outras, nas quais não se pode dizer que retratam
a opinião de Renato ou da banda, simplesmente dão
vazão a diferentes vozes e opiniões, como diz Hermano
Vianna no texto que compõe o box da banda. Ele cita, por
exemplo, Pais e Filhos, em que a cada frase se cantam diferentes
lugares para diferentes pais e filhos.
Eu moro com a minha mãe mas meu pai vem me
visitar/ eu moro na rua, não tenho ninguém/ eu moro
em qualquer lugar/ já morei em tanta casa que nem me lembro
mais/ eu moro com meus pais
Ou em Química, na voz de um adolescente
contrariado e raivoso por ter que ficar em casa estudando para passar
no vestibular. Ou em 10 de Julho, canção que
fez para Cássia Eller quando ela esperava o filho Chico.
Não vale o compromisso/ Vale mais o coração/
/Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher/ Sou minha mãe
e minha filha, minha irmã, minha menina
Essa condição de despersonalização
ocorrerá por toda a obra da Legião. É como
se não fosse possível achar um eu coordenando as narrativas
ou, quando se acha, ele é habitualmente ambivalente. É
como se o coração mudasse de cor da mesma forma como
uma escama varia a cor com a incidência da luz.
Começo a ficar livre/ - espero./ Acho que sim./
De olhos fechados não me vejo/ e você sorriu pra mim
(Se fiquei esperando o meu amor passar)
Um outro agora vive minha vida/ sei o que ele sonha,
pensa e sente/ não é coincidência a minha indiferença/
sou uma cópia do que faço/ o que temos é o
que nos resta/ e estamos querendo demais (A Montanha Mágica)
A única dimensão permanente, entretanto,
é a tristeza: lágrima do peixe que não cai.
Já que você não está
aqui/ o que posso fazer é cuidar de mim/ Quero ser
feliz ao menos/ Lembra que o plano era ficarmos bem? (Vento
no Litoral)
Minha papoula da Índia/ Minha flor da
Tailândia/ Chega: - vou mudar a minha vida/ Deixa o
copo encher até a borda/ que eu quero um dia de sol
num copo d'água (A Montanha Mágica)
Desenho toda a calçada/ acaba o giz,
tem tijolo de construção/ eu rabisco o sol que
a chuva apagou (Giz)
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Peixes lembra Cristo, mito que guarda o salvador
e a vítima sacrificial no mesmo ícone. Inclusive as
letras da palavra grega para peixe, Ikhtys, significam "I"(Iesus,
Jesus), "Kh"(Kristós, Cristo), "T" (Theou,
de Deus), "Y" (Yiós, filho) e "S"(Sóter,
Salvador): Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. Sofrer pode ser
a prova que nos autoriza ir para um mundo melhor. "Meu reino
não é deste mundo". Saudade, dor, amor romântico
e religiosidade se tornam tônicas dessa configuração
pisciana.
Ensinamentos cristãos e budistas estão
em toda a obra, assim como um imenso sentimento de desamparo:
Meu amor, disciplina é liberdade/ Compaixão
é fortaleza/ ter bondade é ter coragem/ e ela
disse:/ - lá em casa tem um poço mas a água
é muito limpa (Há Tempos)
Até bem pouco tempo atrás/ poderíamos
mudar o mundo/ quem roubou nossa coragem?/ Tudo é dor/
E toda dor vem do desejo/ De não sentirmos dor (Quando
o sol bater na janela do teu quarto)
Ainda que eu falasse a língua dos homens/
e falasse a língua dos anjos/ Sem amor eu nada seria/
é só amor, é só amor/ que conhece
o que é verdade (Monte Castelo, adaptação
de Coríntios e Soneto 11 de Luís de Camões)
Aonde está você agora/ além
de aqui dentro de mim?// Agimos certo sem querer/ Foi só
o tempo que errou/ Vai ser difícil sem você/
Porque você está comigo o tempo todo (Vento
Litoral)
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Ou o máximo da idéia cristã
de compaixão, de amor incondicional:
Meu filho vai ter nome de santo/ quero o nome mais
bonito/ é preciso amar as pessoas como se não houvesse
amanhã/ porque se você parar para pensar, na verdade
não há (Pais e Filhos)
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